29.6.18

Desterro?


Imploding Stars, “Earthquake”, in https://www.youtube.com/watch?v=xSPIAEjUpBg
Quem se pode gabar de morar num lugar chamado Desterro? 
É outra travessura da toponímia lisbonense: há um lugar que se chama Desterro. Não o conheço. Não sei se faz jus ao nome e as casas são horrendas, caiadas de negrume, um lugar nauseabundo de onde as pessoas fogem se puderem. O desterro é um exílio. Se levarmos o conceito no seu sentido literal, ninguém se submete ao exílio nos limites da sua vontade. O exílio é uma punição para crime de grave jaez – pois, de outro modo, a simples prisão teria o condão de cumprir a função. Com o desterro, o crime terá sido hediondo ao ponto de se avaliar o expurgo do criminoso. Ele não merece continuar a coabitar o mesmo espaço dos demais, que se desejam protegidos da má influência do desterrado. Ato contínuo, o degredo como pena aviltante para quem cometeu crime que passa das marcas.
Para quadrar com as circunstâncias degradantes que se quer impor ao meliante, o desterro é um lugar que ninguém quer. Longínquo, destemperado, cavernícola, abjeto, uma autêntica latrina – a antítese do que se considere um paraíso. É isto um desterro. E que Desterro haverá em Lisboa? O que terá levado alguém, autor da toponímia consagrada, a lembrar-se de, àquele lugar, chamar “Desterro”? Como pode a cidade que é capital (que outrora foi de um império) albergar dentro de seus limites um lugar acintosamentechamado Desterro?
Mas há lugar para um olhar pela lente da antítese. O desterro pode ser um destino que se quer. Uma fuga. Mesmo que seja em contrafação do sentimento dominante. Pode haver um desterro voluntário, intencional, por paradoxal que seja. É quando se combina um exercício monástico que exige um sacrifício como compensação da perda de identidade com um lugar a que as convenções chamam o lugar próprio. Pode alguém querer fugir de onde está, não se incomodando que o desterro seja a paragem no fim da linha. Continuará a ser um lugar evitável pela maioria. E um desterro como refúgio para a incompreendida minoria. 
Afinal, estar no desterro pode não ser uma reprimenda – e das piores que se pode conceber. O Desterro em Lisboa pode ser uma imagem deste significado. Ou então, pode ser apenas para recordar que houve em tempos, apenas ocupados pela memória, a maldade que se retribua com uma viagem até ao desterro – dizia-se: uma maldade ainda maior. Para não nos esquecermos da bondade dos tempos modernos.

28.6.18

Cemitério dos prazeres?


Velvet Underground, “Pale Blue Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=KisHhIRihMY
Quando soube que havia em Lisboa o Cemitério dos Prazeres, interroguei-me: como pode um lugar onde estão depositados restos mortais ter nome tão convidativo? Como pode alguém que celebre a vida como o maior dos festins dar este nome a um lugar a que pertencem os que já não podem dizer o mesmo da vida? Como pode um cemitério fazer uma alusão aos prazeres, se o que lá se encontram são os despojos de quem se finou – poder-se-á entender, portanto, que a morte é um prazer?
(Ou a escolha do nome virá, apenas, porque o lugar onde foi construído o cemitério se chama “Prazeres” – e, nesse caso, concluir-se-á dizendo: que infausta escolha para lugar do cemitério.)
Admito que a estranheza vem muito do medo da morte. Faz sentido discordar que se escolha semelhante toponímia para um cemitério. Ele há tantos nomes possíveis, tantas palavras a escolher dentro de um sempre rico léxico que pertence a qualquer idioma, por que se foi avocar a palavra “prazeres”, de conotação sempre positiva e hedonista, para representar o lugar onde repousam uns restos mortais? Porventura será mais confortável, para os que acreditam na existência de vida para além da morte física – da vida perene, pois então –, saber que o lugar onde seus restos mortais vão ser depositados evoca uma realidade hedonista. Dir-se-ia, para quadrar com esse pressuposto: nada melhor, para a eternidade que se representa no lugar físico onde são deitados os restos mortais de alguém, do que convencer que esse é um lugar onde se corporizam os prazeres. O prazer de, estando fisicamente morto, se saber de alma perenemente viva. Seria como no bilhar, quando se mete a bola às três tabelas: a morte não é um  lugar recomendável; mas, uma vez repostos os restos mortais num cemitério que se chama dos prazeres, teremos a certeza que atingimos, por fim, esse ideal lisérgico da vida eterna e plena de prazeres.
Ou então, a hermenêutica da toponímia podia levar a outra dimensão: se por prazeres se remete para aqueles que têm uma verificação no plano sensorial, e admitindo que a maioria dos habitantes de qualquer cemitério são mortais que atingiram a velhice, um nome assim escolhido para o cemitério retrata o lugar onde está deposta muito gente que já tinha perdido o rasto a esses prazeres. É uma antonomásia aplicada ao conhecimento terreno – uma forma de levar os mais curiosos a perceberem por que se atribuiu tal nome a um cemitério e, ato contínuo, caso não pertença ao seu conhecimento, a saberem o que é uma antonomásia.
Ou então, o cemitério chama-se “dos prazeres” porque se embebe numa leitura mais sombria da existência humana: considerando que a vida é uma passagem sacrificial que impõe à maioria dos viventes um desprazer, a morte é a redenção. E o lugar onde se alojam os defuntos, a entronização dos prazeres que foram vedados aos viventes na sua sacrificial passagem terrena (talvez, numa interpretação tangente ao mito islâmico da redenção dos mártires através da concessão de setenta virgens no céu). 
Lisboa parece pródiga na toponímia que exalta o alvoroço: há lá um lugar que se chama Desterro. E poder-se-ia perguntar: quem gostaria de morar no Desterro?

