31.10.18

Ruibarbo (short stories #58)


Thom York, “Suspirium” (live BBC Radio 6 Music), in https://www.youtube.com/watch?v=ISkEKLYRxi0
Notícias de última hora: segue-se uma espera, tingida pela angústia – quando se anunciam “notícias de última hora”, costuma não sair esboço de coisa repetível. Talvez sejam as palavras que não chegam a ecoar nos ouvidos. As palavras retidas nas muralhas do pensamento. Elas, e não as notícias de última hora, açambarcando o sobressalto que faz acelerar o coração. E, todavia, alguém liberta o rumor que a meia-noite deixará de ser a fasquia que o novo dia tem de dobrar. Outros ciciam, e fazem circular de boca em boca, a ideia de castrar as ideias tresmalhadas, ou que assim sejam consideradas por um júri de eminentes catedráticos (desse modo entronizados no lugar que sempre foi seu sonho). Sobram, pelo caminho, os estilhaços do modernismo, destronados pela dúvida existencial do que será o tempo moderno e de como se aparta do seu antecessor e do pós-modernismo que se há de seguir. Numa esplanada, alguém ouve dizer que ouviu dizer que outrem segredou mal disfarçado segredo ao ouvido do homem da bomba de gasolina, segundo o qual corre à boca pequena, de acordo com fontes muito bem informadas, que o prémio Nobel da física deste ano não ver ser atribuído. E as pessoas por quem o rumor correu acabam-se interrogando (em se achando leigas na matéria) sobre o interesse da notícia. Num jornal quase clandestino vem a apologia do apocalipse, com elaborado exercício de cabalística que adivinha, com precisão matemática, a hora, o minuto e o segundo do decesso do mundo. Podem ser as palavras que não ecoam aos ouvidos, surdamente vociferadas no teatro mental onde o pensamento se perde. Ou pode ser, apenas, a vontade súbita de preparar uma tarte de ruibarbo. (Para os que não sabem, o ruibarbo é um vegetal de difícil demanda no mercado nacional.) O que afinal importa são os acessos de loucura que desenham a vontade, no bordão clandestino que não se oferece ao olhar público, por imperativo de pudor. Os atalhos que transbordam do eu conhecido. Neste recolhimento, saboreio a tarte de ruibarbo ainda quente, polvilhada pelo creme inglês acabado de fazer. Não contem comigo para as empreitadas solenes. Contento-me com a incorrigível grandeza das coisas simples, das que são propedêutica lição do império da vontade.

30.10.18

Palmatória (short stories #57)


Nine Inch Nails, “Everyday Is Exactly the Same”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZXN1PB_M3uo
          Dar a mão: a humildade metódica, criteriosa, no arrumo das certezas na putrefata sepultura das coisas datadas. Não há púlpito para a razão. Continua a ser melhor sinal o das interrogações que não deixam de medrar no intenso céu onde mentes desassombradas continuam a aprender, crescendo com a aprendizagem. Não é cometimento fácil, dar a mão à palmatória. É preciso saber que não se sabe, empreitada pesada num tempo em que muitos são sabichões com aspirações a eruditos e os asnos parecem ter sido eclipsados. Porque a erudição confere estatuto e muita gente esgrime espaço vital pela obtenção de estatuto; e porque os saberes estão pelo preço da democracia, acessíveis ao comum dos mortais. A soberba cresce na exata proporção dos instrumentos disponíveis que dão guarida ao conhecimento. Na rivalidade de saberes, pesa a necessidade dos saberes de um se arquearem sobre os saberes dos outros. Não interessa que seja o somatório dos saberes, e a disposição de partir em demanda deles, que conte como sinal de maturidade. Uma verdade costuma ser categórica, com alicerces de ferro e, todavia, é frágil como papel à espera da chuva. Quando esta verdade é deposta, o detentor não se considera órfão; interiormente, considera-se despojado de bússola, mas não o admite, não o pode admitir. A verdade desfeita equivale a derrota. O que só acontece na medida da confiança excessiva depositada nas verdades, quando se devia dar à alavanca, na bolsa de valores dos valores, às interrogações – à possibilidade, sempre em aberto, de aprendermos com os conhecimentos de que outros são portadores. Dar a mão à palmatória é uma expressão idiomática que desapareceu de circulação (com notáveis exceções, dignas de um ato de coragem que não é valorizado). Se se olhar em volta, é quase só rostos emproados, gente dotada de uma inteligência acima da média – tão acima da média que a própria média perdeu sentido, como banais são os peritos em tudo-e-mais-alguma-coisa. Enquanto predominarem os “tudólogos” (peritos da ciência da “tudologia”, ou os que de tudo sabem), estaremos sitiados pelos apedeutas maiores: aqueles que, em o sendo, se reconhecem como garbosos porta-vozes da sabedoria.

