31.12.18

Como se fosse uma análise prospetiva do ano vindouro, como aquelas muito sérias que o Público anda a pedir a personalidades (short stories #84)


Julia Holter, “Words I Heard”, in https://www.youtube.com/watch?v=vIk2CGUTPr0
          Não entendo a necessidade de fazer “balanços” do ano que está senescente, nem em tirar poeira a um oráculo à procura das adivinhas que serão as linhas por onde se irá compor o ano vindouro. Tirando a fantasia das celebrações, não vejo diferença em arrancar a folha do calendário do trigésimo primeiro dia de dezembro ou a folha do calendário do décimo sexto dia de julho. É um dia que cede o passo ao outro. No primeiro caso, com a genuflexão imperativa ao canónico, ao ano que passa a existir em deposição do ano que se sepulta. Desconheço os meandros interiores de quem se ofereça a resoluções radicais apenas porque a próxima página do calendário é a primeira do mês de janeiro. Assim como não entendo as convicções firmes de que um ano neófito será: i) uma página dedilhada no sentido da esperança, com as pessoas ávidas de pessoas que se untem na bondade, com um interminável cortejo de imperfeições finalmente corrigidas porque chegou a hora de decretar um salto antropológico, necessariamente em frente e consequente de um progresso; ou ii) uma página que afunda a espécie na sua crise imorredoira, com mais nuvens plúmbeas acasteladas no céu de chumbo, o olhar paradoxalmente melancólico (e paradoxalmente porque nunca terá conhecido outro mundo se não o mundo deplorável que dizem seus tutores ser o nosso teto). Ora, como não sei fazer previsões, e desconheço as conjugações astrais que põem os acontecimentos em certas casas da carta astral (momento de cinismo), não tenho nada a acrescentar no que ao ano de dois mil e dezanove diz respeito. Não irei catalogar juras à cadência das passas ingeridas à bruta. Não ascenderei a um púlpito, apenas porque me considero titular de tal posição, para lamentar os contornos do pessimismo antropológico dominante e propor (em jeito meio catedrático, meio consultor de almas extraviadas) os milagres de que precisamos para sermos todos melhores. Não vou incomodar um grama da atenção ao sobressalto causado pela sensação de rebanho tresmalhado que soa a humanidade. E não irei tecer loas ao que quer que seja, porque não sei fazer previsões e desconfio que as pessoas se extenuam das coisas boas que têm em seu regaço, destroçando-as à primeira oportunidade. (E talvez este seja um modesto subsídio para a teoria da crise contínua.)

28.12.18

Baixa tensão (short stories #83)


Nils Frahm, “More”, in https://www.youtube.com/watch?v=FRj6G6RB7jc
          Que interruptor é preciso para inverter a maré que não vai a preceito? Seja pedida escusa aos postes de alta tensão: a teimosia nos impropérios avulsos faz subir a temperatura, mas não quadra com a moderação que é boa conselheira. A ficha deve ser ligada ao poste de baixa tensão. De lá segue a alimentação parcimoniosa. O pensamento precisa ser convencido que não precisa (para estes preparos) de uma montanha russa de sentidos, de uma erupção violenta que desafie as cómodas avenidas alinhavadas nas manhãs que nascem madrigais. São devidas as compensações faturadas: o gelo necessário arrefece a condição exaltada e aconselha a dilação para quando o estado iracundo estiver amaciado. A empreitada torna-se complexa, pois os postes de baixa tensão não vêm no mapa. Faz lembrar aqueles sonhos que são avivados depois do sono ter terminado, quando uma súbita centelha se lança sobre a funda camada onde o sonho medrou e é trazido à superfície. E se o sonho bolça uma cartografia inesperada, desvia-se a atenção para o surrealismo que adorna o umbral em que o sonho foi congeminado. Não chega, o sonho inquietante, a ser embaraço à serenidade. Um sonho não passa de um sonho e não há provas (a não ser num domínio esotérico) que os sonhos sejam uma passagem de nível por onde entra a vida sensível. A baixa tensão assemelha-se a esta depuração dos sonhos – mesmo daqueles que, de tão vívidos, parecem enxamear-se com a textura real e só depois de uns minutos no rescaldo do sonho é dado a perceber que se tratou de um sonho. A baixa tensão é o refrigério que se abate sobre o cenário incendiado, fazendo do sonho uma presa à mercê. No intemporal desenho dos contratempos, saiba-se que existe um feixe de baixa tensão à espera de ser manejado. O escudo que desarma as contrariedades, sem o sangue chegar à ebulição da leviandade acesa por um apetecível acesso de alta tensão.

27.12.18

O icebergue intempestivo (short stories #82)


Kamasi Washington, “Fists of Fury” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=ZrT8FddyqzM
          Espelho dos tempos inquietantes, estes que sobre nós exercem soberania: afinal, temos uma estatura menor do que a inteira dimensão que somos. É um teatro que se desmultiplica em inúmeros palcos, em diferentes salas – umas contíguas, outras separadas por oceanos, ou por cordilheiras –, outros palcos com pedaços que se sobrepõem, como se fosse possível sermos espetadores de parcelas de diferentes peças simultaneamente. O tricotado denso não deixa escolhas: não podemos abarcar a totalidade. E ainda bem que não podemos abarcar a totalidade, se não a angústia de deixarmos de fora tudo o que o exíguo tempo não concede era um modo de vida (desaconselhável, como sabemos). Na mesma medida, o espelho de cada um de nós. Deixamos à mostra o icebergue que mostramos como a nossa medida, umas vezes como resultado intencional, outras como efeito que transcende a vontade. Submerso nas profundezas dos segredos, a parte restante de nós. Não queremos se não a serenidade de contemplar, com a distância possível, as inquietações que a parte oculta vomita por cima de nós; e depois, queremos aprender a coabitar com ela. É um icebergue intempestivo: se não fosse um sobressalto contínuo não o queríamos encobrir, não aparecíamos nos múltiplos palcos como seres propositadamente amputados de tudo o que submerge nas (nossas) águas profundas. Será sinónimo de uma crise profunda que investe sobre a humanidade. A equação diletante é uma farsa: contra os preceitos da positividade, e contra a imorredoira boa disposição de seus fautores, insurge-se a plúmbea neblina que exorta à frugalidade. Não se percebe, neste estado de coisas, como há tanta gente a macerar no umbigo, como não apreciam o estado risível da sua publicidade própria. O efeito telúrico da convivência de tantos e pesados icebergues ainda está por estimar. O risco não é de menosprezar. A sobrelotação do mundo terá um efeito catastrófico se as partes submersas de todos os icebergues intempestivos colidirem umas com as outras. Arrisque-se o presságio que será pior o efeito do que o estimado resultante do aquecimento global (e do aumento do nível dos oceanos).

26.12.18

A ceifa adiada (short stories #81)


U.S. Girls, “Rosebud”, in https://www.youtube.com/watch?v=8cFnewlPpzI
          Na base está o coalho que instiga a adulteração: se não forem tomadas medidas, talvez fiquemos ultrapassados pela vertigem dos acontecimentos. Importa trespassar a inércia com adrenalina. Importa arrotear o caminho por entre a ramagem alta que ficou por sua conta no jardim. Se não for o caso, não é possível saber por onde andam os pés, o que levanta a hipótese de severos acidentes, dos acidentes que são evitáveis à nossa conta. É preciso uma ceifa meticulosa para deixar o chão à mostra. Mas o tempo poltrão congemina-se contra as vigílias da vontade – porventura, de uma vontade timorata, pouco convincente. Não contam as afirmações, por mais solenes que sejam, a ajuramentar a ceifa na cúpula do porvir. São gestos infecundos, não conseguem esconder (pelo menos, do íntimo do próprio) que encerram o ardil das promessas feitas com o propósito de algo ser esconjurado. Desembainha-se a régua e o esquadro e, com a ajuda de um estirador, tecem-se os meticulosos labirintos que são o logro inteiro onde se consomem as juras. Há uma descompensação entre o tempo que passa e o medrar da vegetação espontânea e a consternação que essa imagem causa. Descontadas as demais coisas (não desdenháveis), dir-se-ia estarem todas as condições prescritas para travar o passo ao postergar da função. Mas tudo acontece ao contrário. Parece que há duas metades que dirimem um interior conflito com vista a saber qual delas toma conta de quem as tutela. Se não forem arregimentadas as forças imprescindíveis, a intransigência do plano destrutivo sobrepor-se-á à pulsão construtiva. As ramificações estendem-se pela constelação de domínios que tocam a pessoa. Um atrás do outro, os diversos braços do delta são contaminados pelo apetite da inércia, enquanto a cabeça fervilha na formulação de ideias ajuramentadas para a posteridade. Em plena contrafação, os dois tempos resumem a barganha fadada para a omissão: o lastro que vem de trás arqueia-se sobre os tímidos alvores do amanhã que esbracejam, sem conseguirem a erupção à superfície. Sem açambarcar a jorna da ceifa, a vegetação aleatória e contumaz acabará por tomar conta de tudo. 