27.6.18

Perderam 6-1 e sentiram-se ganhadores


Kfratwerk, “The Robots”, in https://www.youtube.com/watch?v=vpTRDY5XkrY
A geografia das forças é de uma relatividade desarmante. Vemos um pleito desigual. Uns, muito fortes, passeiam na orla do triunfo, dando-se ao luxo de meter as forças a meio gás. Os outros, seus adversários, meãos na força comparada, parecem leões indomáveis com o propósito de limitar os danos da derrota. Olha-se para a arena onde decorre o pleito e parece que os mais fortes têm o dobro dos praticantes em comparação com os mais fracos. 
O público que apoia os mais fortes parece letárgico. Já não celebra o que nem sequer considera uma proeza. Estes jogos desiguais diluem a adrenalina. O repetitivo desfile do triunfo faz perder o apetite pela celebração. É como se o próprio triunfo tivesse sido desprovido de interesse, perdendo o lacre de façanha. Algum desse público alheia-se. Falam uns com os outros, entrecortando a conversa quando dão conta de mais um motivo para celebrar os seus, quando o desnível aumenta com mais um golo. À saída da arena, vão anestesiados: triunfos destes não são apimentados, não fazem acelerar a palpitação; não conferem, sequer, o prazer redobrado da celebração que é esbofetear a vitória no rosto contristado do adversário. 
O público que esperançosamente apoia os mais fracos passa o tempo todo em efusivo festejo. Só por estarem na arena e serem adversários dos mais fortes é razão de sobra para se encherem de brio. Não perdem o entusiasmo de cada vez que o desequilíbrio se amontoa. Chega o intervalo e a derrota está selada – aliás, todos estes apoiantes dos mais fracos estariam convencidos, antes do pleito ter começado, que esse era o destino que quadrava com todas as probabilidades. Não chegam a iludir-se. É a matéria-prima para extraírem todo o prazer do pleito. Eles nunca chegarão a ser confrontados com o peso humilhante da derrota. A festa imorredoira trata de arrumar essas más convenções sob as pálpebras que irradiam felicidade.
Quase no fim, os meãos marcam um golo. Aproveitaram o desmazelo dos mais fortes, já desinteressados em continuar a cavar um abismo para os mais fracos. O público afeto entra em êxtase. Celebram como se tivessem sido os vencedores do pleito (quando estão apontados à fama efémera do último lugar). O pleito termina logo a seguir. O público apoiante dos meãos continua a celebrar, numa coreografia caótica mas insistentemente estética, como se os seus continuassem a meter golos já depois do pleito terminado. 
E aprendemos: os cânones podem-se transfigurar e os que teriam legitimidade para celebrar afundam-se na letargia da rotina, enquanto os que foram açoitados pela derrota desnivelada encontram motivos para uma celebração genesíaca. Todos têm a ganhar alguma coisa.

26.6.18

Os ingleses só sabem atirar bolas para a grande-área do adversário (digressão sobre a monotonia)


Marlon Williams, “What’s Chasing You”, in https://www.youtube.com/watch?v=zchdH3zAYAE
Ele estava à mesa do café, enquanto na televisão passavam as imagens de um jogo de futebol. Era a Inglaterra contra outro país. Espreitou (não que tivesse interesse na modalidade, nem estivesse entusiasmado com o certame que decorria). Veio à lembrança uma memória longínqua, da pós-adolescência. Estava num campo de férias, algures em França. Era um evento cosmopolita. Entre os participantes, havia uma amostra de grande parte das nacionalidades europeias. Até dos países de leste, que acabavam de se desembaraçar do comunismo, libertando as amarras que amputavam os movimentos destes jovens. Os ingleses eram dominantes. O inglês, o idioma franco, o mínimo denominador comum entre toda aquela gente, o padrão exigível para um mínimo de comunicação. 
Certo dia, combinou-se um jogo de futebol entre os rapazes. (Ele não pode fazer nada contra este laivo de sexismo, hoje intolerável; o episódio passou-se há mais de vinte e cinco anos, quando ainda não era politicamente incorreto separar os géneros nas manifestações desportivas.) De um lado, os ingleses. Do outro lado, um macedónia de nacionalidades. Naquela altura, os ingleses eram os mais altos. Especialmente quando eram cotejados com os latinos, ainda de meã estatura. Tal como acontecia nas manifestações desportivas. Quando as equipas inglesas disputavam um jogo de futebol contra equipas de países latinos, os ingleses exageravam nas bolas pelo ar para a grande-área da equipa adversária. Estavam convencidos que a diferença de alturas faria a diferença. 
(Também ficou popularizado o mito de que os baixotes italianos, sempre dois passos à frente dos demais no que toca à congeminação de expedientes que pudessem adulterar as forças dos adversários, mastigavam alho durante os jogos e exalavam o bafo insuportável no rosto dos longilíneos avançados ingleses antes de mais uma bola despejada para a grande-área. Como os ingleses se dão mal com o odor do alho, perdiam capacidades de impulsão e os seus planos táticos soçobravam diante do modesto alho.)
No jogo multinacional entre os rapazes do campo de férias, tudo isto foi reproduzido (menos os dentes de alho mastigados pelos defesas da equipa adversária dos ingleses): as bolas eram atiradas pelo ar para a grande-área, à espera que os muito altos rapazes ingleses conseguissem tirar partido da estatura e meter a bola na baliza. Foi assim o jogo todo. Ele só se lembrava que apesar do jogo insistente e da maior estatura dos ingleses, a vitória pertenceu à equipa que era uma constelação de nacionalidades, com destaque para os latinos. A criatividade sobrepôs-se à monotonia.
Uns dias mais tarde, ele lembra-se da confissão de uma francesa, seu flirtde ocasião, que já tivera namorados ingleses (ema certa predileção, que ela não conseguia explicar). De acordo com a rapariga, os ingleses eram todos uma maçada, repetitivos, monótonos, sensaborões. A léguas da criatividade do rapaz português.

25.6.18

As aliterações insurgentes


Caribou, “Odessa”, in https://www.youtube.com/watch?v=aiSa7THgxrI
Consomem-se as maias primaveris no marasmo que se amofina contra o inverno a destempo.
Vetustas as velhinhas envidraçadas no volume inverosímil do seu cabelo postiço.
Os gurus arregimentam seguidores, para gáudio do seu egrégio ego, em gasta candidatura a guiar os outros.
Arregaçam-se as mangas na arritmia dos arrojados arraiais que se desarranjam no rodo restante.
Computam-se as almas desapiedadas no sepulcro apalaçado, no sopé onde não se aprimoram pesares.
Enxugam-se lágrimas no enxoval que se enxerta na pele axiológica.
O diamante adorna no decálogo admitido, na dúvida que se divide nos dois hemisférios adversários. 
Atiram-se os tiros estonados contra os tribunícios atilados, à espera de um totem trivial.
Aborrecem-se os beócios por falta de albardados candidatos.
Os santificados senhores asseguram-se da servidão que sobre eles se assevera, insuspeitos da sua senhorial e humilde condição.
Os proventos que se dissipam na poeira estampada no mapa podiam ser prima matéria de um opúsculo apimentado pela pureza.
Enfatiza-se o enfado que se empresta aos estouvados estroinas, à espera de esquadrinharem o devir engalanado.
Marinheiros assanhados, não envergando suas fardas, conhecem o lugar e não se parecem acanhados.
Homem de honra costura o ónus em que se hospeda, hoje que se pôs um dia de hortênsias entre dois hiatos de melancolia.
Fareja o fardo o faroleiro enfardado, fortifica os fiáveis ossos em derrota das febres que o fustigam.
A janela dos jogos ajuramentados justapõe-se na justa medida das juras desajeitadas.
Queiram os querubins quebrar a letargia, quando as quadras ritmadas se moverem na quermesse.
A visibilidade dos vales venais sobrepõe-se às vítimas que se valem da vingança que vazam.
Inteligentes imaginam-se as imagens imanentes da insolência dos que se irmanam na casta, não intuindo como é indisputável a sua ignomínia.
Resultam os arraçados de arruaceiros na irremediável ronda que arrefece os medos.
O imprevidente presidente, aprisionado na sua proverbial popularidade, não se precatou e apanhou um imprecado ósculo de um primata.  