29.10.18

Moeda ao ar (short stories #56)


Viagra Boys, “Research Chemicals”, in https://www.youtube.com/watch?v=U7gbFMWZWlo
          Não saíamos deste empate. Era um colóquio perfeito da teimosia – e de como uma teimosia podia ser persistente, e a teimosia de um sobrepor-se à teimosia do outro. Quem nos visse, diria sermos loucos, dando esquadria à maneira de ver o problema em equação, não admitindo o vencimento da posição oposta. Era da identidade intrínseca: o sangue que corre nas veias era indomável, como se as veias fossem o leito onde, irrefreável, o caudal selvagem corria, corroendo as nem assim perturbáveis paredes das veias. Todo o pensamento era combustão e combustível pronto a ser atirado às fogueiras que precisavam de ser ateadas para serem fogueiras. Deste impasse obstinado, éramos os incendiários das fogueiras em espera. E depois atirávamo-nos que nem leões esfaimados ao lauto manjar onde eram terçadas as divergências. Quem nos visse, diria que inventávamos as nossas próprias divergências. E que, nesse pesar, fermentávamos o espírito de contradição. Às vezes, parecia que estávamos apartados um do outro, com o sangue em ebulição a ser serventuário de celeumas acesas. A mais inócua conversa, era certo, desaguava numa montanha de discordâncias que ia subindo à medida da escalada dos temas que vinham atrelados uns aos outros (ou sem qualquer elo entre eles). Diziam que éramos como o cão e o gato. Pude confirmar, mais tarde, que os cães e os gatos convivem em paz. Mas continuávamos a divergir, na razão intrínseca da divergência (quase nunca estávamos de acordo sobre o que dera origem à altercação), na grelha de análise que dava origem à discussão, na verificação das consequências e (quando era caso disso) na imputação de responsabilidades. Era como se falássemos diferentes idiomas unidos pelo mesmo húmus gramatical. Tu dizias que eras vítima da afirmação da minha identidade, como se o desprendimento da adolescência tivesse o efeito de confrontar os esteios adquiridos. Eu dizia que precisava que reconhecesses o meu pensamento autónomo – talvez, sem o admitir, a libertação das peias da adolescência, como se fosses o culpado das grilhetas sobrantes. A certa altura, atirámos a moeda ao ar. Desempatámos a contenda, sem designação do vencedor. Ainda bem. Anuí no crescimento. Reconheceste-me como tal e deixei de te hostilizar. E enterrámos o machado ensanguentado dos pleitos que foram nosso lastro. Julgo que estás em paz com isso, como estou em paz contigo.