25.12.18

As fadas destituídas (short stories #80)


The Stranglers, “Golden Brown”, in https://www.youtube.com/watch?v=z-GUjA67mdc
          Não era preciso a maldade”, protestavam, em uníssono, as fadas reunidas em conclave. Continuavam sem entender o funcionamento do mundo, a têmpera das pessoas. Por mais que fizessem campanha pela bondade e pelos nobres gestos, tropeçavam num grotesco cortejo de aleivosias, na não salutar desconfiança multiplicada exponencialmente à medida que as pessoas desfilavam em palco, nas palavras ditas que queriam dizer o seu contrário, num mundo mitómano. As fadas ensaiavam um casulo que as pusesse a cobro das excruciantes dores causadas pelo mundo como ele é: fingiam que o mundo era de outra forma, a quadrar com os belos e nobres preceitos que vinham embebidos na sua doutrina. Era como se as fadas vivessem enquistadas num apêndice do mundo, de onde se recusavam a observar o seu peculiar andamento. Restringidas ao interior das suas fantasiosas ameias, as fadas perderam, a certa altura, a capacidade para corrigir os maus vícios dos frágeis atores que iam passando pelo palco do mundo. Como viravam o rosto às ignomínias constantes, não as podiam ajuizar; não estavam em condições de exercer o seu altruísta magistério de influência, ao jeito dos evangelizadores que palmilham o mundo na inverosímil missão de convencer os outros da bondade da bondade. Refugiadas no seu casulo, as fadas perderam préstimo. Se existiam para a pedagógica advertência contra malfeitorias, tentando levar pela mão os malfeitores à correção que se impunha e, quando necessário, às compensações que fizessem regressar ao estado original das coisas prévio à malfeitoria, agora estavam esvaziadas de predicados por sua voluntária demissão. Só elas não tinham percebido que estavam despojadas dos seus artefactos e já ninguém lhes dava crédito. Eram fadas destituídas. Já ninguém as reconhecia. Elas próprias não se reconheciam enquanto fadas. E de tanto fingirem que o mundo não era o lugar hediondo que se cansaram de tentar remediar, as fadas passaram a ser seu intérprete. Se ainda estivessem no uso das suas originais funções, lamentariam, muito compungidas: “o mundo está perdido.” Não era o caso. As fadas, por terem deixado de o ser, encontraram o mundo na sua perfeita imperfeição. A prova de que o mundo tem paradeiro.

24.12.18

Conto de natal (versão 2018)


The Pogues, “Fairytale of New York”, in https://www.youtube.com/watch?v=j9jbdgZidu8
Da mercearia sita ao Bolhão, uns belos e altos lombos de bacalhau islandês com a devida cura. Peça-se conselho ao idoso dono da mercearia sobre a demolha, antes do ato do pagamento.
No dia da cozedura, em caçarola larga, mergulhar os lombos (já desprovidos de espinhas e peles) em azeite perfumado com alecrim até ficarem submersos. Ordenar ao fogão para manter a temperatura nos sessenta e três graus. Juntar uma pitada de noz moscada. Ao cabo de vinte e oito minutos, descarregar o bacalhau já pronto a ser ingerido pelos comensais. Sossegar os comensais: “ainda a procissão vai no adro” (como diria o povo em sua imensa sabedoria). 
Em operação simultânea à branda cozedura do bacalhau, uma frigideira acolhe um bouquetde finos espargos verdes, cuidando, vagarosamente, de os grelhar. Reservam-se os espargos, que vão receber uma ténue pincelada do azeite onde o bacalhau esteve mergulhado. Noutra operação simultânea, com recurso a segunda frigideira untada com um fio de azeite e um dente de alho finamente picado, uma mistura de três pimentos (verde, vermelho e italiano), segados em tiras com metade do tamanho do dedo mindinho, vai a caramelizar. À parte, esfarela-se uma mão cheia de castanhas pré-cozidas às quais a pele foi extirpada, deixando-as à mão para serem adicionadas aos pimentos quando estiverem untuosos e abraseados. Enxertam-se as castanhas nos pimentos com um vigoroso mexer de colher de pau, salgando a gosto. Reserva-se a mistura de pimentos caramelizados e da castanha cozida estrançada. 
Noutra operação que se serve do intervalo de tempo entre o brando frigir do bacalhau e a congeminação de pimentos e castanhas, usar uma maionese caseira (segundo uma receita artesanal, previamente preparada, que exige uma paciente osmose entre um fio de azeite de qualidade e as gemas batidas até obter a consistência de uma maionese, com um toque de fundo a limão). À maionese adir um punhado de alcaparras grosseiramente esmigalhadas e meia colher de sobremesa de wasabi. No aproveitamento do tempo dedicado a estas três empreitadas, o forno recebe, a cento e oitenta graus e durante cinquenta minutos, um gratinado de batatas às rodelas, pancetaitaliana finamente recortada, bechamel de cogumelos shitakee mozarela de búfala, como ingrediente gratinável. Do forno sairá o acompanhamento do bacalhau.
No centro de um tabuleiro preparado para ir ao forno, cada lombo de bacalhau é seccionado transversalmente em duas metades. Sobre a metade inferior, uma camada (com cinco centímetros de altura) da combinação de pimentos e castanhas.  A metade superior do bacalhau deve ser cuidadosamente pousada sobre o edificado. A coroar, três colheres de sobremesa de maionese de alcaparras e wasabisobre a metade superior do lombo de bacalhau. Entregar os lombos de bacalhau ao calor do forno, apenas o suficiente para levemente corar a maionese de alcaparras e wasabi.
No derradeiro momento, o empratamento. No centro do prato, um lombo de bacalhau acamado sobre um tapete de espargos grelhados. À direita, recostado sobre a lateral do lombo de bacalhau, um triângulo do gratinado de batatas, panceta, bechamel de cogumelos shitakee mozarela de búfala. À esquerda, uma colher de sopa, espalhada sobre o prato, de uma redução com vinho do Porto branco lágrima, molho de soja e pasta de azeitona curada.

