6.5.16

Floresta (17)

The Sisters of Mercy, “Marian”, in https://www.youtube.com/watch?v=yVPx4zalkiM
Uma frase dita pela filha ficara a fermentar no pensamento. Foi quando ela, incrédula com a vontade do pai em mudar a forma como se relacionavam, com o fito de não serem distantes e quase estranhos como dantes, perguntou se a súbita vontade de mudar os azimutes não correspondia a uma redenção por sua vez explicada por uma doença terminal de que o pai tomara conhecimento. Ele replicou, intempestivamente, que tinha uma saúde pujante, que a sua vontade de ser mais próximo dos filhos não se devia a nenhum arrependimento forjado na ponta do revólver de uma doença sem remédio. Mas à pergunta da filha seguiu-se uma cisma: poderia dar-se a circunstância de estar doente e, mesmo não sabendo por que baias se cerzia a doença, que a vontade de corrigir maus comandos dos tempos idos se devesse a uma redenção antes do tempo, caucionada por uma doença sem remédio que ele ainda não sabia existir?
Marcou consulta no médico. O médico não avançou diagnóstico. Mandou fazer análises e outros exames e depois que voltasse ao consultório. Assim fez, estranhamente obediente. (De outras vezes, perante o ar grave do médico ao prescrever análises e exames, sempre fora insubordinado). Fez os exames e as análises com uma urgência singular. Não que estivesse com medo de ficar refém de uma doença sem cura – e ficou admirado que o pavor da doença não fosse acendalha do medo, logo nele, que hospedava tantos temores, alguns por assuntos picuinhas. Era só para confirmar a suspeita da filha. Só para confirmar se a sua mudança era paradoxal, ou se era uma mudança que vinha das entranhas, comandada por uma força invisível que habitava dentro dele e não conseguia domar. Estar ou não estar doente fazia toda a diferença. Repetia, para se convencer do que dizia em surdina: não era por causa da doença, mas para entender se a doença fora a força motriz da mudança que até ele julgava improcedente.
Voltou ao médico. Depois de uns vagarosos minutos de apreciação dos resultados das análises e dos outros exames, o médico, impassível, comunicou que os exames não acusaram nada. Continuava com uma saúde que fazia inveja a homens mais novos. Incrédulo, perguntou ao médico se não havia sinais que pudessem motivar desconfiança sobre uma doença remota, de tal forma que o médico o aconselhasse a fazer exames mais profundos, ou outros exames que pudessem descobrir o que os exames já feitos não tinham sido capazes de detetar. O médico levantou a cabeça na direção dos olhos do homem, pôs cara de caso e disparou, rudemente: “o senhor está à espera que eu lhe invente uma doença?
Confirmava-se: não era por ação da doença que beijava os contrafortes da bondade, da harmonia com os mais próximos de si, da redenção cuja origem não sabia encontrar nem pôr freio. Se não era uma mudança determinada pela convocatória da doença, só podia ter origem em si. Sem fatores exteriores a comandá-la. Nos momentos de lucidez – e tinha por momentos de lucidez aqueles em que não era apoderado por um eu escondido que tratava de compor os danos de uma vida inteira – procurava perceber o que determinava a pulsão para o contrário do que sempre fizera, do que sempre fora. É que se houvesse arrependimento a esvoaçar sobre ele, o arrependimento podia ser a etapa prévia da mudança – a mudança ditada pelo fervor do arrependimento. Mas ele continuava, nestes momentos a que teimava em chamar lúcidos, de pés firmes na autoria de todos os atos que o vulto seu julgador arrolou como delitos expostos à punição. Nos momentos de lucidez, os filhos eram apenas matéria orgânica, o produto do sexo com a consorte. Os filhos é que tinham de agradecer a existência aos progenitores, à interação orgânica que umas tardes de sexo causaram. Não fosse isso, eles nem existiam.
Fora dos momentos de lucidez, gravitava no seu oposto. Era como se o eu que conhecia entrasse em hibernação, saindo de si para a posição de espetador – e de um estupefacto espetador – dos atos de bondade, da contrição pungente, da demanda por uma redenção própria de quem parecesse estar a dizer adeus à existência, não querendo carregar para a morte os pouco recomendáveis atos de antanho.
Demorou a mentalizar-se da dicotomia que tomara conta dele. A certa altura – e já depois de uma conversa com o filho parecida com a que tivera com a filha – já não arrumava em categorias estanques o que ele dizia serem “momentos de lucidez” (fazendo-os corresponder ao que sempre conhecera de si) e os “momentos de desatino” (por inerência de um eu que julgara não ser ele, em que tudo era feito por antinomia ao que nele sabia ser habitual).
Se calhar, a mudança em fermentação era mesmo sinal de envelhecimento. Correspondia a uma das possíveis explicações para as mudanças estruturais que se operam em muitas pessoas. Velhas e cansadas, abdicam de serem o que eram. Dizem os teóricos dos meandros das almas, a mudança tanto vale para quem faz a travessia do mal para o bem, como vale em sentido contrário. Ele tinha um problema inicial com esta teoria: não admitia que o “bem” e o “mal” fossem objetivados. Descontando não se rever neste pressuposto, aceitava o resto da teoria. As pessoas, quando caminham para a senescência, amaciam. Ficam predispostas a serem diferentes do que sempre foram no transato.
Julgava ter, enfim, percebido os estados de alma voláteis que tingiam os dias com cores diferentes.   

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