26.10.18

Relapso


Royal Trux, “Liar”, in https://www.youtube.com/watch?v=9BneR3bjueI
          Teimosia incorrigível. Não seria arrependimento útil dar caução aos contratempos pretéritos, os que trouxeram remendos difíceis de consertar, cicatrizes visíveis, perenes – atrozes. Parecia que o ontem, o simples ontem, era uma distante aridez, o completo esquecimento. Desconhecia que as marés obedecem a ciclos, repetitivos, e que podia acautelar-se dos irrefreáveis golpes que os fantasmas ocultos não deixavam de assestar. A reincidência era uma tolice. Um resmungão, casmurro ator que não se importava de pisar os mesmos palcos dolorosos. Era a maldição da desmemória. Não sabia do ontem, do seu paradeiro. Considerava que era refratário de si mesmo, como se houvesse um exílio por preencher nas lacunas do tempo, não ocupadas por fragmentos da memória. Era vítima da sua obstinação. Tanto fora o tempo que adjetivara, em maus modos, o seu mal emoldurado passado; tantas tinham sido as vezes que reclamara o império do presente, que a maldição agora se pagava com um imenso espaço branco e vago que representava a memória dissolvida. Agora percebia os danos causados. Não se lembrava do que eram as gratas memórias (também as tinha, de certeza; só que delas não tinha lembrança). E como também não contemplava os arrependimentos e os maus preparos que foram combustível dos sobressaltos e de outras consumições maiores, não tinha ideia dos descaminhos de outrora que não devia reiterar. Aliás, não sabia quando essa repetições aconteciam. Não se conseguia sentir relapso. Só se fosse possível abstrair-se dos limites do eu, e observar-se a si mesmo desde o exterior, conseguiria ajuizar os tumultos existidos e reparar, a tempo, os equívocos aprazados. Do sal atirado para as feridas abertas não tinha mapa visível. As dores, só as sentia com a demora de um tempo; mas não sabia qual era a gramática desse tempo. O pior, é que a memória tão efémera não acautelava os juízos sobre os desacertos de antigamente. Quando eram repetidos, não chegavam a pertencer ao rol das repetições. Nunca chegava a ser reincidente.

25.10.18

Torpedo (short stories #54)


Connan Mockasin, “Charlotte’s Thong”, in https://www.youtube.com/watch?v=kCU_FG7j-f4
          A antinomia contida nas palavras: a sua riqueza é decifrar o sentido oculto, farejar as entrelinhas, conseguir o holístico exercício que é ter o contexto todo numa representação mental que se estende diante dos olhos. Torpedo, em seu sentido literal, remete para linguagem bélica. É arma de arremesso entre os rivais de um conflito (não interessa saber se mais ou menos aceso). Nesse sentido, já encerra alguma polissemia (porque tanto serve para um conflito espúrio, como para um conflito denso). A polissemia acentua-se quando admitimos a hipótese de as palavras terem a si associadas uma linguagem metafórica que as enriquece, que se desprende da estreiteza de corredores que é a sua literalidade. Um torpedo pode ser uma arma de amor. Pode ser uma arma de entendimento, quando alguém se oferece ao litígio (torpedeando o litígio). Um torpedo pode torpedear torpedos que ameaçam a maldade. Da mesma forma que se ateiam fogos para apagar incêndios que surgem em contramão. Ou o torpedo pode selar um amor em ebulição, como um remédio que desagua no desalfandegar dos prazeres ora reprimidos, ora constituídos matéria criminal ao juízo dos notários da moralidade, ora desconhecidos. O torpedo não tem sempre uma conotação malévola, como acontece quando é usado como material de um belicismo qualquer (não necessariamente tangente às guerras tradicionais, que pode haver belicismo sem agressões físicas ou a integridade da vida posta sob escolta dos caçadores). Há torpedos necessários: os que devastam um antagonismo, selando o corolário do conflito. São as medidas excessivas que servem de instância última. Às vezes, é preciso deitar tudo à destruição, servindo o torpedo para terraplanar o chão minado pelas desavenças. O que virá depois do torpedo não será pior do que o chão por ele devastado. Ou o torpedo, usado com a parcimónia que se considere adequada, celebra o amor – ou apenas o desejo que se deifica na carnalidade dos promíscuos. Não são consentâneos (dirão), os torpedos, com as religiões. (A menos que eles sejam instrumentais à sua expansão, como ensina a História.) Estes, que são tempos da propagação do hedonismo, para desprazer das igrejas várias, são o palco ideal para o municiamento de torpedos de variada espécie. Todos em contravenção do seu uso como material belicoso.