22.6.18

Estibordo (ou bombordo, depende do posto de observação)


Idles, “Colossus”, in https://www.youtube.com/watch?v=VODKZxsRa_E
Por que teimamos na razão, quando a reivindicação da razão é das credenciais mais desrazoáveis que nos podem tocar? Por que temos a pretensão de estar de um lado certo, a nós convocando uma razão qualquer, só para sentir as veias aliviadas da combustão própria de quem se achou órfão da razão – ou só para alcançar a vaidade que compete a quem reclama o altar da razão mercê do esbofetear da derrota no rosto do outro?
Cem por cento de probabilidades de um acontecimento fortuito negar uma ideia centrípeta: consome-se a vã esmeralda da razão, ou é preciso afinar os ponteiros da bússola, adulterando-os para congeminar uma distorção dos pressupostos à medida da razão que queremos que nos seja assistida. Tudo depende do posto de observação. Se duas pessoas estiverem em diferentes lugares e os seus olhares tiverem diferentes paisagens como ponto de mira, são diferentes as coisas que veem. Por que hão teimar num diálogo de surdos se falam de coisas diferentes e através de lentes que não são compatíveis? Por que hão de insistir na sua convicção, como se ela fosse superior à do outro, se os postos de observação diferem em tudo? Quando o diálogo é de surdos, e os que assim contracenam persistem no autismo da razão, manter o diálogo é uma extravagância que não paga dividendos.
Oxalá os que se empenham no monopólio da razão aceitassem mudar-se de estibordo para bombordo – e vice-versa. Só para medirem a tenência do quadrante a que não estão habituados. Não se lhes pede que mudem de posição; só que mudem de lugar e concebam, por um instante, a verificação das linhas por que se cosem as bainhas a que não estão habituados. Aceitando que o lugar que é diferente do seu servisse para dissolver imperativos categóricos, corredores estreitos por onde se move o pensamento e ideias com a contundência do saber à prova de contestação. Nem que fosse para saberem o lugar onde estão. 
Estar a estibordo é mais do que uma convicção. É um arregimentar da alma, que carece de método a preceito; não é uma escolha ao acaso, um dado aperaltado, fortuitamente, pela vontade que se soergue. Se devemos saber explicar as nossas escolhas (quando elas não se afivelam no reduto do espontâneo), não devemos aceitar o estibordo sem conhecer o bombordo – ou então, devemos admitir, como criterioso radar, que estibordo e bombordo podem ser amalgamados, servidos como o avesso do convencionado.

21.6.18

Quem quer subir no elevador social?


The The, “Uncertain Smile”, in https://www.youtube.com/watch?v=ynPadWk-1PI
Benedita nasceu em família humilde. Estudou, com a ajuda de bolsas e o mérito de ser aluna de exceção. Foi-se fazendo gente. A pulso. Começou a fazer carreira, outra vez escorada em bolsas e no desempenho que a colocava num escol. Benedita frequentava todos os anos a Festa do Avante. Era voluntária na montagem e no que fosse preciso para o certame ser o sucesso do costume. Benedita escreveu alguma prosa sobre desigualdades sociais. Sobre as tremendas iniquidades entre os que tudo têm e pouco fazem para terem mais ainda e os que vivem à míngua e vegetam nas camadas inferiores, muitas vezes caindo no alçapão da criminalidade. Alguma da prosa foi dedicada à correção das desigualdades. O que podia ser feito para que o elevador social fosse diligente e desse oportunidades para os que não têm nada, ou pouco, pudessem ambicionar um módico de dignidade. 
A Benedita era o paradigma do prodigioso elevador social. Se não fossem as suas capacidades e o esforço que com elas caldeou, de mãos dadas com as bolsas que foi vencendo, não teria saído da humilde condição que seria sua condenação de outro modo. O elevador social levou-a a certos estamentos que não conhecia. Os prazeres mundanos, a bitola aferindo-se por uma fasquia que ia crescendo com a sucessiva camada de hábitos consolidados, a habituação aos deleites do consumo, com concessões à burguesia de que se dizia detratora em palestras e escritos. Era o dilema do elevador social. Difícil era desprender-se de todas as suas consequências. Os hábitos burgueses passavam a ser irreprimíveis. Ao início, esses hábitos esbarravam com a doutrina. O tempo foi passando e os prazeres mundanos, e um certo estar burguês, foram sendo enquistados. 
Já sexagenária, a Benedita estava diante de um precipício – e não era uma tentativa de suicídio. Não sabia se continuava refém dos prazeres burgueses e acólita do elevador social, ou se insistia no catecismo que aprendera nova, nas reuniões dos coletivos. Ainda continuava a ir à Festa do Avante. Não falhou um só ano. Já não tinha frescura para ser voluntária. Mas mantinha-se fiel ao certame. Nessa semana, ocultava os vícios mundanos e as provas da capitulação à ordem burguesa, por contaminação do elevador social. O que não podia esconder era o sono controverso, sobressaltado, a divisão entre dois hemisférios milimetricamente divididos. 
Um dia alguém lhe lembrou, num colóquio, que em tempo houve um presidente da república que também se ufanava do muito humilde berço e de ter subido a pulso à boleia do elevador social. Só que nunca frequentou a Festa do Avante nem escondia a propensão por prazeres burgueses. E nunca escreveu uma página sobre desigualdades sociais. Benedita disse adeus à sexta década de vida a amaldiçoar o elevador social – e nos dias ímpares, a perguntar se uma mulher da sua igualha pode conviver com os malditos prazeres mundanos orquestrados pelo elevador social, ou se pode ser o esteio das ideias de que era cultora.

20.6.18

Boca de leão


LCD Soundsystem, “All My Friends”, in https://www.youtube.com/watch?v=aygY5OqMuKE
Imensa, faminta, gulosa. Medonha: o leão entreabre a bocarra e das entranhas soergue-se um trovão. Não se assustem. É a voz do leão. E nem por ser tonitruante deve haver temor. Ou o leão não podia comunicar. Não tem culpa, o bicho, de ser uma avantajada criatura, o “rei da selva” (se nos quisermos socorrer de um lugar-comum). Abre a boca em câmara lenta para quadrar com a sua condição de poltrão. Poderá ser poltrão por ser o suserano da selva (porque não somos monárquicos, evite-se a palavra “rei”). Mas é medonha, a boca do leão, nem que por ele não se dê um alqueire de medo na exata medida da preguiça que o amordaça. 
(Tanta é a preguiça, que nas regras espontâneas que regem a condição social da espécie, são as leoas – com menos envergadura – que se dedicam à caça e ao sustento alimentar dos clãs.) 
Inspira respeito, a simples pose do leão. A juba é credencial que sela a credencial de suserano. Que seja perdoado o deslize que atenta contra a igualdade dos sexos, mas as leoas não confiscam tanto respeito como a pose imperial (descontando o deslize semântico) do leão. E quando abre a boca, com os dentes caninos proeminentes, em câmara lenta – ainda por cima –, o leão exibe toda a sua condição superior. Mas o leão, preguiçosamente suserano, fica deitado, à espera de ser servido, respondendo com o tonitruante esgaçar da boca.
Mas o leão deve ter cuidado se muito abrir a boca. De tanta amplitude se abrir, e desbocado aparecer, em vez do medo sobressai a fragilidade do leão. Enquanto preguiçosamente boceja, pode o inesperado entrar pela boca e alojar-se nas entranhas, condenando o leão à fraqueza. Altura em que o leão admitirá que a soberba e a condição de poltrão foram seus algozes, pois de temível animal transfigura-se num fantasma de si mesmo, recaído numa amostra do que foi. Pois é pela boca que também pode morrer o leão, afinal reduzido à sua frágil condição por ser vezeiro no superior estalão que transporta. 
Não fosse tão grande e medonha a boca do leão, fosse ele capaz de não ostentar a usura do altar que ocupa na hierarquia da fauna, e talvez a boca do leão não fosse um paradoxal retrato perante o qual não sabemos o que definir. E ainda há quem se ufane de muito a boca abrir.

