12.8.15

A menina que gastava as mãos

P. J. Harvey & John Parish, “Black Hearted Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=AupNf6DOaPg
Ai, que aflição. Que aflição a da menina, em pânico de cada vez que a atenção não estava desviada para as bactérias que podiam vir em voraz contaminação das suas mãos. Tudo o que fosse exterior e não se lhe assemelhasse esterilizado dava azo a uma lavagem de mãos.
Por conseguinte, a menina lavava as mãos dezenas de vezes por dia. Mesmo quando estava em casa – que a casa era um lugar onde controlava o ambiente através de sucessivas limpezas do pó, de sucessivas aspirações do chão e de sucessivas lavagens do mesmo. Não ingeria alimentos sem antes lavar as mãos. E mesmo que não fosse a hora destinada a comer, as mãos iam em frequentes visitações à água fresca e abundante que, com a ajuda de um sabonete dispendioso, ajudava a trazê-las limpas. A menina vivia em constante apoplexia com a ideia de bactérias nidificarem nas suas mãos, em pré-aviso de uma mais que certa contaminação do organismo. Escusado será dizer que a menina era hipocondríaca. Essa não era, porém, a maior motivação da constante limpeza das mãos. Ela tinha horror à ideia de ter as mãos contaminadas por agentes externos. Tinha horror à sujidade. Sobretudo da acamada nas mãos.
Um dia, começou a ter umas afeções nas mãos ambas. Ruborizavam, atacadas por uma irritação cutânea que obrigava a coçá-las repetidamente. Começou a lavar ainda mais as mãos: julgou que a afeção era fruto de um microrganismo qualquer que não estava a ser erradicado com a solução aquosa que devolvia limpeza às mãos. A alergia teimou no tempo. A menina rendeu-se à evidência e foi consultar um médico especialista. Contou tudo ao médico, menos o importante detalhe das dezenas de vezes por dia que as mãos eram lavadas. O médico, não contente com os testes de despistagem, continuou a fazer perguntas. Até que a menina confessou ser compulsiva lavadora de mãos. Essa era a doença da menina, disse-lhe o médico. “Sabe, a água também contém bactérias. E as mãos não podem estar constantemente expostas à agua. Se não, gastam-se. Ficam desprotegidas.
A menina regressou a casa com um dilema existencial: como haveria de dissolver os hábitos instalados e dedicar-se a uma lavagem menos frequente das mãos?

Sem comentários: