4.6.18

Ícaro


Sofa Surfers, “White Noise”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z1NKyn4UvcM
Seria um grão de areia voando ao deus-dará, à vontade dos ventos dominantes, a vontade imersa na vontade dos ventos. Um pássaro em companhia de um outro, porventura na sazonal migração. Um avião, com a autoridade quantitativa de seu peso-pesado. O comandante de um balão movido a ar quente. Um homem possuído por um sonho, e por dentro do sonho quimericamente dotado de asas, o único homem da espécie capaz de voar – e o predicado contaminado à sua companhia. Não seria pelo insólito. Não seria – muito menos – para tirar partido da vantagem (que desvantagem, célere, seria: os poderes não pactuam com aberrações, castram-nas). 
Queria ser como Ícaro. Sobrevoar as latitudes que apetecesse. Descobrir lugares escondidos ao olhar. Desenhar as linhas de um mapa, sem ajuda de um sextante, apenas com a matéria-prima eivada de mãos e do olhar insaciável. Traria presentes das paragens distantes. Aprenderia a soletrar as palavras ao acaso até nos idiomas herméticos. Continuaria o voo. Ora à distância de um olhar de pássaro, para emoldurar uma fotografia de conjunto. Ora um voo rasante, trazendo ao peito os detalhes que fazem a diferença numa paisagem, que a tornam singular. 
Ícaro, para ser imperador das paisagens que aprouvesse. Escolhidas ao acaso. Ou escolhidas com um critério escolhido no instante lisérgico. Deitaria as asas invisíveis sobre o vento. Deixar-me-ia levar por ele, confiando-lhe a minha vontade, o vento como se fosse um GPS diletante. Seria ave sem visibilidade, um oculto vulto sulcando os ares em sedenta busca da paisagem que se seguia, ora ao acaso, ora roteiro criterioso. Ícaro, num voo demorado, sem cansaço a adejar sobre as pálpebras ávidas de mundos novos. Talvez conseguisse fazer a cartografia do mundo inteiro, se as asas não decaíssem no cansaço, se eu, transfigurado Ícaro, fizesse de conta que não ouvia os chamamentos de um dédalo inquisitorial, os chamamentos em forma de instrução compulsiva ordenando o regresso. 
As asas imorredoiras seriam o juízo circunstancial da vontade. Enquanto se suplantassem ao sono, enquanto não fossem atraiçoadas pelo ardil da hibernação, seriam motor e vela e bússola, ao mesmo tempo. E eu, em transfiguração de Ícaro, por um momento (tornado perene), imperador dos céus onde as asas se desenhavam. Na tua companhia.

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