31.8.17

Tiro ao alvo


Beck, “Dear Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=ERoS6y5zE0Y    
O peito do tamanho de um esporão elefantíaco. Muralha pétrea. À prova de bala. Caixa forte com combinação inexpugnável como código de acesso. É para isto que serve um tiro ao alvo. Na gravitas das coisas que precisam de expiação, contra a mácula dos outros que são fautores de perfídias e passam incólumes, imberbemente imundos nos despojos da sua irresponsabilidade.
O peito inquebrantável, à espera das balas – das balas que deviam ser devolvidas ao destinatário certo, os merecidos algozes que fermentam as aleivosias. Deste lado, o peito preparado para o tiro ao alvo. É seu ofício. As balas que venham, de todos os calibres, disparadas com a força que vierem, com a persignação da franqueza ou com a indiscreta surpresa. Tanto faz. É sempre um tiro ao alvo. E que é preciso para a superação das crueldades que fervilham nas mãos podres dos que as cometem e que são sofridas por outrem, injustamente. Há sempre um destinatário das crueldades. Nunca terminam órfãs. A jusante, convém haver um tiro ao alvo que seja a barragem onde se faz a descarga das putrefatas maldades defecadas por pobres mentes pobres.
É um efeito dominó, com a exprobração a cair em cascata até repousar, seu leito final, no tiro ao alvo. Não tem cabimento as dores de parto de gente malparida desaguarem em quem é alheio a tais impiedades. Quase como se houvesse uma passagem de testemunho, à maneira das estafetas no atletismo. Pois a vítima primeira das crueldades é a que sofre a maior iniquidade – à distância, mais ainda do que o alvo dos tiros que encaixar em seu peito a balística pejorativa. O tiro ao alvo existe para amaciar as dores lancinantes causadas pelo injusto opróbrio que se abate sobre a vítima primeira das perversas malfeitorias. Dividindo as dores de parto dos malparidos que covardemente as endossam para limparem a aura da sua irresponsabilidade.
Ser o alvo dos tiros não é empreitada para o comum dos mortais. Convém armação a preceito para encarnar tiro ao alvo. Só um cimento inamovível explica a justaposição de funções. É preciso abrir o peito às balas e assumir, de frente, ser o alvo do tiro. Assim manda a voz uníssona e o esteio-aço.

30.8.17

Contrarrelógio


Jambinai, “Warm”, in https://www.youtube.com/watch?v=tsEuCyaamZ4    
Eis empreitada impossível: quem consegue vencer o relógio? Deportos mandam os praticantes contra o relógio, numa variedade que se apoda “contrarrelógio”. À partida, já se sabe o resultado quando alguém se atira contra o relógio: perde. Na graduação dos competidores, falta saber quem perdeu por menos. Quem apanhou a menor cabazada do relógio, ou aquele que contou menos tempo na derrota garantida contra o relógio. Não é proeza de que ninguém se possa gabar.
Quem tem a veleidade de se emparelhar numa competição contra o relógio e, em sabendo que a principia como derrotado sem remédio, acha incentivo para tirar partido da demanda? Só se for para derrotar os competidores. Mas, nesse caso, está errado chamar “contrarrelógio” à contenda. A função mede-se no cotejo do atleta e dos concorrentes. O relógio é apenas o intermediário, não o ator principal (como se supõe ao ler “contrarrelógio”). Eis um caso de erro de eloquência dos lugares-comuns assim entronizados na língua costumeira.
Na exterioridade do desporto, há contrarrelógios todos os dias. A toda a hora. Ninguém pode dizer que consegue ficar imune à tirania dos relógios que fazem correr as medidas do tempo contra nós. Por mais que nos apressemos. Por mais que estejamos com urgência em abraçar as empreitadas para as quais se define um estalão, a espada arqueia-se à medida do compasso do relógio que é o contratempo indomável. Podemos fazer de conta: as hibernações, os parêntesis que unilateralmente metemos no tempo, como se fosse possível suspendê-lo, no boicotar do relógio que dita os comandos do tempo que contra nós se insurgem; podemos ensaiar tudo isso e o demais que venha aos braços da criatividade, os ponteiros que acompanham a marcha irresolúvel do tempo não se simulam nos ardis congeminados para fazer de conta que o tempo se interrompe. Também corremos contrarrelógio e estamos condenados a perder.
Há um segredo para caldear o intempestivo malogro? Não temos de dar conta da passagem do tempo. Nem temos de o apressar. Ele segue a marcha determinada. Se o apressarmos, ainda nos faz a vontade. Não adianta a intentona contra o tempo. Podemos amaciá-lo entre as mãos, desligando da corrente as frenéticas vozes interiores que são um clamor ao apressamento do tempo. Na altura certa, já não tem serventia. Nem o tempo, devidamente exaurido. Nem o arrependimento de o termos esgotado a destempo.

29.8.17

O estranho caso dos pseudónimos virados do avesso


Wordsong, “Opiário”, in https://www.youtube.com/watch?v=tdoeehDtTS0    
Não parava quieto dentro da mesma personalidade. Desmultiplicava-se ao sabor dos pseudónimos criados sem parcimónia. Prolixo, dividia-se consoante os humores premiados ao pseudónimo que emergia com a espuma do dia.
Uns dias contava-se como uma personagem, com os seus maneirismos, os seus feitios, as suas idiossincrasias, as suas maneiras específicas de se dirigir aos outros, os seus gostos peculiares. À mudança de pseudónimo tudo mudava em conformidade. Vinham ao de cima as contradições entre as diferentes personalidades acoitadas nos diferentes pseudónimos. Todos davam conta. Menos ele. Os poucos que se importavam com a disfunção esgrimiam a bandeira, não fosse dar-se o caso de ele não ter notado que podia ser apenas uma patologia (e este “apenas” era uma contradição de termos). Não admitia as interpelações. Reagia desabridamente, o que foi pondo as pessoas com ele preocupadas fora do seu radar, afastadas unilateralmente, sem rebuço.
Houve um momento em que se achou sozinho. Sozinho com as diferentes personalidades. Não tinha mãos a medir com os seus deslimites. Ainda havia quem contemporizasse, encantado com a capacidade para se desmembrar em diferentes eus consoante os predicados do dia. A seu favor, dizia-se que ele não cabia dentro de si. Tinha de extravasar dos limites do eu, dividindo-se à vez, e sem critério, nos alter egos que sentiu soerguer de cada vez que se achava exíguo para comportar toda a sua inteireza. Era como se dentro dele corressem diferentes, e contraditórios, eus. Subscrevia a psicanálise favorável. Disfarçava desconhecer a psicanálise oferecida em desobediência da que lhe era favorável. Um certo caso de autismo.
Outros, com notória indiferença, limitavam-se a desdenhar da proeza, que o não consideravam ser de tal jaez. Se era prolixo em personalidades, e se elas tinham o selo da contradição interna, não era por ser de uma estatura tamanha que não coubesse dentro da personalidade que lhe correspondia. Irascível, desconfiado e até sociopata, não era um caso de admirável transfiguração em alter egos. Tudo não passava de uma metódica exaustão que se consumia por dentro de si mesmo. Quando tinha a oportunidade para tirar de si o avesso, insurgia-se. Insurgia-se contra si mesmo. Mas não admitia. Afinal, não era o arquétipo de diferentes pseudónimos por espontânea ação. Era um embuste. Assim como todos os alter egos em que nidificava.
A certa altura, já não sabia a qual dos pseudónimos correspondia. Um caso manifesto de correção por excesso.