23.1.18

A matilha

LCD Soundsystem, “Emotional Haircut” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=FcBsQzEQGZs    
A matilha segue, ordeira. E, todavia, não há regras a que os cães obedeçam. Parece que leem os sinais corporais uns dos outros e cada um sabe o que fazer. Sabem que se estiverem juntos se protegem uns aos outros. Desconfiam que se cada um for à sua vida, ficam à mercê dos contratempos que, sozinhos, não conseguem domar. Desconfiam, mas não têm provas de que assim será.
Juntos conseguem arranjar comida. A diligência de um deles, que arremete por um caminho íngreme e estreito, contra as melhores probabilidades, permite descobrir a mina. Nas traseiras de um restaurante, há restos de comida a rodos. Os cães banqueteiam-se. Nenhum persegue o pedaço de comida abocanhado por outro. Respeitam a ordem de chegada: se a um deles coube maior fartura ao esquadrinhar as sobras, deixam-no com o espólio sem o invejarem, nem o disputarem.
Conhecidos de longa data, os cães da matilha perseveram num espírito de sobrevivência que daria que pensar a muitos humanos (teoria número 1). Se um membro da tribo é acossado (por um hominídeo, ou por outro animal, da mesma espécie ou de espécie diferente), os demais não hesitam e disparam numa enfurecida correria em seu socorro. É nesta altura que se transfiguram e mais parecem mastins possuídos pelo demónio, mostrando os dentes atiçados e um olhar que trespassa o agressor. Se o poder dos números não chegar, meia dúzia deles fazem como os forcados e avançam, destemidos, para o atacante. É possível que a peleja se salde por umas quantas feridas incisivas, ou (se a pior das hipóteses se confirmar) por baixas em combate. Não terão sido em vão – dir-se-á, em abono do corajoso ato de defesa do grupo. Não fosse a coragem coletiva e o primeiro passo dos mais destemidos, o membro atacado perecia às mãos do atacante. Porventura não sabem, os da matilha, que não sobram para a história os que dão o peito aberto em defesa do membro fragilizado. Depois da glória efémera, fica o terreno do esquecimento (teoria número 2).
Os que louvam a identidade de grupo e a coragem em nome coletivo, embevecidos, oferecem o caso como exemplo. Apressar-se-ão a ensinar o valor da solidariedade e o desprendimento de quem está disposto a fazer da vida própria um enigma nesta equação (outra vez, teoria número 1). Os de fora da matilha, não seguros das malhas identitárias que se soerguem com as pertenças, desconfiam do predicado. Não entendem que uma vida possa ser sacrificada para salvar outra vida (teoria número 2). Talvez nunca tenham pertencido a uma matilha. Como, sem ser talvez, nunca tenha sido dado a apreciar aos membros da matilha estas complexas coisas do pensamento que desaguam em dilemas.

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