11.5.16

Floresta (20)

Iggy Pop, “Gardenia” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=79LnaLLLwnY
Já não sabia há quanto tempo sentia o ar límpido e o céu desanuviado. Reformulou: tinha a certeza que nunca sentiu tamanho alívio. Era lugar-comum dizer que o corpo não lhe pesava nada. Porventura, o descargo das consciências avulsas que o tinham interpelado ajudava. Talvez mais importante era a ideia de que apenas o tempo por haver era abraçado nos pensamentos. Às vezes, lá assomavam à superfície as interrogações que fermentavam dúvidas, as dúvidas pungentes: seria a predisposição para o futuro apenas um ardil para esquecer o passado de que vinha acusado? Não acreditava que a pergunta tivesse vencimento. O problema não era fazer de conta que não fora autor de todos aqueles delitos que correspondiam ao laudo de acusação; reconhecia a paternidade dos factos e, repetiu-o à exaustão, para que todas as reincarnações de consciência pudessem tomar conhecimento, não se arrependia de nada do que fora feito.
Outra interrogação turvou o horizonte: a predisposição para o futuro, no que ela tinha de vontade para mudar o que fora dantes, não podia ser entendida como um arrependimento por interposta ação, sem que a palavra fosse usada? Primeiro, se a ambição era a de esculpir um porvir diferente, sem a mácula de antanho, é porque a vontade de mudar estava sinalizada. E a vontade de mudar teria o condão de revelar não apenas uma vontade de mudar, como se ela fosse endógena, mas que a vontade vinha agitada pelo reconhecimento dos males praticados em tempo pretérito. Segundo, o arrependimento, a simples evocação da palavra, causava-lhe náuseas. Porventura afrontando o imenso orgulho em que se considerava imerso. Podia haver arrependimento, desde que a palavra “arrependimento” não fosse exortada.
Tomou uma resolução: de cada vez que uma torrente de interrogações viesse à tona, atormentando o pensamento, teria de terçar as melhores armas para oprimir tais pungentes interrogações. Teria de desviar o pensamento. Só contava a paisagem que prometera como lugar de visitação futura. Não podia rescindir com o tempo aliviado em que se sentia. Não podia ser o próprio fautor das suas angústias. Os tempos recentes tinham sido pródigos em sobressaltos, em noites com o sono invadido pela insónia, em agueiros cheios de águas tumultuosas.
A serenidade podia estar sob sequestro. Um dia, ao almoço, quando amesendava com o cunhado que casara com a irmã do meio da sua consorte, passou no noticiário, na televisão sensacionalista que estava sintonizada, uma notícia que o deixou inquieto. Dizia a notícia que a polícia estava a investigar um crime cometido na entrada sul da floresta. Um homem fora encontrado esvaído em sangue, com um golpe profundo acima da nuca. O corpo não tinha identificação. Esperava-se que depois da autópsia fosse possível descobrir o seu nome. Dizia a notícia, parafraseando o porta-voz da polícia: as investigações estavam adiantadas e a polícia tinha pistas sólidas sobre o autor do crime. O jornalista queria pormenores. O porta-voz recusou, escondendo-se no segredo da investigação criminal. Sobressaltado pelo que acabara de ouvir, não conseguiu esconder o estado que o apoquentava. O cunhado perguntou o que se passava. Respondeu que estava tudo bem, sem conseguir disfarçar a angústia que incinerava as veias. E nem os visíveis suores frios que desciam da testa pelo rosto foram suficientes para capitular perante a insistência do cunhado (que julgou que ele estava a passar por uma súbita indisposição).
Os dias que se seguiram foram de regresso ao sobressalto permanente. Era estranho – pensou consigo mesmo – como não dera importância ao episódio da morte do homem que se dizia mandatado pelo vulto para falar em nome da sua consciência. Quando irrompiam as memórias da noite assustadora na floresta, inclinava-se para a ideia de que se tratara apenas de um pesadelo. Pesadelo com contornos tão nítidos que a ilusão tinha fronteiras delgadas a separá-la da realidade. Mas, ainda assim, um pesadelo. Mais a mais – interiorizava –, mesmo que não tivesse sido um pesadelo e tudo aquilo se tivesse passado, a morte daquele homem às suas mãos não devia causar comoção. Nem devia ser crime. Ele podia lá ser que um homem de carne e osso fosse a transfiguração de um vulto por sua vez personificação da sua (diziam-lhe) atormentada consciência? Um homem de carne e osso (e aqui nem interessava saber se era verídico que representasse o vulto) não podia corporizar a consciência de outra pessoa. Aquele homem não podia ser de carne e osso. Estava certo que a sua morte não deixara vestígios de um cadáver. E que, pouco depois de ter consumado o assassínio da improvável personificação da sua consciência, não sobravam vestígios do acontecimento no lugar onde o acontecimento tivera lugar.
As suposições estavam erradas. O corpo voltava a ser incomodado por um peso insuportável. As cefaleias constantes tomaram lugar em palco. Ele sentia-se acossado. Já não sabia se não devia sair à rua, não fosse um polícia à paisana dar-lhe caça. Mas talvez não fosse boa ideia ficar em casa. Se a polícia tinha pistas sólidas para apurar o homicídio na floresta, depressa dariam com a sua morada. A prioridade era a congeminação de um plano de fuga. Com muita pena sua, tinha de sepultar os tempos de ar aliviado e já não podia consagrar à família e aos amigos, como projetara, todo o seu eu.

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