9.5.16

Floresta (18)

Pixies, “Where Is My Mind” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=I_aBmrYChfQ
Se havia impropérios que não aceitava, eram os que algumas pessoas dirigiam ao futuro. Nem parecia seu, ele que sabia ser um homem onde vicejavam as sombras densas, as sombras que embaciam o olhar que se deita sobre o porvir. Às vezes, quando conversava com outras pessoas e as via sorumbáticas perante as almofadas do futuro, ficava incomodado. Nesta fase de renovação interior, o incómodo doía-lhe mais. Não percebia os viciados em nostalgia, como se conseguiam alimentar de um tempo vetusto. Era como se essas pessoas vivessem confinadas a uma floresta interior, com vegetação densa e por vezes impenetrável, com o olhar impedido de se arejar para além das fronteiras do tempo deixado no tempo pantanoso. Não ousavam os deslimites do tempo, justamente os que são franqueados quando os olhos procuram alcançar para além do que o céu deixa à mostra.
Um dia, ao almoço, entre dois copos de vinho e meia dose de bacalhau à Braz, conversava com um colega de trabalho, um homem vinte anos mais novo – em abono da verdade, dos poucos que se distinguiam na mediocridade do escritório. Em dizendo o outro homem que estava em planos para a boda, quis-se inteirar do palco interior do seu interlocutor.
- Não sei se te dê os parabéns.
- Podias ao menos ser simpático.
- Preferes que seja simpático ou honesto?
- Atendendo à decisão que tomámos, e já deves ter percebido que estou contente, devia o respeito comandar-te os parabéns, mesmo que por dentro não seja o que sentes.
- Lamento. Não consigo fazer de conta. De mim apenas contas com a franqueza.
- Noto rancor. Tenho de o perguntar: é a tua experiência de vida que serve de esteio a esse rancor?
- Se me perguntas se tenho um casamento feliz, digo: não, não tenho.
- E achas que deves projetar a tua história de vida para o palco onde transitam outras pessoas? Não achas que cada história de vida é única, irrepetível?
- Pode ser que sim. Mas para além da originalidade de cada história de vida sobejam as convenções a que se abraçam comportamentos. Aí podemos cair nas padronizações.
- Se te pedisse um conselho, dirias que faço mal em casar?
- Sim. E, repara, nem sequer conheço a mulher com quem vais casar.
- Há aqui algo que me perturba. Das conversas que fomos tendo enquanto amesendámos juntos – e já vão alguns anos –, por várias vezes te ouvi a defender o lastro do futuro. Que o passado não tinha importância nenhuma. Recordo como te insurgiste contra os demónios do tempo pretérito que colonizam a ação dos nostálgicos, como eles ficam empenhados em viver como se de uma hibernação se tratasse.
- Acusas-me de incoerência?
- Parece que te serves da tua experiência pessoal para desaconselhar o matrimónio. À uma, como admites, nem sequer conheces a mulher que vou desposar. Por outro lado, essa recomendação negativa só se justifica pelo teu passado. Essa é a tua contradição: só te serves do teu passado – e de um passado de que não te sentes credor – para medir a bitola ao passo da vida que vou dar. Eis como o passado dissolve um futuro. E eis a tua incoerência.
- Talvez estejas certo. Admito que o instinto me fez desaconselhar o casamento. E que fiquei refém de uma prescrição que me incomoda. O que queres? Quem não tropeça nas suas contradições internas?
- Quer isso dizer que já não me desaconselhas o matrimónio?
- Não sou ninguém para te dar conselhos.
- Vejo-te a recuar...
- ...Não é isso. Se colocas a questão nesses termos – de eu vir às arrecuas, só para vingares o desconforto pela incongruência – já venceste. É um jogo que não me importa.
- Não te queria aborrecer. Só estava a colocar-te perante os teus dilemas.
(Depois de um silêncio que o outro homem julgou ser revelador de incómodo, fez uma inversão de marcha no raciocínio que o deixou atónito. Ele não estava a digerir o que, noutros tempos, teria considerado uma afronta. Foi diferente. Foi como se uma particular epifania se soltasse das águas paradas, pois o que iria dizer era a negação da advertência que acabara de dirigir ao outro homem.)
- Vou-te dizer o seguinte: conserva a tua noiva, pois o amor é um património raro.
- Agora não percebi. Há pouco sugerias que era um disparate, agora dizes-me para avançar e, suponho, para ter a minha futura consorte pelo tempo perene.
- É isso.
- Explica-me, que já não te entendo.
- Às vezes temos medo de um eu que habita nas profundezas. Fazemos de conta que ele não existe. Fazemos figas para a transfiguração num eu que julgamos ser útil para sobreviver no mundo que temos por hostil. Fortificamos esse arremedo de eu e nem temos a menor ideia que somos autores da nossa maior emboscada. Andamos muito tempo a fugir de nós mesmos, desse eu substituído por um eu recauchutado. E, depois, fica mais fácil desprezar os que gostam de nós. Faz parte do processo de desenraizamento do eu que queremos metido em subterrânea matéria. Como podemos aceitar os outros, se deixamos de nos aceitar?
- Há pouco fiquei com a ideia que nada te ligava à mulher com quem casaste. Fico, agora, com uma impressão diferente.
- O mal é o que demora a perceber. O mal, ainda maior, é quando ganhas lucidez para perceberes o tanto mal que fizeste aos que te amam.
- Um pedido de perdão não vem sempre a tempo?
- Não sei. No que me diz respeito, temo, sinceramente, que seja a destempo.
- Se procurares, saberás. Como tu tantas vezes disseste: o que conta é a matriz do tempo vindouro. Um perdão resgata o tempo desgastado e já inerte, porventura as memórias pungentes. Mas se é necessário para prover um tempo diferente no tempo que vem para a frente, esse é um custo irrenunciável.

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