21.12.18

Casa isolada


Jonathan Wilson, “Desert Raven”, in https://www.youtube.com/watch?v=-hYiY1vOOVw
Foi preciso desbastar a planície que parecia não ter fim. Atravessar rios que corriam quase secos. Esperar pelas horas em que o sol não estava alto. Deixar o penhor de algumas noites ser o fiel do sono. Cansar os pés, de tanto andar. Julgar que estava perdido quando a paisagem era um imenso lugar impreciso, onde até as pedras pareciam iguais e colocadas nos mesmos lugares. Foi preciso esperar até a geografia oferecer a quimera de uma casa isolada. Dir-se-ia, se estivesse tomado pelas alucinações próprias de um deserto ávido de areia: a casa era uma simulação para se fingir por dentro do pensamento; apostava que mal se aproximasse da casa, ela seria liquefeita por ação das mãos. 
A casa ainda estava longe. Era um ponto minúsculo no meio da paisagem. Era possível não a perder de vista desde o lugar altaneiro, uma passagem por um breve desfiladeiro. A casa marcava presença no vale onde o desfiladeiro desaguava. O telhado era garridamente vermelho e a casa meticulosamente caiada a branco. O sol irradiava toda a sua luz, acentuando a beleza da casa, assim exposta à generosidade do sol. Começou a descida, tendo a casa como ponto de mira. Pela primeira vez em toda a jornada, os pés debatiam-se com um chão pedregoso que dificultava a marcha. Ao mesmo tempo que sulcava o caminho a caminho do vale, a casa isolada continuava minúscula. Podia ser ilusão de ótica – ou o caminho a caminho do vale contorcia-se em curvas várias que mudavam a rosa-dos-ventos e dos diferentes ângulos que se ofereciam ao olhar dimanava a impressão de a casa não crescer à medida que se amputava a distância até ela.
Tinha acabado a descida e o desfiladeiro cedia o passo a outra planície. Pela primeira vez, uma planície fértil, com árvores e vegetação farta. A casa isolada tinha crescido pela medida do olhar. Já não era longe. Não se intimidou com o cansaço e prosseguiu a caminho da casa. Era a primeira vez em vários dias que podia romper a solidão, falar com alguém, talvez. Assim esperava, apesar de a casa estar isolada no meio de uma paisagem que se fundia com um imenso nada. 
Demorou mais de uma hora até chegar ao perímetro da casa. Não sabia se era por o sol ter sido substituído pelas nuvens, mas a casa não era o postal resplandecente que notara desde o promontório. As paredes denotavam o desgaste do tempo, com marcas de escuridão denotativas da humidade que se insinuava em dias de chuva. Ao telhado faltavam umas telhas. As restantes estavam a ficar encardidas. As janelas escondiam cortinados gastos, amarelecidos. O silêncio só era derrotado pelo silvo do vento, que marcava presença ao entardecer. Cá fora, um tanque para lavar a roupa cambaleava, à falta de um dos quatro pés. Uma boneca envelhecida repousava na soleira. Mas o silêncio continuava a quadrar com o lugar, emprestando-lhe uma imagem fantasmagórica.
Bateu à porta. Ninguém respondeu. Insistiu. Manteve-se o silêncio, apenas entrecortado pelo ciciar do vento, em crescendo. Experimentou abrir a porta. Abriu-a sem ser preciso usar chave, ou forçar a fechadura. A casa parecia desabitada. Perguntou, insistentemente, se estava alguém. Só tinha o silêncio por companhia. Confirmava-se: a casa era isolada. Um santuário de solidão a coroar a ausência de gente naquele longínquo lugar. Já estava habituado. Enquanto repousava no sofá roto e se agasalhava com uma manta bafienta, à espera da noite que não demorava, perguntou se a casa isolada não vinha a calhar nesta peregrinação de solidão a que não conseguia atribuir significado.

20.12.18

O músculo da negação (short stories #79)


This Mortal Coil, “Kangaroo”, in https://www.youtube.com/watch?v=WByGMjdejD4
          A casa perdida no meio da montanha, onde não há mapa desenhado que a traga no rebordo. Não se consuma a atenção com os textos desapalavrados para os rodapés – alguém advertia, em tom professoral, enfeitando as palavras sábias com um certo odor a sensatez, sem perceber que esta negação era um risível ardil em que a sua putativa condição era desvendada. Era como aqueles que se encomendam à melancolia e seguem, pesarosos, para a varanda de onde se alcança o mar na vertical, dando a entender que o cansaço da vida (e a injustiça de que se dizem vítimas perenes) já não cauciona a sua continuação. Mal chegam ao promontório, atemorizam-se, um intenso frio tomando conta da coluna vertebral – sinal de que temem pela existência e que tudo não passa de uma encenação para animar a comiseração por si mesmos. Ou aqueles a quem era exigido que “pensassem fora da caixa”, não dando conta seus desafiantes que eles eram os primeiros a ser recomendado, e com uma certa dose de urgência, o mesmo fado. É como se todo o ser tivesse um músculo, um escondido músculo, não sindicável pelas evoluídas máquinas de diagnóstico médico. E esse músculo exortasse uma negação compulsiva a quem se convencia que não era partidário da negação, aos corsários que eram o postulado ambulante da “vida positiva”. O que lhes faltava – e por eventual medida certa do músculo da negação – era positivar a existência de que se diziam lídimos embaixadores. Se virada do avesso e despida dos disfarces para consumo exterior, ver-se-ia uma devastação circulante, um circo decadente, eram mitómanos sistemáticos. A não ser que admitissem o músculo da negação e não o contrariassem. Serem o contrário do que o avesso da representação para o exterior encenava era o mito obnubilado, a negação da negação que pretendiam ocultar. E sabiam, ou deviam recordar dos tempos da escola, que uma dupla negativa desagua numa positiva.

19.12.18

Fusão nuclear


Shame, “Dust on Trial”, in https://www.youtube.com/watch?v=AiFxUhgU4LE
A sobreposição de ideias inflama o pensamento. Não é terreno árido – e ainda bem. A constelação de cores que se enxameia no horizonte é uma centelha que aspira melhor condição. Talvez falte tempo para arrumar todas as proveniências em lugar certo, mas não importa. As prioridades são o critério acertado. Agora, umas ideias cuidam de arrematar lugar. Outras ficarão para mais tarde. Se for necessário, a meio do processo enxertam-se no exercício presente alguns rudimentos do que tinha ficado para memória futura. As múltiplas origens cuidam de amplificar a originalidade do pensamento em esboço. Nunca fez mal ser curador da versatilidade: é garantia mínima da denegação do marasmo. 
O risco maior é de o labirinto ser um emaranhado sem solução. Antes essa complexidade que os simplistas meandros por onde possa desfilar o pensamento. Antes a miríade de interrogações cavalgando umas nas outras, a certa altura perdendo o fio à meada às interrogações primeiras. À margem da página, vão-se anotando, em forma de mnemónica, as pendências. Pode ser que se regresse a elas, em tentativa de resolução. Pode ser que outras empreitadas, entretanto emergentes, exijam a sua supressão. O método existe. E mesmo que soe caótico ao olhar do observador exterior, não é relevante a verificação: não é o observador exterior que adestra os caminhos do pensamento, não é ele que se sente cercado pela maré vultuosa das demandas. 
O mapa cuidadosamente tecido recebe as anotações extraídas dos pensamentos que se sobrepõem. Já não há lugar para o pensamento reduzido a uma dimensão. Já não há paciência para essa estreiteza, o pensamento reivindicando um espaço que transborda da claustrofobia onde se refugia o quadro mutilado de um pensamento que recuse outros parâmetros. Deixaram de ter vencimento os mimetismos que se limitam a reproduzir palavras gastas, ideias que se extinguiram nos seus limites. O amanhã exige o pensamento ermo, o pensamento que se afiança nos horizontes que se desenham para além dos limites conhecidos. 
Arrisca-se o desmétodo? Provavelmente. Pode, contudo, ser um método singular que procede do esvaziamento do método antes consagrado, mesmo que não tenha regras no momento da sua criação. Pode traduzir o oposto do convencionado e, nessa medida, trespassar os cânones. Talvez seja necessária uma rutura. Um salto em frente, sem saber ao certo, e à partida, a que cais se possa ancorar o pensamento depois da aventura que empreende. 
A complexidade prometida é uma densa nuvem que não deixa pressagiar fácil demanda. Antes assim. Os desafios não quadram com facilidades instaladas. E se as pendências prometem adiadas conclusões, regressa-se, num passo atrás, para entender por onde podem avançar os passos em espera.

18.12.18

Cinco cêntimos


Wolfgang Press, “Cut the Tree”, in https://www.youtube.com/watch?v=chp-K2H1Uvc
Uma moeda de cinco cêntimos perdida no chão e passas nas suas imediações. Por ação da chuva, a moeda está encardida, com laivos de ferrugem. Não resplandece nem por ação do sol (que, entretanto, veio tomar o lugar da persistente chuva invernal). Não dás importância à moeda. Outro tanto não farias se fosse uma nota com um valor facial de, no mínimo, cem vezes mais. 
Mas recuas. Voltas ao chão aleatório para onde a moeda foi arrastada. Notas os maltratos de que a moeda foi vítima: está escanada num dos rebordos, o que se junta aos maus pergaminhos que tinhas detetado (encardida e enferrujada). Baixas o corpo a custo (a maldita invernia que estuga o passo do reumatismo). Recolhes a moeda e sentes a bondade a irradiar do teu ser. Vem isto a propósito da intenção, que dizes ser perene, de afugentar de ti os modismos, os peculiares destemperos que são uma miragem que desvia a populaça, a embriaguez pela avareza, o valor do valor (em vez do valor despido de valor). Concedes: instantes antes passaste pela moeda de cinco cêntimos e ela foi votada à irrelevância; poderias estar embaciado pelos mesmos males dos outros que dizes deplorar? 
Queres ter o convencimento da resposta infirmativa. Assim como assim, recuaste nas intenções e devolveste valor à pobre moeda perdida no meio de um chão imundo, perdida no meio da multidão que por ela passava e nem se dignava recolhê-la. Estás convencido que fizeste a diferença. Mas será que fizeste a diferença? Acabaste atraído pela moeda de pouco valor facial a que ninguém conferia valor ao ponto de ser recolhida. Acabaste traído pela mesma avareza que deploras nos outros; com a diferença que foste corrompido por um valor facial inferior ao estalão habitual da corruptibilidade dos teus pares. Talvez não seja ato louvável, o teu. O que fizeste com a moeda de que cuidaste ser tutor? Tiveste-a em teu paradeiro? Usaste-a para completar os sessenta e cinco cêntimos do café, em tendo em tuas posses apenas os sessenta cêntimos insuficientes? Guardaste a moeda num lugar reservado, como se fosse uma relíquia? 
Não te lembras. Talvez não sejas diferente pela diferença que para ti reivindicas. Convence-te: de sermos tão únicos e irrepetíveis, não podemos (exatamente por essa singularidade) pretender que somos diferentes dos outros; ou: ao sermos todos diferentes uns dos outros, essa diferença é-nos comum. Somos em nós a moeda de cinco cêntimos a que ninguém confere atenção.