24.10.18

O dia em que sepultaram todos os ismos – e não foi boa notícia (short stories #53)


Gengahr, “Carrion”, in https://www.youtube.com/watch?v=qFxhHFD2LBE
          De uma assentada, e sem pré-aviso, a alvorada foi tida no achamento de que todos os ismos tinham terminado. Não se sabia quem o decretou. Ao início, quase todos exultaram. Até os que viviam agarrados aos seus particulares ismos: estavam cansados dos pleitos, da refrangência com pespontos hostis, da pulsão (de que ninguém sabia localizar a origem) de sobrepor as ideias próprias às que com elas se digladiavam. Os outros, os que não perfumavam a existência com tabus ditados por ismos rígidos, segredavam o vencimento de uma causa. As suas forças estavam exangues de tantas confrontação pueril e intelectualmente bélica. Ou, depois de as observarem exangues, passavam pelos tabuleiros das ideias com desinteresse, abstraídos das refregas, considerando-se propositadamente órfãos de ismos. O torpor não durou muito tempo. Ao início, ninguém desconfiou da paternidade da medida. Mas a extinção dos ismos era uma decisão totalitária. Primeiro, ninguém foi sobre ela consultado. Segundo, extinguir todos os ismos daria lugar a um único ismo, talvez por enquanto não revelado – e mesmo que um ismo ostensivo não fosse proclamado pelo entretanto revelado autor da ideia, a sepultura de todos os ismos seria o novo ismo em voga (ainda que sem formulação aberta, para não dar nas vistas como ismo; e para não entrar em contradição interna com o decidido). As pessoas amotinaram-se. Saíram à rua. Empunhavam cartazes que mostravam a sua doutrinação, os ismos que seguiam. As ruas encheram-se. Não havia memória de manifestações tão multitudinárias. Por aqueles dias, e enquanto o rosto na sombra não restaurava os ismos todos, as pessoas não saíram das ruas. Queriam ver-lhes reconhecido o direito de pensarem por si mesmas, sem guiões ou artificiais cordões sanitários estreitando os corredores do pensamento. Ao quarto dia, um temerário personagem conhecido pela usura da senatorial condição confessou a paternidade da decisão. Argumentou que os ismos estavam a ser usados com excesso de zelo, com impertinente dogmatismo. Uma voz tonitruante disparou, em antecipação ao protesto da multidão: “dogmático é extinguir os ismos!”, ao que se seguiu o clamor contra o senador: “ditador, ditador, ditador!” No dia seguinte, repristinada a situação, prosperavam as discussões (e até as dogmáticas) nos cafés, nos jardins, nas escolas e nas universidades, nas fábricas, nos serviços públicos, nas casas, por todo o lado. Ao contrário do que seria estimativa dos economistas, nunca houve dia tão produtivo na história.

23.10.18

O nefelibata (short stories #52)


Jarvis Cocker & Kid Loco, “I Just Came to Tell You That I’m Going” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=wwT_bu9w84E
         Perguntassem-lhe o nome do dia; o lugar onde estava; a fase da lua; o nome do primeiro-ministro; quantas eram as cores do arco-íris; o idioma mais falado; ; o que fora o seu almoço; a escultura no centro da praça centrípeta; o nome do rio que atravessa a cidade; a sua idade – e ele não tinha resposta para as interrogações. Não fazia de conta que não sabia. Não sabia. Não queria saber. E dele ninguém sabia por onde inventariava o pensamento. O trato lunático era marca registada. Desde a infância. Nunca quis saber da escola, nem da aprendizagem convencionada. Só leu o que lhe apeteceu. Leu em barda. Terá lido num ano o que os seus antigos colegas de escola leram na vida inteira. Ao contrário do que seria de supor, não se orgulhava da enciclopédica sabedoria. Houve uma vez que um perito das dores da alma o desenganou: a sabedoria em resmas não tinha préstimo. Ele não se importava. Com o que menos se importava era o que dele outros diziam. As suas distrações eram um monumento local. Os sapatos não vinham aos pares; uma peúga não combinava com a outra (ou um pé estava calçado e o outro não); já saíra à rua com metade do rosto escanhoado (e não se tratava de adesão a uma moda de vanguarda); já fora visto com roupa do avesso – e, invariavelmente, com andrajos, velhos e sujos. Ninguém sabia com o que se importava. Se aos outros fosse dar a saber as suas leituras, podiam ter uma imagem clara dos seus interesses. Mas ele escondia. Escondia tudo: as leituras (os livros com que se passeava tinham capas em papel de almaço, sem identificação de autor e título); escondia-se, ele próprio. Os mais ásperos diziam, sem complacência, que era sociopata. Chegou-lhe aos ouvidos. Não perdeu um minuto a desmentir. Também não acusou a receção do epíteto. O mais certo era ter sido assaltado por uma distração no momento imediatamente seguinte a ter tomado conhecimento da acusação. Imerso noutros pensamentos, já não se lembrava do acontecido. A memória tinha um escasso prazo de validade. Talvez em virtude disso, nunca se importunou com nada e com ninguém. Nem sequer com aqueles que com ele se importunavam. Não era de admirar: o seu chão era o céu acima dos corredores aéreos por onde passavam os aviões. Só tinha a certeza disto: era nefelibata. E não se incomodava.