19.6.18

Esta casa grande


Jack White, “Connected by Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=WyWqEFeKX2E
Esta casa que é grande, monumento centrípeto sem lugar no mapa – porque é maior do que todos os mapas que a possam representar. Esta casa grande, onde se autorizam as quimeras, onde as mãos olham, desembaciadas, como é fria a nortada. Esta casa grande, onde são beijos os versos mais nobres em rima com as almas inteiras. Esta casa, aventura embainhada, cabo estético dos corpos que se entrelaçam num feixe de cores que extravasa o arco-íris. Esta casa é grande, sumptuosa, com janelas por onde entra a maresia, esse ouro que vale mais do que o ouro outro. Da casa sabemos ser grande sua medida: ajardinamos os seus deslimites com sementes esculpidas pelas mãos, contracenamos com o mar diapasão que passou a ser ingrediente dos nossos corpos, nós, os sublimes coreógrafos do que interessa. A casa grande oferece-se na bifurcação dos ventos, separando meticulosamente os que têm serventia dos que não merecem guarida. A casa grande, com janelas a preceito, portadas magnânimas vertidas sobre o sol que é bálsamo, transbordando o mar de que é seu dique. Esta casa que é grande, mostruário das almas habitantes. Postulado de palavras opíparas, o lugar das danças açambarcadas, servidora dos seus tutores. E estes, prestando vassalagem à casa grande, tornam-se da mesma estatura da casa que os alberga. A casa é grande, por cima da superfície que tomou conta. É grande, a casa, sem ter nada a opor ao nanismo das imediações (das vastas imediações). A casa é grande, porque não lhe interessa o cotejo com as outras, as que sufragam o ufano superior valor superficial e as que se terçam na humilde exiguidade. A casa que é grande dorme e acorda e vive e volta a adormecer com o inventário próprio, no sal desabotoado das paredes, na imensa claridade que a invade desde as janelas, no admirável sonho que se transfigurou em matéria tangível por todos os poros da casa que libertam suor e amor e palavras e lágrimas e se contagiam numa irrefreável vontade de abraçar os corpos ao tempo vindouro. A casa é grande e imorredoira, como quem nela tem seu sufrágio. 

18.6.18

Um rosto à chuva


Massive Attack, “Dissolved Girl”, in https://www.youtube.com/watch?v=GAiceRuLX1I
Perdido do tempo, numa errância escolhida em metódica tentativa de recriação, o rosto sob a chuva contínua. Sem dar conta. Era como se não estivesse uma intempérie – ou como se o tempo tivesse ficado dentro de um parêntesis, à espera de um chamamento vertido pela chuva. O rosto assim exposto à chuva era a metáfora de um rosto (talvez de todo o resto) que precisava de ser lavado sob os auspícios da chuva heurística. 
As gotas de água escorriam pelo rosto, abundantemente. E nem assim se sentia incomodado, ou tentado a procurar refúgio. Não seria como o gato vadio, talvez apanhado a meio da chuva inesperada, que aguardava por vez debaixo de um carro para regressar ao covil onde era melhor a guarida contra a chuva destemperada. Estava nos antípodas do gato. Ele não era vadio (a linhagem era célere em desmenti-lo). E, sem medo da chuva, queria que o rosto ficasse alagado pela chuva que não cessava de cair. 
Com o corpo ensopado, prosseguiu a errância. Não tinha ideia para onde ia. Só queria estugar o passo e caminhar, caminhar a eito, em sintonia com a chuva noturna que tornara a cidade quase deserta. Pensava: como as pessoas têm medo da chuva. Protegem-se dela. Não querem ficar com a roupa molhada, desconfortáveis, a jeito de uma gripe inoportuna. 
(Ou talvez não fosse assim de todo: a crer nas conspirativas teorias dos bastiões do patronato, os trabalhadores são poltrões e não se esforçam no trabalho. Se tiverem a oportunidade de ficar em casa, desfalcando as fileiras do seu emprego, não hesitam. De vez em quando – prossegue a teoria – uma pequena mazela, curável com um par de dias de cama e com medicamentos a preceito, vem a calhar para oxigenar do ambiente e das exigências do trabalho. Ao interiorizar a argumentação do patronato, e ao ver como estavam quase ausentes as ruas naquela noite tempestuosa, deduziu que a teoria não colhe. De outro modo, ter-se-ia cruzado com mais gente de rosto como ele à chuva, ao mesmo tempo que teciam suas preces para uma gripe moderada os acometer depois do período de incubação.)
Mas não eram estas observações que importavam. A roupa, de tão molhada, deixava à sua passagem um rasto de água que se misturava com as abundantes poças alimentadas pela chuva contínua. Mas o rosto – e talvez todo o resto – sentia-se revigorado, como se toda a água caída do céu fosse um manancial de rejuvenescimento. Andou horas a fio nestes preparos, candidato a uma gripe descomunal. Até que, já madrugada ia alta e a chuva começava a dar os primeiros sinais de abrandamento, foi derrotado pelo cansaço. Sentia-se frio, desconfortável, ensopado até aos ossos. Mas reencontrado por dentro, mercê da chuva paradoxalmente bonançosa. A gripe que viesse à vontade.

15.6.18

Um lugar honesto para estar?


