25.9.18

À Argentina que há em mim (short stories #36)


Massive Attack, “Be Thankful for What You Got”, in https://www.youtube.com/watch?v=f9kAo0KgEu8
          Dado como perdido, um paradeiro sem vestígio: prouvera um lugar ermo, inabitável, onde fosse peregrinação imperativa a demanda da alma sem âncora. Pelo menos, era assim que tinha a alma, como se perdida estivesse no meio dos escombros. Uma imagem emergia: um sobrevivente, andrajoso e campo de cicatrizes ainda frescas, a escavar entre os escombros, antolhando um refúgio entre o entulho amontoado. Talvez não fosse a metáfora certa. Se fosse ao fundo da questão, não via onde estavam os sismos que ameaçavam as estacas da vida. Não encontrava os sobressaltos que fossem pergaminho do paradeiro sem vestígio. Ouvia uma voz sem rosto murmurar constantemente num canto da consciência: “é da natureza humana: as pessoas não dão valor aos bens que têm e não fazem nada por os conservar.” Não atribuía importância a essas palavras – mesmo que admitisse que elas eram sussurradas por um alter-ego da consciência. E, no entanto, havia um mar imenso entre este lugar e o lugar que pedia exílio, ao menos um temporário exílio, na companhia apenas da mulher amada. Era como se a fuga equivalesse a um refúgio necessário. Uma demanda segura para descobrir um paradeiro que julgava esbatido. Um pouco como se houvesse, num lugar diametral, a fonte nova para matar uma sede, a sede com o tributo da reinvenção – ou apenas um sintoma mal diagnosticado de fadiga, de repúdio do lugar que era tributário da identidade; como se fosse preciso rever as coordenadas da identidade e saber onde se encontram as costuras da pertença. Não era mais do que isto. Não era uma fuga de pessoas. Ou era: não das pessoas queridas, mas das pessoas que estão no púlpito do reconhecimento e se distinguem pelos atos e palavras que em mim são abjetos. Na recusa deste modo de vida mesquinho, atávico, patologicamente conservador, religiosamente castrador, onde tendem a sobrepor umas consciências (autoproclamadas tutoras) a outras (remetidas à condição de acríticas seguidoras). É de uma Argentina profunda, distante, antípoda, nas lonjuras da quase inabitável Patagónia, que preciso de refúgio. Sem sair do lugar. Pois essa Argentina encontro-a nas profundezas da alma, libertada dos constrangimentos da informação contaminada, purificada por um amor singular. 

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