17.12.18

Perguntamos ao passado, ou deixamos uma cortina de luz a impedir o futuro?


Sharon Van Etten, “Jupiter 4”, in https://www.youtube.com/watch?v=W4etGf2PJcA
(Depois da peça de teatro “Uma Noite no Futuro”, encenação de Nuno Carinhas, com textos de Samuel Beckett e Gil Vicente)
A paternidade da consciência: uma dialética constante que entrepõe dois tempos algozes: passado e futuro. Pelo meio, com esquecimento do mais importante dos tempos: o presente. A condição humana presta-se a imperfeições. Um homem vomita sobre o seu passado, vocifera, acena em tom de reprovação ao trazer das memórias as palavras ditas em gravação (e bem o podia ser em forma escrita). Um espírito crítico implacável, o homem o pior juiz de si mesmo; talvez não haveria ninguém de atuar com tanta desaprovação sobre o pretérito redescoberto daquele homem – mas, com íntegra certeza, a ninguém seria dado compulsar as variáveis dos dois tempos e ninguém consegue incarnar aquele homem no seu estado presente.
Na imperfeição não diletante, os dados lançados são como arbustos na sua aparente imprestabilidade. A mesma imprestabilidade de quem conta histórias na posição de narrador e se faz sósia do protagonista. Os tempos mudam de feição, como mudam as feições que se depõem nas vidas. Não custa a ver numa categórica rejeição do passado um módico de madurez, ou, pelo menos, de mudança. E se alguém muda, tanto pode melhorar como piorar a sua condição (ou, não por simples acaso, torná-la teimosamente estacionária). 
Qual a serventia do ressuscitar de um tempo enquistado? Serve para reavivar memórias. Umas, heurísticas. Outras, em forma de catarse, como se houvesse a necessidade de cortar as asas de um dogma que silenciava um certo passado. Ou serve, ainda, para reabilitar o estado atual em que o tempo se consome, ditando do passado a caução que o sublima. Pode ser um eufemismo. Um gritante ensimesmar que despromove o passado, deitando-o a um lagar onde se enodoam todas as vergonhas. Servirá para um homem dizer: “eu já fui assim e agora sei que era de plástico, um equívoco sem aceitação.
Esta dialética esbarra num impossível: o outrora não se reconstrói. É um inerte. Possivelmente doloroso, mas inerte, não aberto à reconfiguração dos tempos, nem a uma reinterpretação que branqueie o arrependimento. É uma página do tempo gasta, que desgasta o único tempo que esse homem, os homens todos, têm entre as mãos. Às vezes, o homem reivindica um mergulho no pretérito para se legitimar no porvir. É quando diz, em contestação da afirmação anterior: “A litania do passado serve para a jura de um futuro que é sua antinomia.
E o homem assim aprisionado continua a ser uma matéria entre parêntesis, uma promessa sem notário. Um logro imorredoiro, à medida que persiste na dialética labiríntica entre o tempo havido e o tempo que ele demanda de um oráculo. Envelhecendo, a destempo, o único tempo que interessa e que ele ignora: o presente.

14.12.18

Temperamental (short stories #78)


The Fall, “Mr. Pharmacist”, in https://www.youtube.com/watch?v=Cl34oJEoO7s
          Ferver em pouca água como excentricidade que se esmaga no peito dos fleumáticos, dos tenores que primam pelo silêncio, das almas adestradas no (que lhes ensinam ser) refrigério da resignação. Não tinha meias medidas. Os exageros eram alinhavados em sucessivas composições de destempero, em palavras sem freio, na indisfarçável incapacidade para depurar o que lhe calhava em sorte (ou em azar). Não queria saber da diplomacia. Não tinha o propósito de passar as palavras por um crivo, pois admitia que só as palavras espontâneas eram retrato fidedigno de um estado de alma. A mentira e o disfarce, deixava-os para os mitómanos, para os que se enredam nas sucessivas camadas de que é feita a diplomacia, sem se conseguir apurar dos obnóxios ocultados sob a feérica capa do faz-de-conta. Não transigia com um argumento que não perde atualidade: se este é o modo dominante, se todos pisamos um palco e desempenhamos vários papeis à vez, ele devia contemporizar com o demais e aceitar que as marés que são vagas de fundo não se combatem com voluntarismos idealistas. Contrapunha: não se trata de ideias, nem de um voluntarismo predeterminado, selado com um propósito acertado com os notários do tempo; é feitio, mau feitio. O temperamental desapego das coisas, sem temer o bastão das consequências. Sem recusar as palavras, que nunca ficam por dizer. Mesmo que doam, a quem as ouve e, às vezes também, a ele próprio. Se temperamental é submeter ao seu exigível crivo a caução dos outros, por se enovelar numa autoexigência que não é de menor índole, não se importa que o vejam como temperamental. Sabe que o lugar-comum do pensamento não tem o temperamental em boa conta. Pouco lhe interessa. Já o disse, e por mais do que uma vez, que não transita pelo mundo para ser achado em boa conta. A autoexigência reaviva o salvo-conduto de que se serve para aparecer (e parecer) um insuportável temperamental aos olhos dos outros. Às vezes, em momentos em que deixa em banho-maria um cinismo indomável, diz a quem o ouve que é seu anseio que não o cuidem como temperamental, que não o votem a caso perdido. E depois ri-se a bom rir, através das costuras da alma, ao apreciar o ar tolerante de quem se comporta como se lhe quisesse conferir uma segunda oportunidade. (Ele, que nem a primeira oportunidade pediu.)

13.12.18

O que um terrorista não consegue aprender: um ataque cego a inocentes não é um ataque ao sistema que deploram, é um ataque a pessoas que são inocentes


Badbadnotgood (ft. Charlotte Day Wilson), “In Your Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fsm4ZsOzqTw
A ardósia onde se escrevem catecismos vários está puída, o giz arrasta-se vagarosamente, tropeça nas irregularidades da ardósia. As letras saem distorcidas, numa caligrafia ininteligível. Gurus debitam a doutrina na ardósia. Instruem os seguidores. Os seguidores limitam-se a beber a lição sem esboçarem interpelações. Têm de se embeber na lição numa posição acrítica. Não estão ali para discutir, nem lhes é dado o direito de alinhavarem uma ética diferente da ensinada. 
No varapau das hostilidades, quando se digladiam os diferentes, os pressupostos têm diferentes pespontos. Uma ética pode ser antiética para os que se posicionam de um lado que seja o contrário. E vice-versa – ou, no limite, a ética do lado contrário é irrelevante quando se arregimentam as forças que o contrariam. Na ardósia, cinzela-se um mandamento que os seguidores têm de interiorizar: “matarás qualquer um que seja, aos olhos da nossa crença, herege.” E outro: “Na terra do inimigo, ninguém é inocente. Matarás os que forem precisos para incendiar o âmago do lugar inimigo.” 
Ao seguidor da doutrina assim afivelada não é dado a perceber que as pessoas são a imagem da atomização e que elas não podem responder, em sua individualidade, pelo lugar que lhes calhou em pertença. Não é dado a perceber que uma pertença é um acaso – e que a identidade é, muitas vezes, produto de uma doutrinação preestabelecida desde os bancos da escola. Ele não discerne que entre os que vier a matar podem estar alguns que nem sequer têm nenhuma ligação com o lugar cujo âmago pretende estilhaçar com seus atos assassinos. Nem sequer lhe é dado a perceber que mesmo algumas das suas vítimas, mau grado tenham pertença ao lugar visado, podem não se rever nos cânones politicamente selados. O assassino generaliza. Dilui o valor da vida pessoal: ensinaram-lhe que não somos vidas pessoais; somos – e só isso – as unidades cujo somatório perfaz uma comunidade. A comunidade visada. O inimigo que é escolhido para mobilizar as hostes.
Faltará capacidade de compreensão ao assassino sobre a inocência dos mortos em suas empreitadas demenciais. (Ou esta ausência é convenientemente estimulada pelos ideólogos.) E falta coragem para dirigir os ataques ao que representa as comunidades que têm por hereges: os símbolos e as pessoas em que se entronizam essa representação. Talvez não lhes tenha sido ensinado que é do domínio da covardia fazer abater o produto da ira sobre os mais fracos, os que não têm como se defender das investidas aleatórias dos que assim agem em nome de uma divindade. Possivelmente, covardia e bravura têm um código significante que é o oposto do que aprendemos.

