30.6.15

O despensamento

Irmãos Catita, “Cagalhon” (ao vivo no Santiago Alquimista), in https://www.youtube.com/watch?v=ponaZDAa2_o
A barbárie também vem enquistada no pensamento. Fala tão alto que entra pelo cérebro como se fossem colheradas de cominhos venenosos. Contamina. Infecta o ar em redor, que herda a insalubridade desse pensamento. Neste pensamento despenteado pela ignomínia, lê-se pura maldade, um terrível mau fundo. Talvez irremediável, talvez apenas patológico. Vale tudo. Até a insuportável dose de moralidade, aferida por medidas herméticas e ditada por imperativos categóricos que não admitem o contraditório. Para enfeitar o dejeto, uns pozinhos de erudição – que a erudição quadra bem com elevados intelectuais pergaminhos e, de caminho, serve para descarregar a sobranceria fétida sobre quem vier discordar.
A este pensamento despenteado chamo despensamento. Não é ignorância. Antes fosse, que à ignorância dedica-se uma indulgência, pois a um apedeuta não se pode exigir mais do que os seus parcos conhecimentos. O despensamento é esbracejado por gente que (há que o reconhecer) é letrada e que (aparentemente) consegue diligenciar um raciocínio que obedece aos parâmetros da inteligibilidade. Mas a história também é para aqui chamada. Ela está cheia de exemplos de perfídia, de como as superiores capacidades do intelecto são usadas para dar guarida à pura maldade.
(E como me custa usar palavras como “maldade” e “bondade”, que ressoam ao moralismo abjeto que os arquétipos do despensamento não se cansam de ostentar.)
Os artesãos do despensamento deviam pôr um espelho à frente das fuças antes de destilarem o ódio que os consome por dentro, antes da adjetivação prolixa, antes de fazerem lamentáveis ditirambos à custa de deficiências físicas de quem as tem, antes de esgalharem uns trocadilhos mal amanhados sobre a feiura de quem não gostam (lá está: é quando faz tanta falta o espelho para reverenciar a imagem de si mesmo) e arrotarem uma sonora gargalhada antes que a audiência atinja o calibre do chiste, antes de bolçarem o despensamento que atira para o Tarrafal do pessimismo antropológico – ou de como é possível acreditar, em pose que renega o antropocentrismo, que há animais (ditos) irracionais que conseguem, ao menos, não dar coutada ao despensamento.

29.6.15

Men in black

Spoon, “They Want My Soul”, in https://www.youtube.com/watch?v=gPlJ0ecD9Ew
(Depois de ler Yanis Varoufakis, “O Minotauro global: os Estados Unidos, a Europa e o futuro da economia global”, Lisboa, Bertrand Editores, 2015)
Parece uma narrativa de conspiração. Ou a necessidade de exorcizar os fantasmas que atormentam uma ideologia. É mesmo assim: tão categóricos que falam em nome da verdade, como quem se acha o seu tutor e não admite que outros, os que pensam diferente (o que, já de si, é heresia), duvidem da verdade assim dita e se revejam noutra. Curiosamente, vêm de sítios onde (quando convém) se teoriza o relativismo. Que, deviam lembrar-se nestas alturas em que os imperativos categóricos (que são convenientes) assomam, aceita as cores variáveis da verdade, ou até admite que a verdade é um sofisma.
Estes são tempos difíceis. A crise morde na carne. Critica-se a indolência dos mandantes, que devolveram – e em dose reforçada – o poder aos homens de negro que sinistramente dominam a finança e, pela finança, dominam tudo. A começar nos mandantes, reduzidos a simples lacaios. Os homens que vestem sempre de negro, na finança como nas organizações internacionais que traçam a régua e esquadro políticas de salvação que deixam as terras salvas entregues ao cadafalso da penúria. Estas medidas parecem feitas à medida dos homens que vestem de negro: desapiedadas, como se aos seus fautores não fosse reconhecida a existência de coração, humanos desumanizados.
A parte de uma conspiração global: para os mais ricos, os que exercem influência e distribuem recompensas que seduzem, engrossarem a abastança. E os mais pobres reduzidos a mais pobreza, a mais dependência, num acantonamento de miséria (material e moral) que tem de ser denunciada. E tudo isto é intencional. Os abastados, inebriados pela ganância e pelos frutos materiais da riqueza, estão a condenar os desvalidos à miséria. Talvez sejam ignorantes; talvez estejam apenas embriagados pela ganância; talvez vivam numa torre de marfim, de onde não avistam a miséria que apoquenta os pobres. Os homens vestidos de negro, com prebendas generosamente distribuídas pelos poderosos da finança, são diligentes no cumprimento da vontade destes. Uns e outros desconhecem o potencial de sublevação dos desvalidos. Não conhecem a história. E como ela (juntamente com a irreprimível ganância) lhes pode ser fatal.
Nesta narrativa apocalíptica, não entendo duas coisas. Primeiro, o excesso de pessimismo antropológico de quem o não era (os críticos deste estado de coisas), que parecem, em volte face oportunista, terem sido convertidos àquele pessimismo. Segundo, a perene desconfiança dos intérpretes da finança e dos seus putativos lacaios (os mandantes). A menos que também creiam na genética ignorância da casta, a teoria da conspiração não faz sentido. Seria como os da alta finança, de braço dado com os lacaios que comandam, servirem a cabeça na guilhotina do povo reduzido à miséria e sedento de libertação deste jugo.
Não bate certo. O que leva as possíveis explicações para outro lado. Uma argumentação que tem o esteio do pretexto, em vez do argumento. Sitiados pelo ideologia.