Flat Worms, “Pearl”, in https://www.youtube.com/watch?v=HA7AU95C_zU
- Fugimos da verdade. É a sina de que não podemos fugir.
- Como se afigura a impossibilidade de tutelarmos a verdade?
- Talvez pela sua indefinição. Se pegares num retrato e não consegues encontrar moldura a preceito...
- Nesse caso, o mal estará na incapacidade das molduras. Poderá não haverá uma que esteja a feição do retrato. 
- E como pode um retrato sobreviver se não estiver ornamentado por uma moldura?
- O retrato pode dispensar moldura. São as coisas simples que reúnem um módico de subsistência.
- Parece-me que fica órfão, o retrato. Numa casa, quando as pessoas expõem fotografias, elas têm sempre uma moldura. Torna-se a ossatura do retrato.
- Nem tudo se resume a essa simplicidade. Pensa num quadro: se ele não tiver moldura, aparece descarnado aos olhos de quem o veja. Expõe-se em toda a sua imensa nudez. Não pode haver mais transparência, maior franqueza.
- Esse lampejo de transparência pode não passar de um ardil. Parece voyeurismoao contrário,voyeurismoporque quem se expõe em toda a sua transparência ambiciona a redenção. O exibicionismo disfarça outros padecimentos.
- E se for assim? Não é melhor a franqueza de descarnar até as coisas mais inconfessáveis, do que pretender ser apenas o fingimento de si mesmo?
 - Esses arrependidos convolam-se por uma razão qualquer. Não é suficiente a transparência como ato de redenção. Precisamos de saber porquê, para a franqueza ser completa.
- Não posso concordar. Esse processo é maiêutico. Diz respeito a processos interiores que têm de ser alheios ao conhecimento exterior. O que importa é o fim do processo. A transparência que desagua no humilde descarnar de si mesmo.
- Possivelmente não passa de um limitado ato de resgate, como se houvesse a necessidade de limpar do espelho qualquer mácula herdada do passado. Não tenho a certeza que seja um ato inteiramente honesto.
- Entramos noutro domínio: como se pode captar, com rigor, a honestidade dos atos de outrem?
- Podemos ser nós a julgá-lo.
- Como? Quais são os artefactos à tua disposição para julgar os insondáveis meandros do interior dos outros quando eles exteriorizam um sinal que nos pretende convencer da sua honestidade?
- É um jogo de comparações. Entre atos e palavras. Compulsando, pelo meio, a confiança de que essa pessoa é credora.
- Esbarras num duplo problema. A começar pelo fim: os maus pergaminhos deixados pelo pretérito devem ser uma perene espada sobre a cabeça de uma pessoa? Não têm o direito a reclamar um crédito mínimo de redenção? Segundo – e insisto: como é possível ajuizar com total justiça a conformidade entre atos e palavras proferidos por outros? Admito que seja possível compará-los. E que, muitas vezes, as pessoas trazem às costas um mar de incongruências. Mesmo assim, nunca nos será dado a saber se essas incongruências não são propositadas, um jogo de espelhos que esconde diferentes camadas. Podemos querer parecer o contrário do que somos sem que isso seja uma desonestidade. Se a proteção contra o exterior o impuser...
- Segundo o teu argumento, não podemos julgar a honestidade dos outros?
- É uma empreitada insuperável.
 - Termos em que podíamos concluir, desta nossa conversa, que a honestidade é indeterminável.
- Se a projetares sobre a individualidade que te é exterior, sim, é indeterminável. Não podemos viver por dentro dos outros. Só tens duas hipóteses: ou confias nos outros (em quem queres confiar), ou abdicas dos julgamentos a propósito da honestidade dos outros.
- Passamos a ser ilhas, desse modo. Desligados uns dos outros.
- Podes ver a questão nesses termos. O custo desta hipótese é menor do que a alternativa de ensaiar julgamentos sobre a honestidade dos outros.
- Resta-nos mergulhar sobre o interior de cada um de nós.
- Porventura. Com uma dificuldade em acréscimo: se decapares as sucessivas camadas do pensamento, podes chegar a um ponto em que interrogas a tua própria honestidade. A certa altura, o significado da palavra. No limite, a inteligibilidade do conceito. Dirás: não sobra nada, seremos cada um de nós rodeados por um deserto.
- Recuso-me a laborar nesse apocalipse. Que serventia teria sermos alguém se esse fosse o palco montado?
- A resposta cabe a cada um de nós. Só a cada um de nós.

14.6.18

A opereta dos loucos


Joe Goddard, “Music Is the Answer”, in https://www.youtube.com/watch?v=bwPLvt6BFPg
Ostracizam os loucos. São arrumados a um canto, desprezados na haste da sua loucura, seres aberrantes que divergem dos cânones. Alguns, são internados em hospícios. E, contudo, gente mais perigosa, não tida como louca, continua a sua missão, impassivelmente, com o beneplácito dos preceitos em que se costuram as bainhas da (soi-disant) “normalidade”. 
Dizem que os loucos não guardam a totalidade do pensamento consigo. Dizem que são ininteligíveis. Dizem que são perigosos porque desafiam a antítese da loucura, a consistência lógica que – dizem, também – é o mastro a que se agarram as pessoas obedientes à metodológica “normalidade”. E, todavia, vejo à volta tanta gente desapossada de lógica, gente que não é sujeita ao aquartelamento que isola os loucos, pois é tida como não louca por tantos quantos, assim também autoconsiderados, os isentam do vexame. Gente que treslê o que diz e o que faz e não admite a possibilidade de tresler. Gente na política, no desporto, na economia, na academia, na sociedade (para aqui chamada apenas a que tem a usura de visibilidade pública), na rua. 
Não são os “loucos normais” que importunam – os loucos assim determinados e deixados à margem pelos demais. São os “normais loucos”, gente que disfarça a loucura, por vezes criminosa, apócrifos na passeata ufana pelas ruas públicas. A acrimónia com que desdenham dos “loucos normais” é pergaminho pouco recomendável. A pose de superioridade serve de mote à troça dos “loucos normais”. Os “normais loucos” escondem-se atrás de um falsário véu de sanidade, corrompendo o que tocam pela vileza de métodos, por transfigurarem os métodos em função dos fins (que tudo podem sacrificar, até a honradez própria, se preciso for), abusando da insolência de quem mostra o contrário do que diz e continua orgulhoso dos factos e das palavras, sem admitir o contrassenso. São mitómanos sem vergonha, transformando em verdades as mentiras a eito em que mergulham. Gente inescrupulosa. Falsários do vocabulário, ao serem tutores da sua adulteração. E o que é alguém que adultera o vocabulário, se não um louco contudo não tido como tal (por causa do viés dos cânones aplicáveis)?
Os “loucos normais” estão trinta degraus acima dos “normais loucos”. Primeiro, porque admitem a loucura e não se refugiam em ardis para a desmentir, nem caem em auto-negação. Depois, os “loucos normais” conseguem chegar à criatividade, ausente nos demais. Por dentro do seu pensamento vogam os corredores complexos de que medra um rico manancial de recriações do estabelecido, uma visão diferente, vedada aos olhos da “normalidade”, que tantas vezes consegue destruir os óbices que se colocam ao entendimento das coisas. Os “loucos normais” são genuínos. Não precisam de se esconder atrás de cortinas ou de palcos rombos para mostrarem uma coisa diferente da que são. 
Tudo joga a favor dos loucos. Às vezes, diante da pobreza que é militante estalão dos transeuntes da sociedade, apetece deixar todos os destinos nas mãos dos loucos. Uma quase  certeza aspira a sê-lo, na aposta dos resultados: pior, não seria.