12.12.18

O fardo dos jovens


Joy Division, “Decades”, in https://www.youtube.com/watch?v=y9sYRgSRnq8
(Mote: “Here are the young man/the weight on their shoulders”, Joy Division, “Decades”)
O filme que passa em presságio do porvir é tingido por sombras, um filme a preto e branco – propositadamente com uma claridade desmaiada e a tender para a penumbra. O filme que passa não é o recorte de uma geografia agradável. Este mundo não foi feito à medida dos mais novos. É um mundo construído em cima de injustiças.
Vou lá atrás, quando tinha a idade dos jovens que estão à minha frente, grande parte desinteressados no que tenho para lhes contar (e os outros, talvez fazendo de conta que fazem uma mínima noção do argumentado). Vou lá atrás, quando estava a concluir a licenciatura. Não eram fáceis as promessas de emprego, depois de completar os estudos. Já era muita a concorrência e, como agora, havia estorvos pelo caminho que distorciam as oportunidades (a pertença partidária, o encosto a uma família de pergaminhos, uma rede de conhecimentos devidamente oleada, a bênção de uma estrutura religiosa – tudo servia para arrotear caminho à frente dos outros, sem contarem as qualidades intrínsecas de cada um). Dir-se-á: sempre assim foi e não há notícia que o futuro a seguir (que, entretanto, já se constituiu passado) viesse a ser diferente. A diferença é que, naquela altura, havia algumas migalhas para distribuir pelos neófitos licenciados. A diferença é que, naquela altura, ainda não tínhamos sido confrontados com tempo a mais de má condução dos negócios públicos, com catastróficos efeitos na esperança alinhavada pelas novas gerações que esperavam por um lugar sua pertença. A diferença é que, naquela altura, a demografia ainda não se tinha insubordinado contra as novas (e não tão novas) gerações. A diferença é que o labéu do desemprego ainda não afetava os que tinham estudos.
Hoje, o que sinto quando tenho diante de mim uma audiência jovem, é desesperança, desinteresse, incapacidade medrada antes do tempo, antes de terem provas por não chegarem a ser colocados à prova. Haverá algum demérito das novas gerações (com os riscos que uma generalização comporta). O passar do tempo tem sido testemunha desabonatória das sucessivas gerações. A desmotivação é concurso de desideias que frui entre os mais novos. Parece que o passa-a-palavra se contagia e os mais novos começam a padecer antes do tempo, por medida inerente ao malogro dos mais novos que são mais velhos do que eles, mas ainda não são velhos. 
Cabisbaixos, desinteressados, desmotivados, limitam-se a ser autómatos, imersos num universo muito próprio, sem coragem para assumir o tempo presente. Porque têm medo do futuro. Têm medo que o futuro seja mau conselheiro e que eles se façam sua vítima – e vítimas sem remédio. Os que não capitulam ao degredo como válvula de escape de um lugar desesperançado, afocinham na letargia. O filme é plúmbeo, arrastado, monocórdico, repetitivo, melancólico, sem sequer haver lugar à nostalgia por ausência de memória. Para muitos, o futuro não há de ser a rima que esperavam para as capacidades que obtiveram com os estudos. Será, esse futuro, uma valsa descompassada. Temo que muitos deles não cheguem a tempo do futuro – ou que o futuro seja um apeadeiro que falham por razões independentes da sua vontade.

11.12.18

Desfiladeiro (short stories #77)


The Young Gods, “Skinflowers”, in https://www.youtube.com/watch?v=36PnotCVYLM
          No vale alquebrado, o rio sulcava com sofreguidão as paredes quase verticais do desfiladeiro. Olhou para cima. Já lá estivera, antes de descer pela vertigem do alcantilado desfiladeiro. O sol não conseguia olhar as águas tumultuosas do rio. (Ou, podia-se afirmar, o rio nunca conheceu a cor do sol.) Sob o intempestivo terreno, a solidão parecia adensar-se. Não havia estradas por perto, nem casas. Só se ouvia o alvoroço das águas do rio, despejadas depois de uma cascata feérica. As águas desembaraçavam-se de obstáculos, suplantando rochedos que acabavam cinzelados pela obstinação do rio. O desfiladeiro emprestava um sortilégio à deriva. Chegou àquele lugar sem a ajuda de mapas, nem tendo como instrutor o desiderato de um lugar como aportação derradeira. Foi um acaso. Reforçou a convicção de ele próprio ser um produto do acaso. Era o que sabia da sua génese.  E toda a vida foi um apanhado de acasos, sem estiradores para amesendar ideias em planos circunstanciados. Perguntou: se descesse o rio – empreitada temerária, a crer na voracidade das águas mal contidas em seu exíguo caudal –, o que o esperava a seguir? A pretérita escala na cumeada não fora amparo: só conseguia ouvir o rumor distante do rio não adestrado sem o conseguir ver, tão agargalado era o desfiladeiro. Arrematou a função: as margens não estavam totalmente tomadas pelo curso do rio, sobrando umas rochas aqui, umas ramagens sem paradeiro ali, por onde podia ia vagarosamente descendo o rio. Não lhe ocorreu que o caudal podia sofrer um súbito acréscimo (não sabia se era época de degelo e se a temperatura mais alta cuidava de um rápido degelo) e se à frente não tinha como fugir do desfiladeiro se o caudal fosse interrompido por um cachão cheio de remoinhos, suicidário. Avançou na mesma. Nunca fora homem de devolver o rosto à procedência. O fado estava escrito no momento em que resolveu avançar. O desfiladeiro seria seu intrépido cuidador. Logo se veria se, no dia seguinte, as páginas humedecidas do diário, guardado em seus pertences, seriam seladas pelo tempero do desfiladeiro. (Ou se o seu destempero obnubilou essas páginas, dissolvidas na corrente implacável.)