26.6.15

Sitiado


Joy Division, “New Dawn Fades”, in https://www.youtube.com/watch?v=7XRfeZJjOkI    
Preciso de uns óculos para me ver de fora para dentro. Preciso de perceber os freios que comandam a omissão. Preciso de sair de mim e de fora ver o que os outros vêm. Preciso de viajar pelas imediações de mim, sentir o odor que de lá vem, o arquear do dorso enquanto ando, as rugas que pautam o envelhecer, e como a madurez tinge de cores neófitas o tempo passante. Preciso. Nem que seja para fazer uma rasante às fronteiras de mim, sentir o chão que sou, apalpar a pele suada, ver de que cor vêm perfumados os olhos enquanto se marejam na urgência do porvir. Quero saber o espaço vital que sou. Quero ler de fora de mim as palavras que deixo emolduradas. Pois preciso de um lugar centrípeto de onde saia de uma catarse que possa não ser necessária. Talvez precise de perceber que sou quem sou. De aprender a conviver com as bússolas errantes, subindo aos promontórios de onde se alcançam as alvoradas enquanto nos lugares correntes ainda se faz noite. Amadurecendo a singeleza deste eu. Sem ambicionar as desmedidas que não são sonhos, antes pesadelos que furtam o chão aos pés sedentos de tempo. Quero sentir o sangue que vai nas veias. A dor que se deita na carne, quando a dor ganha trono no horizonte das coisas. Preciso que o oxalá deixe de ser consumição perene. E que os ponteiros sejam estalajadeiros que gratificam os dias passantes. Sem pressa, mandando borda fora a urgência que desautoriza o sortilégio do tempo. Preciso de sentir que não sou refém de mim mesmo. Preciso de uma medida desassombrada que ensine os passos todos, como se de um infante se tratasse ao aprender a andar. E preciso que me digam, em sussurro doce, que não sou destravado e funâmbulo, equinócio de inconsequências, santuário de vívidas peles complexas que descamam e deixam o nu à mostra. Deixo os lugares vazios, todos os lugares, à espera de me desacorrentar dos pesadelos cáusticos. Para deixar o lugar sitiado e mostrar, embebido em orgulho, as mãos desenfreadas ungidas a bondade, as palavras apenas dóceis e o olhar refulgente.

25.6.15

E não somos todos imbecis?

Eagles of Death Metal, “Speaking in Tongues”, in https://www.youtube.com/watch?v=bnrS4lFnGQk
Umberto Eco lamentou que as redes sociais deram voz aos imbecis. Mas será mesmo um lamento?
Tempos modernos, vícios novos. Tempos modernos, novos formatos de características pessoais. Diz-se que as redes sociais cristalizam a democratização da palavra na ponta de um teclado em qualquer computador, à disposição de qualquer pessoa. Escreve-se, opina-se, perora-se, desabafa-se, reflete-se, interroga-se, contrapõe-se, denuncia-se, apostrofa-se – e tudo o mais que se possa supor, com o beneplácito das redes sociais que, ainda por cima, são gratuitas e intuitivas.
Dantes, a imbecilidade notava-se quando as pessoas falavam, ou quando manifestavam certos comportamentos. As pessoas não se punham nuas através da palavra escrita. Hoje, a palavra é partilhada com a imensidão que é um público virtual que possa esbarrar nessa palavra. Dantes, a imbecilidade andava mais escondida. Agora, tornou-se democrática, nua – ou vulgarizou-se, no sentido de que se tornou mais vulgar pela maior frequência com que aparece vertida na palavra escrita publicada em formato virtual.
Umberto Eco lamentou este fruto da inovação tecnológica. Num certo sentido, percebo-o: quantas vezes não acontece lermos palavras que, pelo nosso estalão julgador, tomamos como imbecilidades? E quantas vezes não ficamos irritados com as exibições de estultícia? (E mais ainda quando são disfarçadas de engenho intelectual, como se fossem o pó de arroz de uma erudição esfregada nas fuças do cidadão comum.) Mas é possível fruir um sentido diferente quando os imbecis ostentam imbecilidade em público (sobretudo quando se acham ungidos de uma dose de intelectualidade acima da média): os imbecis são engodo humorístico. Dispõem bem. Uma barrigada de riso, depois de os ler.
Os candidatos à imbecilidade, aqueles que destapam o véu da timidez e publicam em letra de forma para a imensa comunidade virtual que consome o género, devem interiorizar o risco associado à função. Não somos apenas julgadores do que os outros escrevem. Também somos julgados pelo que escrevemos. O problema: é sempre mais fácil detetar a imbecilidade alheia. Eu, por exemplo, não dou conta dos disparates que publico por aqui.