7.8.15

As fragas

Julia Holter, “Feel You”, in https://www.youtube.com/watch?v=X2JgMniIpRM
Quando era pequeno e ia à aldeia do meu pai, gostava de descer ao Douro (meia dúzia de quilómetros abaixo). Parávamos num promontório sobranceiro a um miradouro. Os olhos extasiavam-se com o vale cavado feito por um rio selvagem, tão selvagem que abocanhava o terreno granítico e fazia o seu curso até se abraçar, meia dúzia de quilómetros abaixo, ao Douro.
Nesse lugar perto da aldeia do meu pai via-se, um pouco ao longe, uma imponente parede de granítico que se despenhava a pique até ao rio. Ouvi dizer que se chamava “as fragas”. Eu ficava ali o tempo que fosse preciso a admirar a majestosa parede que caía verticalmente no vazio que só terminava onde o caudal vinha beijar a rocha. Olhava para aquele acidente geológico e deitava as interrogações sobre as possibilidades (ou a impossibilidade) de escalar aquela parede lisa, empinada a eito desde o rio até se inclinar perante as oliveiras e as laranjeiras que ali tinham império. Nunca perguntei ao meu pai, ou aos da aldeia, se alguma vez uma alma tinha tido a afoiteza de trepar a montanha que os meus ainda ingénuos olhos julgavam intransponível.
Os mesmos olhos, agora já despojados da inocência, continuam a fazer a mesma interrogação: terá havido alpinista destemido a derrotar o paredão granítico? Agora, que as coordenadas são diferentes da tenra idade, o padrão para aferir as impossibilidades é diferente. Quando somos novos, o óbvio embacia o discernimento. Vamos pelas conclusões fáceis, que rimam com a ingenuidade própria da idade – e nem um certo idealismo da idade, que às vezes se confunde com demencial destemor, serve para atraiçoar a conclusão.
Agora, que uma certa madurez se enquistou na pele, fico dividido em dois hemisférios. Um continua a jurar a pés juntos que vivalma consegue trepar a parede de granito, que as leis da física não admitem exceções, que essas leis são curadoras de uma impossibilidade. A outra metade manda suspeitar da ilação, atirando-lhe o ónus do extemporâneo. É que os impossíveis podem ter um prazo de validade. Os impossíveis também são datados. Ou porque somos adamastores com diligência para superar os impossíveis, tornando-os ubíquos com a possibilidade; ou porque o exterior a nós se congeminou para que o olhar deixasse de os ter como impossíveis.
Mas continuo sem saber se já alguém conseguiu derrotar as fragas. (E, confesso, nunca fiz grande coisa para tirar as coisas a limpo.)

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