10.12.18

Trabalhar para esquecer


Interpol, “If You Really Love Nothing”, in https://www.youtube.com/watch?v=gLk8i2zw2jU
(Mote: isto não é um manifesto marxista)
“O trabalho dignifica”. Era o lema, outrora. O tanas! Quantas vezes o trabalho avilta, reprime, oprime, humilha? Quantas vezes é uma arena que cauciona o exercício de pura política quando se equacionam as relações de trabalho – os conflitos (surdos ou estridentes) entre superior e inferior, ou entre pares, com um deles a querer mostrar que se sobrepõe ao outro? 
O trabalho também é usado para o esquecimento. O esquecimento do resto da vida, que, não por acaso, devia ser a sua parte mais importante. Os viciados em trabalho, os que se ufanam de serem tantas as empreitadas profissionais que nem têm tempo para a vida própria, encontram no trabalho um refúgio. O refúgio mesmo a preceito de se salvarem de uma vida desinteressante. Não digo que não seja possível gostarmos do trabalho que temos (eu, por exemplo, gosto). Mas reduzir a vida ao trabalho é uma metonímia. Confere com uma certa emasculação. Não há trabalho sem vida; eis o busílis da questão: a vida precede o trabalho. A dependência do trabalho inverte as varáveis que compõem o axioma. É como se o trabalho precedesse a vida – e, pior ainda, os dois se fundissem numa amálgama que descaracteriza, em que fermentam autómatos desenraizados (ou, conceda-se, apenas enraizados num lugar de solipsismo onde apenas medra o trabalho). 
A vida precede o trabalho. Não o contrário. Eis o mote que os gurus dos recursos humanos, em fase de contratação para uma empresa, deviam inocular nos futuros trabalhadores. (Trabalhadores, em vez de colaboradores, se fazem favor!) Só um capitalismo suicidário quer pessoas que mais parecem sucedâneos de robots. A menos que estejamos a caminho do esvaziamento da condição humana, uma espécie de eugenismo empresarial, que passa pelo reinventar de bússolas que ensinam a consagrar o trabalho no altar supremo, desvalorizando o resto – desvalorizando o resto onde se entroniza a condição humana. 
Está na moda: o trabalho centrípeto, o trabalho e apenas o trabalho, o trabalho levado para casa até aos fins de semana, a disposição a todo o tempo para corresponder às solicitações do trabalho, o respeito militar pelo chefe. Está na moda: este é o trabalho em que se trabalha para esquecer. Antes fosse, como já foi (para quem não precisava do trabalho se não para esse efeito), trabalho para aquecer.

7.12.18

Ground zero (short stories #76)


Neneh Cherry, “Woman”, in https://www.youtube.com/watch?v=pAYSAYg9kPI
          O dia nasce sem luz, sitiado por um nevoeiro meândrico. Só se vê o nada. Parece que está num lugar ermo. Não é possível saber onde ficam os limites da paisagem que não se desenha à frente dos olhos. É angustiante: ao mesmo tempo, uma noção de exiguidade tributária dos limites não desenhados e as possibilidades ilimitadas que o desassossego aventureiro pode empreender, descobrindo que não há precipícios ocultados e os limites se empurram sempre com mais um passo em frente. Já é a manhã senescente e o nevoeiro não dá tréguas. Até os aromas parecem ter sido extintos, ou ao menos depostos pelo teimoso nevoeiro. Estranhamente, o silêncio entra em ebulição com a claridade ausente. Não é que não fruam vozes e os restantes ruídos que habitualmente compõem o murmúrio da cidade; o nevoeiro parece ter obrigado à dieta dos sons, nem sequer se detetando como cicios. Anda-se quilómetros a eito e não se vê ninguém: terão as pessoas sido sequestradas pelo nevoeiro convincente – ou terão medo da ausente claridade, qual lampejo de noite sem a opacidade das trevas, e não saíram de casa (como quem em casa se refugia ao anúncio de tempestade)? Já pela tarde, as impressões pressagiam a persistência do céu embaciado e terrivelmente logo acima das cabeças. Num certo lugar, sem saber como lá chegou, inquieta-se pela tepidez que se abate sobre o rosto, um clamor insuportável que se congraça no nevoeiro ainda mais rasante. O lugar parece o mais ermo de todos os ermos que foram depositados na paisagem pelo nevoeiro intransigente. Uma voz ecoa em sucessivas cortinas de som, possivelmente entrecortadas pela erupção das montanhas (não visíveis, todavia) que se interpõem entre a voz e o lugar que a escuta. A voz é um canto gutural, uma constelação de sons que não se assemelham a palavras. Depois de um silêncio breve, que se misturou com o silêncio estrutural herdado do nevoeiro, a voz gutural repetiu a ladainha. Desta vez, arrematou o palco murmurando ao ouvido: “Não fujas. Não tenhas medo. Este é o lugar onde se desenha o zero. O lugar onde tudo se reconcilia com um começo. (Um recomeço, se quiseres.) O nevoeiro é exigível. Precisas de perder a noção do espaço para saberes como reencontrar uma norma. Este é o teu ‘ground zero’. Não te sentires despedaçado e perplexo ao fim deste tempo de claridade ausente, é meia vitória. Cabe-te o resto.

6.12.18

A arte não é democrática?


Cocteau Twins, “Pandora”, in https://www.youtube.com/watch?v=h_ICl20EJjY
A que podemos chamar arte? Quem tem o privilégio de determinar o que é arte e o que falha os requisitos da sua classificação como tal? Diz-se que a arte está reservada às elites. Não no sentido materialista da palavra, mas no sentido intelectual, cultural: só os que corporizam critérios exigentes na determinação da estética e do conteúdo de manifestações artísticas podem caucionar a existência de arte. É um escol restrito, o dos que determinam o que merece ser considerado arte e, desse modo, influenciam uma segunda camada no universo das elites que consomem arte.
A apertada malha em que se considera a existência de arte é um excludente das massas. A arte pode ser acusada de se afastar dos pergaminhos da democracia. A arte reservada a uma minoria – e, ainda por cima, subsidiada pelo Estado – é uma entorse à democracia? Será interpretação exagerada. A arte não fecha portas a ninguém. Não há requisitos de acesso à contemplação de obras de arte que não sejam o interesse do público e o entendimento que possa aferir das obras observadas, no sempre contingente quadro da subjetividade que é património genético da arte. Se o acesso fosse condicionado, a arte seria uma negação da democracia.
Insista-se na interrogação (se a arte é democrática): a especialização das artes, a sua eleição como matéria apenas inteligível para um escol de intelectuais, afasta as massas do consumo de arte. O que traz outra interrogação em sequência: esta depuração das artes, que traz as massas para os seus antípodas, é intencional? Não é aceitável: os que tutelam as artes costumam estar na linha da frente na defesa da democracia; a arte elitista não é intencional, é uma consequência de como são as artes. Por sua vez, as artes que se banalizam, apenas com o propósito de serem “digestivas” para as massas, perdem a sua natureza de arte. Não se pode contemporizar com a banalização das artes. Ou acabamos todos a ser artistas e a arte perde o seu sortilégio.
O divórcio entre as artes e as massas (e dir-se-á: com atribuição de culpa recíproca) é o fermento para um outro mercado onde medram manifestações mais acessíveis que reivindicam o estatuto de arte. Estatuto que, todavia, lhes é negado pelos patronos das artes, os tutores dos padrões estéticos, os zeladores das artes em forma de sortilégio. As elites abjuram essas manifestações dirigidas ao “grande público”. Protestam a sua capitulação ao fácil, ornamentadas pelo óbvio, por uma linguagem simplista e rudimentar, pela utilização de fórmulas que, por serem facilmente digeríveis, seduzem o “grande público”. Não se conformam com a vulgarização, o espetáculo gratuito, o privilégio da forma em detrimento da substância, a ausência de reflexão, tudo se cingindo ao pensamento fácil, não problematizante. Os defensores destas manifestações repudiadas pelas elites invocam, a seu favor, os serviços prestados à imensa maioria que não frequenta os salões onde a cultura se serve entre o reduzido escol. Confessam-se tributários de uma arte que é democrática por ser aberta à imensa maioria.
Estes problemas não se podem encerrar em dicotomias maniqueístas. O que parece difícil de defender são as posições radicais de ambos os lados. Nem os estetas que reservam para si a tutela do que é arte, do que é a cultura, podem propositadamente encerrar as artes numa dimensão inacessível à maioria; nem os que patrocinam a banalização das artes podem chamar a si a razão democrática por levarem, e com êxito, as suas fórmulas simplificadas de arte ao “grande público”. Não parece que respondam à procura do grande público: de uma certa forma, “educam-no”, formatam-no, através destes produtos fáceis.
Talvez falte educação para as artes, para a cultura. O que falta saber é a causa dessa demissão: será uma consequência do hedonismo que instala no pensamento um filtro que o remete para as estruturas simplistas, desse modo sentindo-se corpo estranho diante da arte assim considerada pelas elites? Ou será um modismo que ignora as artes destinadas às elites, pela sua ininteligibilidade e potencial de sedução de gente impreparada para apreciar as artes? O modismo atual, consistente com um modelo que semeia facilidades no sistema de ensino, não é compatível com a educação para as artes e a para cultura. Se o resultado é o afastamento entre as artes e a democracia, a responsabilidade tem se ser imputada aos arquitetos deste sistema de ensino – e não às artes e aos seus curadores.

