23.4.15

Dantes, a bula de Marx

The The, “This is the Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=KeFKsX2-PRg
(...) Cristo foi uma espécie de marxista-leninista mas com alguns
escrúpulos extra-partidários. (...)
Herberto Helder, in A morte sem mestre, Porto Editora, 2014, p. 43.
Desarranjos intestinais e uma tempestade cerebral, porque os esteios perderam préstimo. As ideias contorcem-se sobre si mesmas. Interrogam dogmas, duvidam de pressupostos. Duvidam de si mesmas. A dúvida existencial parece um punhal cravado bem fundo, escarafunchando a carne até chegar ao osso, o sangue abundante tomando conta do chão.
Sacerdotes incumbidos da doutrinação passam noites em branco. Durante o dia, tentam convencer os crentes em ciclópica crise existencial que o fermento das dúvidas é uma desrazão. Durante a noite, regressam aos cartapácios de onde beberam a doutrinação para inventarem novas pedagogias que revivesçam as ideias hipotecadas pelos subitamente descrentes. O exército de fieis não pode decrescer. Ou a religião ideologizada começa a ficar sem chão para repousar. A ideologia não tem coutada se não houver gente a abraçá-la.
Os subitamente descrentes protestam contra as pontes entre o catecismo ideológico que seguiram e os dogmas religiosos. Não sabem como sufragar as ideias no dédalo da igreja, se foram educados na superioridade das ideias contra a heresia das religiões. Os apopléticos sacerdotes da ideologia ensaiam manobras semânticas, ardis retóricos; em última instância, invocam o estatuto de guias, que as suas palavras devem ser seguidas sem contestação, pois esse é o seu papel e aos seguidores está destinado segui-los sem protesto. O caos sobrepõe-se: os descrentes assumem a sua condição. Exilam-se das ideias que foram esteio. Já não há regresso possível.
A certa altura, os próprios gurus começam a duvidar do catecismo, ou pelo menos se o catecismo não entrou nos alvores do anacrónico e não está à espera de renovação. Digladiam-se com as dúvidas interiores. Divididos entre o dogmatismo que não admite a desfiliação da ortodoxia e a necessidade, nem que oportunista seja, de modernizar o credo, sucumbem ao cansaço. Afinal, os pregadores da razão também são assaltados por dúvidas interiores. Ao descobrirem que Cristo foi o primeiro dos marxistas, ficam sem coordenadas para sequer pensarem.
Fica bem visto: isto das ideias – e de as seguir como monolíticas personagens – é um cárcere.

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