13.6.18

O tiro errado


Eels, “Fresh Feeling”, in https://www.youtube.com/watch?v=rAePtI2LAvA
Pode um instante hipotecar o futuro, dissolvendo-o numa simples memória do que podia ter sido se não fosse o ato que tomou conta do instante. Um gatilho premido sem querer; ou o mesmo gatilho premido intencionalmente, na suspensão do tempo que não cauciona a lucidez. O projétil atravessa o espaço que medeia entre o revólver e a vítima, atravessando-o como se fosse possível ser em câmara lenta, ou como se o tempo quase se suspendesse durante o trajeto da bala. É possível que o verdugo reveja o futuro naqueles breves instantes que, por transitarem em câmara lenta, sabem a eternidade. É possível que a vítima seja assaltada por um paradoxal sentimento de quem está dividido entre o pânico de se saber alvejado numa fração de segundo e a demora, inerente à câmara lenta, que admite um breve rememorar da vida até àquele momento.
A bala é a intermediária. Um simples mensageiro. Esculpe o ar com a sua velocidade vertiginosa, letal, todavia atravessando em câmara lenta, muito lenta, o espaço entre os pontos A e B (respetivamente, o verdugo que dispara a arma e a sua vítima, intencional ou acidental). Se ao menos a bala pudesse estabelecer o feixe de sensações que invadem o verdugo e a vítima, talvez perdesse força, ganhasse vontade própria e se desviasse do lugar a que pertence a vítima – que deixaria de o ser. Talvez fosse um súbito golpe de vento a moldar a trajetória do projétil e o verdugo se safasse da prisão e a vítima pudesse ver o dia seguinte para contar a fortuna com que pôde contar. 
Ou então, o tiro é simplesmente errado porque não era para aquela vítima. Uma confusão de identidades, um acesso de loucura de quem tinha a arma na mão, um tiro meramente acidental, o que seja. Apanhando a meio da existência a vítima que não devia ter sido arrolada para aquela condição. O tiro é errado (outra hipótese), apenas porque as armas são uma das maiores provas de estultícia. Um arremedo de poder, exercido no exato momento em que a arma é exibida e amedronta quem está no ponto de mira, levando-o a fazer o que de outro modo não faria, sob a coação do estipêndio de uma bala mortífera trespassar o seu corpo. Um tiro é sempre errado (dirão os puristas, em benefício de causa:  a menos que seja em autodefesa), pois supõe que uma disputa se pode resolver sem a intermediação da razão, apenas com recurso à força bruta de uma bala.
O tiro é errado. Sempre errado. Até quando erra o alvo, no provavelmente não intencional desvio de rota que previne males maiores. Em assomo de ingenuidade, um desejo lírico para memória futura: oxalá todas as armas fossem confiscadas durante a noite, quando toda a gente está a dormir e ninguém dá conta de serem seus coldres assaltados. Oxalá se deixasse de falar de tiros errados – pois todos os tiros são, de uma maneira ou de outra, um erro. Oxalá se falasse, apenas, dos tiros desembainhados por Cupido. 

12.6.18

Correr a favor do tempo


Nils Frahm, “Says”, in https://www.youtube.com/watch?v=dIwwjy4slI8
Oxalá o tempo não fosse adstringente, uma maçada que irrompe contra a vontade consagrada. Oxalá o tempo não fosse uma escassez que se devolve em forma de contratempo. Dizemos, em puro desperdício de forças, que somos matéria volúvel à mercê das veleidades do tempo despótico, e não percebemos que pensamentos destes apenas conseguem tornar o tempo um lugar ainda mais exíguo. Não devemos ser nós a fazer do tempo um santuário de ambiguidade.
Impõe-se novo critério. Os relógios deixarão de ser uma espada a adejar constantemente sobre o pulso tomado pelo terrível medo do tardio. A medida será outra: nunca é tarde para nada, nem nunca é tempo sequer para sermos sitiados pelo apressar (que deixa de ser um imperativo). Deixaremos de correr contra o tempo. É uma empreitada frívola. À partida, condenada ao malogro. O tempo não é uma vulgar quimera a quem se pode torcer o braço. Não tem serventia correr contra o tempo, pois nem toda a força imaginável o consegue deter. A ilusão que se desembainhe – a de curvar o tempo à soberania da nossa vontade – assegura a extemporânea demissão do ser. 
Passaremos a correr a favor do tempo. Teremos o tempo como aliado. Sem a permanente conceção da sua efemeridade. Sem sermos tomados pela totalitária opressão que interroga a brevidade do tempo. Passaremos a ser o braço que ajuda a mover o tempo. No milagroso recobro onde se resguarda a serenidade da alma, protegida contra as adversidades que são a adulteração de tudo quando se legitima a ideia que somos fautores de um tempo diferente do tempo. Talvez se corrermos a favor do tempo conseguimos o sortilégio de o ter do nosso lado. A noção de correr contra o tempo é uma empáfia, que se contrapõe ao eterno relógio de onde somos apenas um ingrediente sem visibilidade. Essa será a nossa grandeza: temos as camadas do tempo nas nossas mãos, sabemos de que tecido são compostas, e só nós é que instruímos o tempo assim concebido.
Se soubermos correr a favor do tempo, não somos consumidos pela vertigem de que somos perceptores ao darmos conta da sua fluidez. Nos diferentes mecanismos do pensamento, descobrimos os lugares onde se caucionam os estamentos paralelos do tempo – o tempo em sua pluralidade. Ao corrermos a favor do tempo, descobrimos, finalmente, que o tempo é uma palavra plural. E, enfim, envelhecer deixará de ser uma opressão.

11.6.18

Quem quer ser demónio?


Nick Cave and the Bad Seeds, “Stagger Lee”, in https://www.youtube.com/watch?v=Nbe5RERDh4k
Mote: Fora a matemática, dois negativos não dão um positivo.
As cominações todas contra os demónios que se ajuramentam demónios nas veias ferventes das pessoas. Das pessoas ditas bondosas. Os barítonos dos sentidos não deviam admitir a entorse das coisas, e os demónios só teriam lugar como entidades ilegítimas. Não é o caso. Transitam nos mesmos lugares. Ora disfarçados, ora como se fossem agentes secretos a soldo de interesses inconfessáveis, com o fito de sussurrarem o mal aos ouvidos de pessoas imparciais, conjurando-as, alistando-as entre o escol de que fazem parte. 
Os demónios não têm sonos fáceis. Debatem-se com as consciências, o lado oculto que não conseguem vencer. Os demónios chamam demónio à consciência que intimida a maldade de que são fautores. Alguns demónios, procurando combater os interiores demónios, resistem ao sono. Intuem que uma íntima fração do chamamento para o oposto do que congeminam vegeta nos corredores insondáveis da consciência imprevista a que convencionaram chamar demónios. Pressentem que a insónia enfraquece os demónios que são a sua antítese: um demónio não tolera concorrência interior. Ainda está para saber se o exercício tem provimento. Numa espiral sem fim, o demónio que consome um demónio tem de prestar contas ao seu avesso. E assim sucessivamente. Até já ser possível jogar com as conotações, nem fazê-las corresponder a um dos múltiplos lados em que se representa a identidade. Em sucessivas camadas, numa luta que se terça com armas entrelaçadas, os demónios desfazem-se em palimpsestos de si mesmos.
Neste vale infecundo, ninguém sabe quem é quem. Podemos ter juízes que são sacripantas, meliantes transfigurados em sacerdotes, profetas de nada convocando-se para o estuário de rios sem foz, ascetas maravilhados com a fauna devastada, piras onde incensam pecados fora de prazo, pescadores que nunca viram o mar, orientadores de almas que não sabem gramática. Ninguém sabe se um demónio é demónio, ou se é um farsante, provocador irremediável, disfarçado de demónio só para ser olhado como detonador de terramotos que fazem tremer as ameias do estabelecido. 
No fervor deste caos, não há identidades consagradas. Não se sabe quem são os demónios. No improdutivo enigma, um demónio pode conseguir matar um demónio e, contra a sua vontade, purificar a alma que não busca redenção. Antes seja um lugar sem estribeiras, os olhares vertidos em aquários de água contaminada, pois as ambições não se medem em alqueires conhecidos. Nem um demónio, por matar um demónio, se contenta com a redenção que não pediu.

