1.11.16

Sotavento

The Cult, “Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=RD5b_0QB0wI
As velas arrumadas mal o vento ameaça num sobressalto sem cautela. Não se quer perder o que custou a arregimentar. Ao primeiro sinal das areias em desengonçada coreografia, contra a sua vontade (que o seu lugar é junto ao chão, servindo de espelho vivaz quando abraçam a cintilação do sol), o vento promete uma tempestade outonal já avisada no boletim meteorológico.
Os pescadores recolhem as embarcações em porto seguro. As aves já pressagiam a fúria anunciada e ensaiam voos urgentes que as hão de levar a refúgios zelosos, onde nem a chuva nem os despojos do vento terão entrada. Os sem-abrigo são convidados pela polícia para se recolherem aos túneis do metro. Não se sabe se a polícia conseguiu falar com todos, pois não é certo o seu cadastro. Há comerciantes que se precatam, pregando tábuas na parte inferior das portas e janelas; faz-se constar que um dilúvio fará companhia ao vento e que este será seu adjuvante no efeito devastador.
Pôs-se um estado de sítio, com os meteorologistas a hastearem o alerta vermelho. Suspeita-se que no dia seguinte não haverá comércio, nem escolas, nem escritórios ou fábricas em função. As pessoas são convidadas a não saírem à rua assim que se fizer madrugada. Só os bombeiros e os polícias estão de pré-aviso. Podem ser precisos para acautelar “ocorrências” (como manda a retórica convencional da imprensa). Desconfia-se que será a pior tempestade dos últimos anos. O outono a despejar a sua ira sobre a terra que adormeceu na sombra dos proventos estivais. Há quem não vá dormir durante a noite: comerciantes temendo por danos avultados, os autarcas a acompanharem os estragos, jornalistas fazendo o “ponto da situação”, meteorologistas de olho afiado sobre as imagens de satélite e os dados mais recentes e os modelos matemáticos, sabendo que não conseguem meter uma trela na tempestade.
Ninguém sabe dos mendigos não inventariados. Ninguém sabe onde vão parar os cães e os gatos vadios. Na amálgama da tempestade, alguém terá a função de fazer a escrita contabilística, os seus despojos. A menos que os meteorologistas tenham errado por excesso e a tempestade tenha passado ao lado (como é frequente acontecer, para tristeza dos estudiosos da meteorologia).

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