5.12.18

Armadura


Ermo, “Púrpura Pálido” (ao vivo da Vodafone FM), in https://www.youtube.com/watch?v=WRDVVZEJEqs
Somos os fautores dos idílicos lugares a que entregamos a pertença. Sem os auspícios de sobressaltos, sem a avareza das imposturas, sem cuidar dos obnóxios limites que correspondem ao território a que somos indiferentes. Arregimentamos um vocabulário sem regras, as palavras que sobram na espuma dos dias; reinventamos a gramática, se preciso for – e, no limite, falamos num dialeto que mais não é do que o idioma aprendido, mas por nós reinventado, como se fosse uma linguagem cifrada.
Tornamo-nos peritos em desminagem. As teias complexas são estradas de sentido único, destravadas no pulso forte que sobre ela exercemos. Não queremos tábuas-rasas sobre os modos que somos; o rigor é a medida necessária para sermos residentes imunes por dentro da armadura de que nos investimos. Somos a nossa própria armadura. Um legítimo trespasse das leviandades; ou em dias ímpares, se nos apetecer, uma digressão por matérias outrora consideradas frívolas. Sempre que nos apetecer sermos atraiçoados no redil da incoerência. Pois não somos sindicáveis por ninguém. Só por nós mesmos. Só somos o que nos apetece ser.
Jogamos o jogo certo no palco que julgamos intemporal. “Aos costumes”, dizemos nada. Não somos apenas rebeldes por dentro do sangue que é feito da mesma massa. Atiramos a insubmissão aos rostos corados dos sacerdotes plúmbeos, porque não queremos se não que nos convoquem para heresias. Não importa. Se às heresias formos impingidos, não se nos dissolve o sono; e até dos sonhos podemos dizer ser seus lídimos arquitetos. Enganados estarão os que duvidarem e, em jeito de desafio, queiram provas de que temos os sonhos sob o vértice da nossa vontade. Sem desdém, desviamos os rostos e não aceitamos o desafio. Outra vez: não somos sindicáveis a não ser diante de nós mesmos.
Este é o parapeito onde temos o precipício sob os nossos corpos, todavia não transidos. De repente, evaporam-se as vertigens. Desfazem-se os medos, todos os medos, quando entrelaçamos os corpos num demorado amplexo, até sentirmos os ossos como que fundidos. A armadura é à prova de bala. Se nos pedirem o segredo, recusamos. Os segredos são dessa têmpera – segredos, matéria inconfessável, o reduto mais fundo que não tem serventia de assomar à tona.
Não é por acaso que criámos a armadura em que temos residência.

4.12.18

Teoria geral da teoria geral


The Album Leaf, “Twenty Two Fourteen”, in https://www.youtube.com/watch?v=3yv6Gn911uc
Não digo que não haja torniquetes que desabilitam ideias. Elas medram no almofariz, de onde exalam seus particulares odores à procura de alguém que se deixe seduzir. Não podem aspirar à perenidade. Ou melhor: uma ideia, assim que é formulada, pode ter conquistado direito ao perene, mas não se sabe, no momento da sua criação, se esse será seu estatuto vindouro. Podem ficar seladas em páginas de livros; têm todo um potencial de representação futura, até se perderem na vastidão da memória – até ficarem apenas como nota de rodapé na moldura das bibliotecas onde ganham poeira. 
Talvez o grande problema com as ideias seja que os seus fautores aspiram à perenidade. E ao reconhecimento. É a medida certa para a adulteração das ideias. O prodigioso sedimentar do raciocínio devia ignorar o chamamento exterior que se pespega, como vício contaminante, às ideias que não se querem afirmar desinteressadamente, como esteios de uma saudável esgrima de ideias, mas como forquilha que se crava no dorso das rivais, derrotando-as. O marasmo imberbe é orquestrado pelos campanários convencidos que vertem águas de superior qualidade. 
Não é para isso que servem as ideias. Não é essa a serventia da esgrima de ideias. Talvez a metáfora não seja acertada, pois na esgrima terçam-se as espadas até que um dos contendores salde, triunfante, o pleito. A esgrima das ideias é mais como um mercado, onde as ideias se expõem às pessoas que, por sua vez, se expõem às ideias à sua frente expostas. Não se pode, por metodológica cautela, travar o passo a qualquer ideia. Mesmo às que, à partida, possam parecer soezes, hediondas, canhestras, “socialmente reprováveis”. Não se confundam os planos: este preceito geral não corresponde à normalização de ideias (sobretudo políticas) que constituem entorse aos valores que a civilização, com o beneplácito da maioria que a cauciona, tem como alicerces. Nem deve ser uma porta aberta àquilo que consideramos aberrações, danos perpetrados aos valores que, enquanto civilização, aceitamos como aceitáveis. As civilizações não são inertes. Acomodam-se, com o lastro do longo prazo, às variações demandadas por transformações.
A teoria geral da teoria geral é um quadro mental superior que parte do princípio de que nenhuma ideia, por mais abjeta que pareça quando filtrada pelos nossos valores, deve ser proscrita. Ao nível expositivo, todas merecem o benefício da dúvida – não como manifestação de complacência, nem – convém repetir – como exercício de normalização de ideias emergentes depois de terem sido criminalizadas outrora. Merecem o benefício da dúvida para serem ouvidas, lidas, contrapostas, interrogadas, levadas ao palco da experiência no que contraditório diz respeito. Sem a teoria geral da teoria geral, tudo está contaminado à partida. Não se aceitem brigadas (que são sempre autorrepresentativas) para nos dizerem o que é aceitável e o que merece reprovação. Não sem antes sermos informados, e de preferência através de fonte direta, das ideias que nos interessam cotejar.

3.12.18

Introdução ao otimismo: o plano B não é o plano B, se não o autêntico plano A (short stories #75)


Imploding Stars, “Demise”, in https://www.youtube.com/watch?v=LBoiZbmeGe8
Da estratificação dos conceitos, em manobra gourmet– e, portanto, deliciosamente sedutora para os cânones intelectuais – de reconfiguração dos sentidos. Dirás, compungida e resignada, que o plano B é o plano possível. Dirás que lamentas não ter sido possível diluir os imponderáveis que travaram o plano A. Contristada, aceitas o que o plano B traz a teu cargo. Sem grande excitação. Dirás, em jeito de remate, que é natureza das coisas, e somos de uma matéria que nos coloca no precipício da eterna insatisfação. Contraponho: as luzes visíveis açambarcam a lucidez necessária para tudo sopesar. Não podes lamentar a impossibilidade do plano A e a capitulação perante o plano B apenas porque a ordem alfabética admite uma precedência. Nem o podes fazer porque não tens os dotes do contrafactual: como poderás garantir que o plano A seria mesmo o plano A se não chegaste a experimentá-lo, a sentir os seus resultados? Ao contrário do que pensas (em jeito de lamentação), não colhe a angústia pela remissão ao plano B. Se quiseres considerar mais variáveis, começarias por interrogar se as impossibilidades são dadas como tal, ou se não passa de uma defesa contra a possibilidade de as impossibilidades se confirmarem? Tecendo o plano A como pertencendo ao domínio das impossibilidades (e a dares por adquirido que as impossibilidades se demonstram a si mesmas), o plano A nunca o chegou a ser. E não conta invocares que ele foi concebido com esmero no estirador das hipóteses, pois sobre ele lançaste, à partida, o anátema das impossibilidades. O plano B não é o eco da resignação. Não é um plano menor, nem merece ser apoucado porque o tens como contingência. O plano B é o autêntico plano A. Se continuares arreigada à dicotomia “possibilidade-impossibilidade” (o que merece outra conversa, prometida para outras núpcias), só te sobra o entendimento de que o plano B foi promovido à categoria de plano A. E tudo se reconcilia por dentro de ti.

