19.11.15

Diálogos improváveis

Hercules and Love Affair, “Blind” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=nnb0a-8OIB4
O ator encontra-se na rua com o banqueiro. Conhecem-se, são figuras públicas. Mas não se conhecem pessoalmente. Os dois param em frente do quiosque. À sua frente, duas mulheres. A segunda mulher promete levar tempo no atendimento. Quer recarregar o título de transporte. Depois pede três revistas cor-de-rosa, para escolher apenas a que mais notícias espalhafatosas. Pelo caminho, lembra-se que tem a fatura da luz para pagar.
Os dois homens impacientam-se. Mais o banqueiro, pois àquela hora (fim da manhã), o ator não está em horário laboral. O banqueiro inspira, profundamente. Começa a bater com o sapato, em sinal de exasperação. O ator, do fundo da sua funda linhagem esquerdista, e sem impaciência para gastar, deleita-se com o nervosismo do banqueiro. Diz para si mesmo, em surdina, “espero que a velha ainda arranje mais duas ou três coisas para pedir.” Pega num cigarro enquanto a mulher procura pelo cartão do multibanco na caótica carteira, as mãos trémulas não ajudando à função. Pega num cigarro e volta a falar com o seu pensamento: “pode ser que o senhor banqueiro se incomode com as minhas baforadas de fumo.
Os planos saíram furados: contagiado pelo tabaco do ator, o banqueiro imitou-o. Talvez fosse para aplacar os nervos à flor da pele. Ato contínuo, o banqueiro pegou no telemóvel e fez uma curta chamada: “estou aqui preso no quiosque. Vou ver se não me demoro. Diga que a reunião vai começar com atraso. Até já.” A velhinha consuma a transação. Ao arrumar os papeis e o cartão multibanco, já fazendo menção de ir embora, recua e pede ao homem do quiosque que lhe dê meia dúzia de caramelos para as netas e quatro carteiras de cromos da caderneta dos jogadores de futebol para o neto. O banqueiro tosse. O ator sorri, comprazido com o incómodo do banqueiro. O ator estava disposto a entoar uma prece para pedir aos deuses que metessem na cabeça do banqueiro a ideia de pedir ao ator para o deixar ser atendido primeiro, só para o ator poder dizer que não – não fosse o ateísmo do ator e a ignorância sobre as rezas.
Por fim, o banqueiro dirigiu-se ao ator: “estou a reconhecê-lo. Quero dar os parabéns pela peça que está em cena. A peça é formidável. E a sua performance realça a trama dramática. O encenador escolheu a dedo. Parabéns!” O ator ficou lívido. Sem palavras. Atrapalhado, e porque manda a boa educação (mesmo quando o elogio vem de um nefando banqueiro), o ator agradeceu a deferência. Entretanto, outra velhinha, julgando que os dois homens não estavam à espera de atendimento no quiosque, passou-lhes a perna e pediu um maço de cigarrilhas.

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