22.10.18

Primeira pessoa (short stories #51)


Grizzly Bear, “Four Cypresses” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=UKz6Isfgadg
A primeira pessoa: perímetro privilegiado, ponto cardeal, pedra filosofal, centrípeta. A fartura modesta. A fatura da existência, o legado da consciência. Contudo, recusando o egoísmo. A centralidade deve-se, apenas, à primeira pessoa só conseguir viver dentro do seu corpo e do seu pensamento. Ilha, num certo sentido, sem se desligar da indeclinável pertença a um todo onde se aprende que o grupo se sobrepõe ao indivíduo (axioma, porém, contestável). Mas nem assim a primeira pessoa sucumbe à própria existência, à própria realidade de onde se projeta. Na primeira pessoa: não aceito o recurso estilístico de falar de si mesmo na terceira pessoa do singular. Nunca percebi a extravagância. Se alguém quer falar de si mesmo, ou através das suas palavras oferecer uma opinião a quem o ouve, por que evita a primeira pessoa se é ela que afirma aquelas ideias? Será hipocrisia, temendo o contraditório? (Sempre se poderá invocar que foi a terceira pessoa – todavia, pseudónimo da primeira, que naquela se esconde – que exortou o deprecado.) Será apenas um modismo? Um mau modismo: quem se refugia no anonimato da terceira pessoa precisa de se esconder de si mesmo, talvez inseguro do seu ser e das temerárias palavras que proclama. Trata-se de um esconderijo, em sede da terceira pessoa, apesar de o nome ser invocado; mas é-o como um estranho para a primeira pessoa que se encomenda à terceira pessoa do singular, para não ter de exibir o seu nome próprio. A certa altura, parece que um palimpsesto tomou conta da primeira pessoa, que contratara um testa-de-ferro – a terceira pessoa – para em seu amedrontado nome falar. Há a primeira pessoa: não se abjure a condição de ilha, porque todos somos ilhas, e somos as ilhas de um arquipélago que não tem fim. A primeira pessoa junta em si as muitas segundas pessoas do singular com que travou conhecimento; e até as terceiras pessoas do plural que são seu atravessamento diário. O justo equilíbrio é a parte árdua da equação. Uma aprendizagem contínua. 

19.10.18

Nova Zelândia (short stories #50)


