14.11.16

As pessoas impossíveis

Tricky, “Hell Is Round the Corner”, in https://www.youtube.com/watch?v=E3R_3h6zQEs
Dizia que há pessoas que não apetece conhecer para além da justa medida. Passando dessa medida, pode desapetecer a pessoa. Dava o exemplo de uma poetisa. Lendo os poemas, só apetecia conhecê-la. Devia ser uma pessoa com um sentido de humor singular. Quando a viu num programa de televisão, logo se arrependeu. A poetisa em carne e osso parecia uma pessoa singularmente irritante. A extravagância ressoava a artificialidade. Os problemas de dicção também incomodavam – mas devia ser por conta da extravagancia ardilosa. E deu consigo a pensar se o juízo não era injusto. Não se podia ter como impossível alguém por um assomo da sua personalidade. Há quem se enerve à frente das câmaras de filmar e esconda o seu verdadeiro eu atrás dos nervos.
Insistia na tese: há pessoas a quem não se deve dar o benefício da dúvida. É preferível – insistia – tê-las como conhecidas, mantendo uma distância (que a apetência pelos lugares-comuns fez enfatizar “uma distância higiénica”). Era preferível ficar com a impressão que apetecia conhecer tais pessoas um pouco mais, mas manter a lucidez de continuar a ter a distância de uma trela que trava cumplicidades escusadas. Argumentava: quando damos a mão e há pessoas que entram no reduto em que poucas têm autorização para entrar, depressa as camadas mais densas dessas pessoas se atrevem a incendiar atritos.
Depressa fermenta um arrependimento. Não demora até a essa pessoa entrar no grupo dos proscritos. Com a agravante de ser mais funda a desilusão: se era tão promissora essa pessoa que lhe foi estendida a mão, e depois acabou por se perceber ter sido um erro tremendo. A desilusão não é por a pessoa que se prometia numa irradiação de interesses múltiplos ter naufragado num subnível a que pertencem as pessoas desinteressantes; foi desilusão por ter havido um erro grosseiro de apreciação.
Depois de tanto tempo ouvir, em silêncio, a tese explicada ao pormenor, perguntou-lhe se nunca tinha dado conta da sua sobranceria ao narrar os cantos da tese. Como parecia não ter entendido a interpelação, refez a demanda: alguma vez teria desconfiado que ele também era uma pessoa desinteressante?

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