8.6.18

Dissidente


Interpol, “Obstacle 1”, in https://www.youtube.com/watch?v=OC5zHACynR4
Nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”, Grouxo Marx
Para provar que nem sempre são as antinomias que movem montanhas e nem sempre as ideias se congeminam na antítese daquelas que constituem abundante motivo de desagrado e de desidentificação: serão mais as vezes em que a dissidência tem costura nas bainhas dos que seriam meus cais pela ordem natural das coisas (e o que é a “ordem natural das coisas?”), do que em relação aos que estão nos antípodas. Só assim faz sentido a dissidência. Não se pode ser dissidente de algo a que nunca se pertenceu.
Não adianta ser encostado à parede e assegurarem a minha pertença a qualquer movimento ou ideia, ou o seguimento de um determinado guru. Acontece frequentemente, depois de ter construído um par de frases que são o protesto contra uma posição, ou uma ideia, ou uma pessoa que não são património em que me reveja. Ato contínuo, naquele raciocínio binário que, de tão enviesadas vistas, diz muito sobre a estultícia de quem o pondera, sou colado ao outro lado da barricada. Como se apenas houvesse dois lados da barricada; admita-se que seja o critério mais confortável para a multidão, tudo arregimentar numa coisa e no seu contrário, como se não houvesse um vasto território intermédio com a capacidade para albergar tanta gente que não será território sobrelotado. Este vasto deserto, o território intermédio, é um sinal da confrangedora letargia a que estamos atados.
Pior acontece quando, no rescaldo de uma posição antagónica que se afirma, outros, que perfilham essa posição (de recusa), consideram que pertenço ao seu escol. E eu, que nunca afirmei tal pertença, nem encomendei tamanha proclamação, escuso a colagem cirúrgica e oportunista que tais personagens ensaiam. O pior é quando me colam o rótulo de dissidente logo após ter recusado a pertença a que fui imediatamente colado apenas por ter negado provimento a uma determinada posição, ideia, ou argumento que se encontram nos antípodas dos meus. Não custa desmentir a pertença que alguém, à revelia da minha vontade, decretou; mais oneroso é ter de desmentir a dissidência, depois de colocar os pontos nos “i” e protestar a não pertença que equivocamente me foi pespegada por outros, contra a minha vontade. Custa desmentir a dissidência porque ela não chega a existir: a dissidência só faz sentido, quando antes dela houve uma pertença.
Um dia destes, alguém disse que eu era um lobo solitário, sempre evitando pertenças ou identidades que possam subtrair o império da vontade. Não digam isso muitas vezes, ou acabo por dissidir da minha própria dissidência.

7.6.18

A luva de deus


God Is an Astronaut, “This Mortal Coil”, in https://www.youtube.com/watch?v=2KyoT3XClwo
Podia ser sobre a lava de deus – se a atenção se deitasse nas recentes erupções vulcânicas e arrepiasse caminho pelas especulativas sinuosidades da turbulenta relação entre a natureza e deus.
(Nomeadamente sobre a insurgência da natureza que pode dar azo a duas possíveis teorias: uma, a de que deus não existe, pois não consegue ter mão na natureza quando ela se insubordina e semeia destruição, caos e morte; a outra, que interroga se deus – a existir – exerce um domínio avassalador sobre quase tudo, escapando-se de sua omnisciência os fenómenos naturais que imbricam em cataclismo devastadores – o que também seria suscetível de desaguar na inferência da inexistência de deus.)
Mão à palmatória e, quem sabe se por intercessão divina (contradição de termos), um interregno no ateísmo estrutural. Abdicando das (não) crenças – ou a leve impressão de que deus não existe, à falta de prova contundente da sua existência – seja feita tábua-rasa dos alicerces e admita-se que há deus. 
(E não se contempla a hipótese de deus ser um astronauta, em corroboração do que um grupo de músicos terá descoberto, ao ponto de chamar à sua banda “deus é um astronauta”. Não seria desprovida de significado, a expressão – e talvez fosse a chave para um segredo tumular que até hoje não foi descoberto: quem é deus e onde habita? Partindo-se do pressuposto que “deus está em todo o lugar”, e que nos observa de um púlpito, compreende-se que deus seja um astronauta a adejar sobre o planeta, desde a estratosfera. Só assim conseguirá a divina entidade executar um meticuloso plano de vigilância de todos os mortais: precisa de nos tutelar com o distanciamento que é caucionado pela sua presença na estratosfera. Se fosse presença terrena, não só seria uma presença mundana – não se distinguindo dos demais, nem sobre eles exercendo a tutela de que se considera credor –, como seria inviável tomar conta de cada alma humana, por impossibilidade de perspetiva.)
Corporizada a mão à palmatória, segue a interrogação centrípeta: o que esconde a luva de deus? Dirão, em réplica (talvez abespinhada): deus não enverga luvas, as suas mãos puras ungem tudo com a sua bondade infinita. Discordo. Deus terá de usar luvas. Luvas que ocultem a putativa bondade sem limites de que dizem ser lídimo intérprete. Caso contrário – e volto ao ponto de partida – como se explicam as catástrofes da natureza que espalham a morte e a destruição e o caos, a não ser que deus esteja, talvez por fadiga, a proteger as mãos gastas com umas luvas quaisquer?
Sobram duas (modestas) hipóteses de dedução. Primeira hipótese: quando deus enverga luvas, perde capacidades. Ou, segunda hipótese: deus não é a perfeição acabada, ou não precisaria de usar luvas para não desgastar (mais ainda) as frágeis mãos que dão ordenança à sua obra. 
(Ou, terceira hipótese: à consideração do leitor.)

