29.11.17

O gordo vai à baliza

Nick Cave & the Bad Seeds, “Red Right Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=RrxePKps87k    
Éramos altivos, incultamente arrogantes: ao pobre do gordo, vasilha das sobras, a baliza destinada. E nós, os elegantes, os pujantes na forma física, tratávamos de arranjar o jogo no resto do campo. O gordo tinha utilidade: abundante nas carnes, ocupava mais espaço na baliza: mais difícil ficava o golo para o adversário. O gordo, resignado com a disfunção que não o atormentava, anuía. Era o modo único de participar no jogo.
Hoje, não sabemos a quantos de nós restaria a incumbência de ir para a baliza. Não sabemos do paradeiro uns dos outros – e muito menos do gordo. Ninguém sabe se o gordo não fez uma cirurgia para implantação de banda gástrica e teve sucesso na empreitada, passeando-se garboso e irreconhecivelmente elegante. E quantos de nós, entretanto capitulando na preguiça que, segundo alguns compêndios, rima com qualidade de vida (num embuste rigorosamente alinhado para entreter consciências mal-amanhadas), quantos de nós tombaram no ardil do peso excessivo e das panças arregaçadas sobre os quadris? Teriam, todos esses, de ir à baliza. Talvez um congestionamento do espaço adjacente à baliza acontecesse, e o campo restante ficasse tomado pela fraca densidade populacional. O jogo já não seria igual.
Ontem ninguém era gordo, a não ser o gordo de serviço. Escarnecia-se do gordo, porque o gordo não conseguia ter a destreza dos demais e não aprendia com isso: ao almoço continuava, sôfrego, a devorar a comida que vinha ao seu prato e ainda fazia olhos ávidos para a comida que os mais vagarosos iam deixando arrefecer no prato. O gordo ficava para trás em tudo. Não se parecia importar. Só queria fazer parte da pandilha, nem que fosse como a aberração eleita pela pandilha. Ia aprendendo o que mais tarde muitos dos outros tiveram de aprender a contragosto: os custos da socialização forçada obrigam a engolir, e muito, em seco.
A aresta viva do tempo abate-se sobre as cicatrizes do corpo. Por falta de paradeiro, não sabemos quantos de nós hoje são quase gordos como era o gordo. Talvez a fraca memória aplaque as dores das carnes que ganharam abundância. Os obesos de agora lembram-se de como escarneciam o gordo da altura? Não tem mal. A amargura mal disfarçada do tempo que por eles passou (e mal) não dava, sequer, para os convencer a irem à baliza.

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