30.11.18

Bacalhau há Braz


The Art of Noise, “Paranoimia”, in https://www.youtube.com/watch?v=6epzmRZk6UU
          Chegou à porta do infantário com a filha, como acontecia todas as manhãs. Ao tocar à campainha, os olhos esbarraram na ementa (não por acaso afixada ao lado do intercomunicador). Naquele dia, as crianças iam comer “bacalhau há Braz”. Pensou: não é mau manuseio do idioma, não senhor, para um estabelecimento de ensino. Uma vez dentro do infantário, chamou a responsável (que coincidia com a proprietária). Perguntou, com um propositado ar de desdém, se ao mesmo tempo que as crianças iam ter bacalhau como repasto o almoço seria acompanhado por um palhaço de nome Braz. A senhora fez um esgar de surpresa e disparou: 
- Não entendo. O que quer dizer?
- Quero dizer que a senhora se esqueceu de interceder por uma vírgula entre a palavra “bacalhau” e o verbo “haver” que precede o nome do – julgo eu – palhaço chamado Braz.
- Continuo a não perceber. Onde quer chegar?
- Depois de deixar a minha filha e abandonar o seu estabelecimento, quero chegar à primeira papelaria para comprar um corretor líquido e uma esferográfica preta.
-  Por favor, clarifique essa linguagem cifrada.
- Deve ser da mesma ordem de grandeza da destreza de quem escreve as ementas afixadas à entrada.
A senhora começou a perder a paciência. E nem os pergaminhos de aspirante a personagem bem cotada na “sociedade” conseguiram domar alguma mostarda que, notava-se, começou a subir ao nariz.
- Se está a gozar comigo, escolheu o dia errado.
- Está mal disposta? (perguntou, sem conseguir reprimir um tom levemente irónico, que não passou despercebido e detonou a ira mal contida na responsável do infantário).
- Fiquei agora.
- Não me diga que foi esse acesso de má disposição provocado pela minha interpelação...
- O que acha?
- Que o palhaço Braz deve ser tão famoso que até o chamam para acompanhar o bacalhau servido ao almoço. Isso é para convencer as crianças a comerem bacalhau?
- De uma vez por todas, explique-me o que se passa com o bacalhau e o palhaço Braz.
- A senhora vistoriou a ementa afixada à entrada?
- Não precisei. Eu é que a escrevo.
- Ah! Está tudo explicado. Deixe-me dizer que ao olhar para a ementa afixada à entrada fiquei com a ideia que o bacalhau convocou o Braz para a refeição.
- ...(com ar atónito e afogueado, sentindo que estava a ser escarnecida.)
-  É o que depreendo. Pois se o verbo haver (há, com “h” é do verbo haver, não é?) vem a seguir ao bacalhau, é porque o bacalhau está a anunciar que há um Braz a acompanhá-lo. Parto do pressuposto que não mataram nenhum Braz para povoar o bacalhau como acompanhamento – nem admitia a possibilidade de os educandos serem introduzidos à antropofagia...Se me permite o conselho gramatical: se é este o caso (a visita do Braz à hora do almoço), coloque uma vírgula à frente do “bacalhau”.
- Estou cada vez menos a perceber o que me está a dizer. Até parece que está a falar estrangeiro.
- Imagino que sim, que este idioma, e esta gramática que é minha, sejam estrangeiros para a senhora.
- Lá está outra vez a abusar no cinismo. É incorrigível!
- De todo, minha senhora, de todo. Peço desculpa se a abespinhei. Permita-me só um pedido: ao menos que valha a pena, a presença do palhaço Braz a acompanhar a refeição. Se tiver conseguido convencer a minha filha a gostar de bacalhau, perdoo-lhe o resto.
- Perdoa-me o quê?
- Vá ler a ementa com olhos de ver e amanhã voltamos a conversar. Da parte que me toca, perguntarei à minha filha se o Braz palhaço tornou comestível o bacalhau de que ela não gosta. E depois, talvez tenha umas vírgulas para trocar em abono de um desconto na propina – ou uma sugestão para não confundir o verbo “há” com a contração da proposição “a” com o artigo definido feminino singular “a”, que resulta em “à”...

29.11.18

Clorofórmio, “a bem da nação” (short stories #74)


LCD Soundsystem, “You Wanted a Hit” (Live on Austin City Limits), in https://www.youtube.com/watch?v=_1c1zhV3vHk
          Que smoking impecavelmente engomado. Que vestido de lantejoulas milimetricamente cintado no corpo elegante, feito à medida do vestido (e não contrário). Que néones deslumbrantes, o pináculo da sociedade efervescente e dos não comezinhos fazedores de modas e de opiniões. Que universo resplandecente, porventura os seus atores imunes aos achaques da humanidade, todo ele no pesponto da irradiação dos seres cuja perfeição foi feita à prova de bala. Que palco acetinado por onde desfila apenas o escol. Que festividades onde todos olham para todos e nenhum olha por si. Que deslumbramento feérico onde se colhe o húmus da frivolidade. Que pertences parasitas, que se encostam perenemente ao estatuto para obterem prebendas e sinecuras apenas pelos pergaminhos que ostentam em público. Que esgoto serventuário de figurões impantes, beócios indistintos, apedeutas, acéfalos seguidores uns dos outros, poupando no vocabulário usado ora para não escorregarem para a herética crítica, ora por manifesta incapacidade. Que passadeira simultaneamente reluzente e puída, o reluzente ocultando o puído das bainhas de quem se ostenta no centrípeto lugar que cativa as atenções. Que figuras fulgurantes se soerguem na espuma oca que habita nas páginas das revistas da especialidade, e depois se evaporam quando a maré deixa de os trazer no protetor regaço. Que estultos espécimes, que se fartam de agredir a gramática e a sintaxe. Que indisfarçável vaidade, muralha que esconde fragilidades inconfessáveis por intermediação de um manto de inatacável condição. Que presunção homérica. Que poltrões situados nas margens da infecunda servidão. Que asfixiantes personagens que poluem com seus rostos amplamente sorridentes, dos tais que brancos dentes têm para mostrar, no tribunício altar de onde são sacerdotes e primeiros cultores de um séquito que inventam. Que fantasioso cosmos em que medram peritos assoberbados com a fragilidade do invólucro que os reveste, sem saberem do paradeiro da malha mais funda que se confunde com sua leviandade. Que frondosa casa habitada por escolhidos pela vacuidade de seus estamentos. Que impecável lugar, este, habitado por cidadãos que perdem minutos da sua (desinteressante) vidinha a dar conta dos desenvolvimentos da (desinteressante, mas flamífera) vidinha dos exultantes apóstolos do desanonimato. Clorofórmio, e abundante, em cima deste mapa!

28.11.18

Controlo remoto (short stories #73)


Sigur Rós, “Olsen Olsen”, in https://www.youtube.com/watch?v=j2GjOC79gVI
          Este corpo suado: a transgressão das fronteiras, já o corpo pousado no estertor que limita os despojos da desarrazoada empreitada. Visto à distância, parece demencial. Visto à distância: não se aceitam os despreparos em que o corpo se debate e, todavia, o controlo remoto encaminha-o para o auto das impossibilidades na arena onde o chão parece não ter substância, onde o ar tem uma leveza insólita, onde a pele se emacia na ausência de humidade, onde as palavras se enovelam em seus sentidos paradoxais. E o controlo remoto continua ativo, frenético. O corpo que controla é o corpo próprio de quem manipula o controlo remoto. Nunca terá sido tão acertado usar o verbo “manipular”: o corpo que se emancipou por vontade do seu alter ego que tem o controlo remoto na mão, é um autómato que obedece aos caprichos da vontade do corpo domador. Como se houvesse duplicação de substâncias e o corpo se materializasse numa representação a ele exterior, para ser domado pelo controlo remoto que é depositado nas mãos do corpo dominante. Só para testar os limites a que pode ir o corpo – mas o corpo sujeito ao controlo remoto. Cobaia do apetite do domador corpo, este covardemente acolitado pelo controlo que, à distância, endereça as ordens a que jugaria impossível corresponder se fosse ele próprio, corpo sem véu, sujeito à experiência. E o corpo exsudado cambaleia, extenuado, no limiar dos sentidos. Mesmo no precipício do desmaio, o corpo experimentado ainda arranja forças para balbuciar que já não aguenta mais, convocando piedade. O corpo dominante, na implacável arena da tortura, quer saber dos limites. Não capitula perante a imagem compungida do corpo outro que se debate com dores excruciantes, não se percebendo se o suor em que se banha é o substituto da voz que, calada, não pode clamar por comiseração. Com o controlo remoto na mão, prossegue a maldade praticada sobre aquele seu corpo representado em holograma. Não se importa que possa perder uma vida, já não distinguindo o que se passa de uma simulação. Continua convencido que é como os gatos, com sete vidas para atirar como se fossem os dados lançados ao tabuleiro onde decorre o jogo. Ninguém lhe disse, em aclaração dos céus embaciados, que não é um gato. (E nem os gatos têm sete vidas.)