6.6.18

Reincidência


Idles, “Well Done”, in https://www.youtube.com/watch?v=7Oxqf_15k0w
Era uma dúvida que o assaltava (nos tempos livres, quando o tempo se punha a jeito para pensamentos avulsos e sem importância): por que acabam os prisioneiros, assim que recuperam a liberdade, a delinquir e, ato contínuo, a regressar à cadeia?
Dizem que a reincidência é estultícia. Sobretudo quando a reincidência acontece em domínios que não garantem coisas boas ao reincidente. Depressa parecem esquecer-se do período sombrio que, em sua reiteração, volta a ser tingido pelas mesmas sombras. Poderá dar-se o caso de os reincidentes fazerem uma avaliação diferente e não terem consigo os parâmetros que permitem discernir o céu plúmbeo que se congemina na reincidência? Poderá acontecer que a reincidência transporte mercês escondidas que suplantam as dores inerentes? Poderão os reincidentes preferir continuar na corda bamba, com o risco sempre a sussurrar no pescoço, apostando na mesma prática sem que ela seja detetada por outros – caso em que a reincidência é apenas uma questão do foro interno, não caindo no vasilhame da punição? 
Poderão os reincidentes decair na escala da razão, não conseguindo avaliar as consequências dos seus atos? Esta é a hipótese que levanta mais embaraço. A reincidência implica o conhecimento da escala de custos que advém da prática de atos que não seguem os cânones do tolerável. Implica conhecimento, por haver cadastro anterior de tais atos e da sua punição. Se reincidir traz ao conhecimento os maus efeitos da ação que são avivados pela recuperação do passado, como é possível a alguém decair na escala da razão e reincidir, com a elevada probabilidade de ser capturado na curta malha dos punidores? Será oblívio?  Indiferença pelas dores associadas à  reincidência (possivelmente, quem assim se comporta não qualifica como dolorosa a privação da liberdade que antecedeu o foco da reincidência)?
A reincidência é um risco ténue que se desembainha do leque de possibilidades colocadas no horizonte do reincidente. Pode também dar-se o caso de o reincidente, que se move com falta de destreza na arte de delinquir, tenha ricos conhecimentos no meio. E que a tentação de reincidir se justifique pelo conhecimento que ele tem de outros como ele, com mais aptidões para a transgressão, que conseguem passar entre os pingos da chuva, como se não tivessem cometidos os atos que, no reincidente, dão origem à repetição da reclusão. Talvez esta seja esta, afinal, a hipótese que mais embaraço levanta.

5.6.18

Sob disfarce


Spiritualized, “Come Together”, in https://www.youtube.com/watch?v=j9G7n8DBpO8
É uma destas erupções vulcânicas, tão devastadora que não fica nada para contar para memória futura. Sirvam-se mnemónicas com o ornamento da matemática, só para ver se sobra um vestígio que sirva de memória futura. Admita-se que as vicissitudes próximas tendem a liquidar o compacto que é o tempo pretérito. 
Admita-se; mas não explica toda a bílis destilada por ocasião do verbete anelado por uma famosa escritora, que desacredita tudo o que pertença, de acordo com as convenções, ao lado belo que a existência tem para oferecer. Há um certo revisionismo que adeja na demissão das ventos favoráveis. Nem que sejam dilacerantes as dores causadas por um desapontamento recente, nem que ardam os pés de tanto chão crestado terem percorrido, passar a esponja pelo calendário mais recuado não apazigua as dores, nem é remédio que se ofereça para aplacar estes males que desassossegam. Dir-se-ia: desse modo, tem-se o tempo refém de um disfarce que é um ardil desonesto para aprisionar o passado no património do esquecimento. Por mais que se queira, e por vivaz que seja a bílis purulenta, não há forma de apagar o passado da ardósia onde se enquistou. 
Critério diferente é o do esquecimento. Pode ser um esquecimento seletivo, com o separar metódico que a mente consegue alcançar, quando assim quer. Ou pode ser um esquecimento tutelado pela distância dos acontecimentos, ou pela sua irrelevância. Nada disto quadra com o disfarce do tempo vivido sob os auspícios de uma desilusão pessoal. A escritora pode estar sob os efeitos da proteção das condoídas recordações que ainda estão frescas, dando-lhe forma de casulo, preceito exigível para prevenir possíveis contratempos como os que a colocaram de mal com o mundo, em possível véspera da convalescença que (admito, do posto de observador, e ungido por uma certa ingenuidade) será por ela própria desejada. Mas não pode colocar-se sob disfarce do tempo, como se nada dele se aproveitasse. Não acredito que a melancolia seja um estado estrutural, reiterado no fio condutor do tempo. 
A escritora afocinha, com a força toda, dentro de um cálice de onde bebe cicuta. Da cicuta que não a mata instantaneamente, como se dos seus maus fígados uma qualquer substância fosse administrada contra os venenos impropérios. A prazo, não conseguirá evitar os efeitos funestos da cicuta. Da cicuta que ela teima em preparar e a dar-se a si própria.
Dirão: as deceções combatem-se com uma fortaleza encorpada a tomar conta do corpo inteiro. Mas não deve ser o húmus que mata as sementeiras onde se avistam as centelhas belas, herdadas de outrora. Essas são inapagáveis. Até pelas contrariedades que possam tudo pôr em causa.

4.6.18

Ícaro


Sofa Surfers, “White Noise”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z1NKyn4UvcM
Seria um grão de areia voando ao deus-dará, à vontade dos ventos dominantes, a vontade imersa na vontade dos ventos. Um pássaro em companhia de um outro, porventura na sazonal migração. Um avião, com a autoridade quantitativa de seu peso-pesado. O comandante de um balão movido a ar quente. Um homem possuído por um sonho, e por dentro do sonho quimericamente dotado de asas, o único homem da espécie capaz de voar – e o predicado contaminado à sua companhia. Não seria pelo insólito. Não seria – muito menos – para tirar partido da vantagem (que desvantagem, célere, seria: os poderes não pactuam com aberrações, castram-nas). 
Queria ser como Ícaro. Sobrevoar as latitudes que apetecesse. Descobrir lugares escondidos ao olhar. Desenhar as linhas de um mapa, sem ajuda de um sextante, apenas com a matéria-prima eivada de mãos e do olhar insaciável. Traria presentes das paragens distantes. Aprenderia a soletrar as palavras ao acaso até nos idiomas herméticos. Continuaria o voo. Ora à distância de um olhar de pássaro, para emoldurar uma fotografia de conjunto. Ora um voo rasante, trazendo ao peito os detalhes que fazem a diferença numa paisagem, que a tornam singular. 
Ícaro, para ser imperador das paisagens que aprouvesse. Escolhidas ao acaso. Ou escolhidas com um critério escolhido no instante lisérgico. Deitaria as asas invisíveis sobre o vento. Deixar-me-ia levar por ele, confiando-lhe a minha vontade, o vento como se fosse um GPS diletante. Seria ave sem visibilidade, um oculto vulto sulcando os ares em sedenta busca da paisagem que se seguia, ora ao acaso, ora roteiro criterioso. Ícaro, num voo demorado, sem cansaço a adejar sobre as pálpebras ávidas de mundos novos. Talvez conseguisse fazer a cartografia do mundo inteiro, se as asas não decaíssem no cansaço, se eu, transfigurado Ícaro, fizesse de conta que não ouvia os chamamentos de um dédalo inquisitorial, os chamamentos em forma de instrução compulsiva ordenando o regresso. 
As asas imorredoiras seriam o juízo circunstancial da vontade. Enquanto se suplantassem ao sono, enquanto não fossem atraiçoadas pelo ardil da hibernação, seriam motor e vela e bússola, ao mesmo tempo. E eu, em transfiguração de Ícaro, por um momento (tornado perene), imperador dos céus onde as asas se desenhavam. Na tua companhia.