Badmarsh and Shri, “Sajanna”, in https://www.youtube.com/watch?v=IBLF_T8zLRE
          Dantes, quando me abespinhava, deseja ir para a Nova Zelândia. Como exílio que era prémio. Um prémio de fuga de uma terra que entendia decadente. Incomodava-me a frivolidade. A incapacidade. A arrogância dos incapazes, a passarem-se por entidades messiânicas enquanto atiravam areia para os olhos dos descuidados (a maioria) e insultavam a inteligência dos demais (uma minoria, e exígua). Incomodavam-me os mitómanos militantes, como desfilavam impunemente e reivindicavam estatuto senatorial. Incomodava-me a letargia geral. A capitulação. E incomodava-me, de dentro de mim, que tudo isto me incomodasse a ponto de desejar um exílio como prémio – e nos antípodas assim convencionados, a Nova Zelândia, para ser distintamente longínquo o cordão sanitário. Incomodava-me não arrematar as energias necessárias para denunciar este comatoso estado de coisas. Era o cabaz da minha própria incapacidade. Queria fugir para a Nova Zelândia para não ser assaltado pelas deploráveis coisas que eram o fermento de um sobressalto contínuo. Talvez quisesse fugir de mim mesmo. Hoje, continuo a dizer que quero a Nova Zelândia. Dantes quase ensaiava orações que me destinassem à Nova Zelândia; hoje não peço o desterro lépido naNova Zelândia: só quero ir àNova Zelândia. Como quero conhecer outros sítios remotos (Zanzibar, Nepal, Japão, Mongólia, Argentina – de memória). Continuo a ter a mesma noção dos padecimentos desta terra. Nada mudou. O que mudou foi a importância conferida aos malsãos atributos da terra em que tenho a identidade ancorada. Não considerei a hipótese da ignorância do diagnóstico. Não consigo ter os olhos fechados. Obtive vencimento de outra e terapêutica hipótese: a desimportância de todas essas coisas que dantes arqueavam a desesperança. Agora, quando digo “quero ir à Nova Zelândia”, não é refúgio que demando, não é o escamotear do sentido diário do acontecido, não é fingir que não tenho uma identidade que tem colação com um lugar. O que mudou foi o ângulo que decanta a observação. Hoje, a Nova Zelândia é uma promessa de conhecimento, um cais a explorar, uma miragem que há de ser desfeita. Já não é um exílio a prémio. O resto, continua tudo igual. Com tendência a piorar.

18.10.18

Mais do que um merecimento (short stories #49)


Underworld & Iggy Pop, “I’ll See Big”, in https://www.youtube.com/watch?v=56hUFsml7DE
          No ponto de mira: a convulsão que trazia as veias em ebulição possivelmente era um equívoco. Na tradução das equações perfiladas sob a tutela do olhar contemplativo, teimava uma névoa que embaciava a lucidez. Era como se uma embriaguez inesperada persistisse em hipotecar o raciocínio e não houvesse maneira de escrever sobre as linhas direitas. À primeira vista, o amontoado de palavras que serviriam de testemunho era ilegível, as letras sobrepondo-se em linhas diferentes – talvez sinal da escrita durante viagem sinuosa, ou que (na pior das hipóteses) muito ficara em dívida ao juízo quando essas palavras foram ensaiadas. Mas não há torpor que se sobreponha ao império da vontade. Num momento de lisura, todos os engulhos eram suprimidos. Todas as contrariedades, relativizadas. Era como se, de repente, a tempestade que tumultuava os sentidos se desviasse do curso previsto e um céu subitamente claro fosse o fermento esperado para alvorecer os pensamentos. E tudo era posto em retrospetiva, sem a contaminação de ardilosas subjetivações que povoam o caminho com sobressaltos dispensáveis. Foi célere, o entendimento. Nítido. Tudo posto em retrospetiva, não podia terçar lamentos. Nem por mais que angariasse, em seu desfavor, episódios dolorosos, arrependimentos, decisões que, à distância do futuro, eram benzidas pelo clarão do equívoco. Apesar de tudo o que fosse vulto tingindo o pretérito, sabia que o resto era de sinal contrário: um vasto mar de gratas recordações, uma vida considerada, sem contarem todos os preceitos que pudessem entranhar a dúvida sobre o mais que poderia ser arregimentado para a tornar maior. Tomou consciência que o resto se sobrepunha a todas as lamentações que pudessem ser viciosa refração do porvir. Sabia que não tinham fertilidade as angústias sobrantes. Comezinhas, eram simples notas de rodapé que não contaminavam a monumentalidade do demais. Assim se tornou interlocutor de si mesmo com a apostilha da fortuna semeada para a plenitude dos dias em carteira. Ignorar o critério, seria um ultraje ao merecimento de que se reconhecia credor. 

