11.5.15

Uma amiga na cadeira do lado

Spiritualized, “Soul on Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=yuEOqzs76sE
Na sala de espera, à espera de vez para a vacina. Duas senhoras partilham a sala de espera comigo. Estão sentadas em filas diferentes. A mais velha parece alquebrada. Mete a cabeça entre os joelhos e suspira longamente. A da frente nota no suspiro e desvia o olhar para trás. Pergunta se a senhora se está a sentir bem. A mulher levanta a cabeça dos joelhos e desenfia um rosário de queixas. Para começar: que nunca tinha tomado antidepressivos e não andava com boa disposição desde que começou a medicação.
Sem demora, pega nos haveres que estavam pousados na cadeira do lado e toma um lugar ao lado da mulher mais nova. Começa a contar a história pessoal, os acidentes de percurso recentes que levaram um médico a receitar antidepressivos, o pouco (e mal) que dorme, que é do Porto – e por aí fora. Teve sorte. A outra mulher dá a impressão que se interessa mais pela vida dos outros, a atestar pela atenção, até pelo enternecimento, com que ofereceu o ombro para os prantos da amiga acabada de fazer. O que a mulher estava a precisar era de alguém com quem conversar. Não precisava de antidepressivos.
Não é a primeira vez que em espaços públicos reparo em amizades furtivas, feitas no momento, entre duas pessoas que até parecem conhecidas de longa data, e de como alguém desnuda a vida perante outro que uns instantes antes era desconhecido. Não admira que a coscuvilhice seja passatempo de muita gente. Se gente assim não tem vergonha em pôr toda a vida à mostra mesmo para quem seja desconhecido, é gente que faz questão em tomar conhecimento das vidas alheias que sejam viradas do avesso para a praça pública.
É como se pessoas assim andassem à procura de um imenso guarda-chuva como colo para as angústias. Aceitando servir – pois os preceitos da religião ensinam que devemos ser uns para os outros – de guarda-chuva quando os lamentos de um desconhecido precisem de abrigo. Só que este guarda-chuva é às avessas. É como se estivesse aberto com a parte côncava assente no chão. Só assim o guarda-chuva pode receber as águas das apoquentações alheias, ser seu cais.
(Se estivesse na posição normal, as águas atormentadas deslizavam pelas abas do guarda-chuva a perdiam-se no chão. No chão da indiferença.)

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