31.10.17

A amnésia do enredo

Angel Olsen, “Special”, in https://www.youtube.com/watch?v=wLvIOzIqljc
A corrupção dos parágrafos vinha ao de cima. Era quando se perdia o fio condutor do enredo. Em sobressalto contínuo, interrompendo a narrativa por se soerguer outra que a atropelava. Sobejava uma impressão de descontinuidade, o malogro do enredo global.
A vinha velha perdia as folhas mais devagar quando chegava o outono. Os antigos diziam que era a paradoxal prova da sua juventude. A vinha nova, que também tinha os seus atributos, cansava-se depressa. Era como se a velhice fosse caução de uma paciência que não é valorizada pelos mais novos. /
Sabia que a fábrica escondia segredos. Sempre se ouvira dizer que é preferível não saber os exatos segredos da produção de salsichas (para não deixar de comer salsichas). Um dia perguntou ao amigo do tio que fora operário numa fábrica destas. Ele, em absoluta serenidade, depois de levar à boca mais um trago de vinho, desconversou. /
Era uma razia. Na pontuação dos argonautas, os navios aperaltados não tinham cabimento. Não perdoavam os vestígios de ferrugem. Ficavam desiludidos ao verem, com os olhos que não eixavam mentir, como a ferrugem se entaramelava com o casco que acamava a demais pintura. E por mais que os engenheiros navais assegurassem a navegabilidades dos navios, os argonautas, depois de terem sonhos com a autoridade para a segurança alimentar, teriam (se fossem autoridades constituídas com esse propósito) arrestado os navios inspecionados. /
Não correra bem a corrida de táxi. Ela foi enganada por um condutor boçal e deselegante, antipático. Não teve coragem para o interpelar, enquanto seguia no GPS do telemóvel as voltas e reviravoltas do taxista com o fito de se cobrar mais caro – e de a enganar. /
Disseram, e de fonte segura, que há juízes que fazem fé nas sentenças dos colegas e as assinam às escuras. Sempre ouvira dizer que, por imperativos de segurança e um módico de desconfiança metódica, não se deviam ler documentos na diagonal. Estes juízes ainda conseguiam menos. /
Periclitante. Assim se encontravam as casas tartamudeadas depois de uma intempérie sem precedentes. Era caso para acusar quem era acusado de ter culpas no aquecimento global. Maldita contrariedade, que não há avarentas empresas a convencerem-se da finitude dos recursos. /
Por onde tinha começado? Já não sobra lembrança. Podia ser sobre qualquer coisa. O que conta não é o fio condutor (ou a sua ausência, que vem mais a propósito). Valha-nos a fermentação de assuntos que surgem numa erupção contínua.

30.10.17

O homem que era dono do futuro

Cat Power, “Cross Bones Style”, in https://www.youtube.com/watch?v=aW2PcOyAWwM
Era um estivador, um simples estivador. Sem vida para além da dele, dos pequenos vícios, mergulhado no seu inconsequente egoísmo, sem ninguém de quem cuidar nem ninguém que dele pudesse cuidar se houvesse necessidade. Um homem de rotinas. De pouca instrução. Simplório. O que ninguém sabia, é que este homem era o dono do futuro. Do futuro de todos os outros homens. Nem ele sabia. Nem desconfiava, sequer. Era um anónimo habitante do planeta entre milhões de milhões de seres que a ciência julgava iguais pelos cânones da biologia. Fora-lhe destinado um dom: ditar o futuro de todos os seus semelhantes. Nisso era dissemelhante de todos os demais.
Ele nunca poderia saber que tinha o dom nas mãos. Através de uma conjugação de elementos cósmicos, de aturadas equações e de sofisticados algoritmos – ou de cálculo infinitesimal – o que quer que fosse: ao homem simplório, modesto trabalhador das docas sem ambições se não terminar o dia com um par de uísques no bar perto da residencial, um jogo de futebol de quinze em quinze dias, a sorte na lotaria (confirmando-se que em não há milagres em casa dos seus fautores: mau grado ser penhor do futuro de todos os demais, a predestinação não podia ser usada em proveito próprio: nunca ganhou um centavo em jogos de sorte e de azar), era a pauta caótica que ditava o andamento do mundo. Um simples gesto seu determinava o porvir de muita gente de que ele nem imaginava ser gente existente. Se houvesse lugar a metáforas, dir-se-ia que é como o bater de asas da borboleta que dá origem a uma tempestade num algures longínquo – mas não é tempo para lugares-comuns.
Podia-se inscrever a seguinte interrogação no roteiro: seria deus, disfarçado de comum dos mortais, propositadamente disfarçado da pessoa mais comum que se poderia imaginar – nem um inatingível poderoso, residente da casta superior; nem o miserável mendigo sem pergaminhos, desmentindo os marxistas lugares-comuns que a fortuna imaterial se encontra nos descamisados? O homem que era dono do futuro não sabia: que um simples gesto seu, sem propósito outro que não fosse a rotina – ou os atos não rotineiros que, por da rotina se escaparem, também se traduziam em consequências – determinava um nascimento, um sorriso inatendível, uma frase pungente, um casamento inesperado (ou um casamento esperado), decisões fadadas ao arrependimento, o relógio contra a maquilhagem do tempo, uma doença, um beijo fora do tempo, uma morte sem remissão, um cataclismo sórdido, uma descoberta para o bornal da ciência, a inspiração para um momento de arte, uma simples bebida no lobby do hotel e a companhia que não se dava por esperada – enfim, uma constelação de milhões de milhões de atos instantâneos, demorados na clepsidra do tempo, deixando atrás de si o rasto da história. E o caos.
O homem que era dono do futuro morreu sem saber da sua predestinação. Ainda bem. Nunca é de confiar, a espécie humana.

27.10.17

Compensa ser bandido?

Mick Harvey, Crystal Thomas & the Rockwiz Orchestra, “Bonnie & Clyde”, in https://www.youtube.com/watch?v=_iPjnUjKQAQ    
Leu aquelas obras que dispõem sobre a ética da lei. Sobrepôs-se às fórmulas herméticas dos autores, tentando perceber o conceito de moral – como era possível objetivá-la (e sempre mergulhou num mar de dúvidas). Era assaltado pelo incorrigível desejo de transitar nos antípodas da ordem estabelecida que não admite dissensões ao estatuído legal.
Contudo, não passava das ameaças esboçadas nos contrafortes do pensamento, desenhando cenários mentais de transgressão, de rebeldia indomável, de existência à margem do aceitável, quase como se fosse preciso exilar-se no paralelismo do absurdo só por si não tido como tal. Depois, era a hora das resoluções e os pés tinham de encontrar firme chão. Os imperativos que sobravam das intensas deambulações do pensamento não colhiam na sua aplicação prática. Concluíra que obedecia a uma ética privativa, terçada por dentro de si e em seus limites se esgotando. Obedecia ao instituído legal por um imperativo interior se sobrepor, mesmo que dele sobreviesse um choque frontal com as vigílias da criatividade, negativamente inspirado nos compêndios que instruíam a temerosa obediência às leis e seu espírito.
A insanável divergência interna estava sob linha de fogo, dando o flanco ao desafio. Chegavam ao conhecimento provas de que o banditismo compensava. Não só porque seus autores obtinham honorários que não eram acessíveis aos escrupulosos zeladores da legalidade, como também por não serem atirados para o caldeirão das responsabilidades, assim não apuradas – o que cerceava a hipótese de punição pelos comportamentos não tolerados. Ser bandido não determinava a exprobração. Os outros, pulcros seguidores da ética da lei, só se andassem distraídos não tinham incentivo para a rebelião. Como podia o atropelo da legalidade não ter consequências? Como aceitar que os infratores fossem recompensados ao não serem punidos, deleitando-se com as vantagens da não recriminação?
A consciência podia expor-se a fendas. O interior código de conduta, esteio não escrito e apalavrado no casuísmo da análise, estava sob os auspícios de uma crise existencial. Tudo indicava que a ética da lei tinha contraindicações. Tudo indicava que não era mal pensado ser bandido. Faltava a sentença apalavrada pelo denso manto da consciência.