17.10.18

Barriga cheia (short stories #48)


Morphine, “All Wrong”, in https://www.youtube.com/watch?v=N51Lqj9IggY
A intolerável decadência: das pessoas que fogem dos festivos momentos porque se amedrontam com a ressaca em seguida. Têm medo de estar com a barriga cheia, porque depois a vão sentir vazia, nos despojos da festividade (em que sentiram estar de barriga cheia). Não chegam a apreciar os momentos em que se considerem de barriga cheia, com o pavor do dia que vem a seguir. Aliás, não chegam a ter a impressão de estarem de barriga cheia – ou nem sequer sabem a sensação deleitosa que é alguém dizer-se de barriga cheia. Os sobressaltos conspiram contra a serenidade sem a qual são arrematados para um canto da indigência. São uns miseráveis, indignos da felicidade que lhes vem ao regaço. Prestam mais atenção às arestas montadas no rescaldo da celebração do que à celebração propriamente dita. De véspera, já fazem as contas do dia de sobra, do vazio que deles toma conta, do possivelmente longo hiato até encontrarem uma motivação que levante o pensamento para um horizonte tingido de positividade. São os cultores da sua própria decadência. O seu húmus é a melancolia que dizem preencher os dias que distam entre duas efusividades. Como estas têm o condão da infrequência, mergulham na angústia de quem se sente absorvido pelo vazio do tempo, pela inutilidade das janelas corridas enquanto o tempo espera pela próxima efeméride. Julgam iníqua a infrequência das efemérides e, ao mesmo tempo, não são diligentes na sua consumação máxima. Desaproveitam as celebrações. Desaproveitam o tempo que lhes é dado em graça. Talvez não sejam merecedores. Ou, o que mereçam, é a profunda melancolia que os preenche. São incompreensíveis tradutores do mundo complexo que há no exterior. O pior é não compreenderem um módico desse mundo complexo: as celebrações são episódicas e assim se devem manter, ou perdem os atributos que delas fazem celebrações. Entre duas celebrações, não sobra nada para celebrar. É da natureza das coisas. Não é incentivo para um triste ensimesmar em inconcebíveis convenções que parecem apostrofar a alegria. Não sabem que cada coisa tem o seu tempo próprio. Sem arrotear caminho à melancolia, enquanto espera em seu lugar a próxima festividade.

16.10.18

Só se faz catorze anos uma vez


Dustin O’Halloran, “Opus 23”, in https://www.youtube.com/watch?v=Zx6gr_Ch9x8
(Carta aberta à Leonor)
Sabes, filha: o título desta carta é uma vulgaridade, como há tantas à nossa volta. Não é por acaso, o titulado: começas a ter uma idade que compõe um olhar diferente. Não digo que tenhas um olhar adulto, que ainda é muito cedo para seres incomodada com essas dores da existência. Mas o olhar com que vês as coisas já não é o mesmo da infância. Por isso, é tão importante dares conta das coisas que, por serem vulgares, dizem ao olhar que não têm importância. 
Tens muito tempo pela frente para te inquietares com as coisas importantes da vida, com a sua intensa seriedade, com as angústias que são palco de noites mal dormidas, com as dúvidas existenciais, com as lágrimas que continuarás a verter (todos vertemos, sossega), com as inseguranças, com as celebrações que exigem esforço e alguma dedicação. Fora de tudo isso, há as coisas desimportantes da vida. Como teu pai, e um pouco mais velho do que tu, digo-te que somos loucos se desvalorizarmos todas as coisas desimportantes que chegam aos nossos pés. Não tens de conferir valor a todas elas; cabe-te a seleção das que julgares elegíveis. Saberás apurar o critério, com o tempo e sucessivos infortúnios. Saberás ver, com o prumo da diligência, que fora das coisas importantes há um universo de banalidades que te faz crescer. Por isso digo que só fazes catorze anos uma vez. Dirás, encolhendo os ombros, “eu sei que só faço catorze anos uma vez – e quinze, e dezasseis, e por aí fora” (ao que acrescentarás, em jeito de exclamação, uma onomatopeia típica da tua geração: “dah!”). 
Entende o que te quero dizer: aprende a viver um dia de cada vez, a levar desse dia o que julgares ser a sua sumarenta matéria e a instruir o teu crescimento com essa atividade. Celebra todos os dias como se fossem irrepetíveis. (Percebeste agora por que intimo a celebrares de forma única o décimo-quarto aniversário?) Deixa os contratempos terem o seu lugar próprio, sem que sejas tu a arrematar caminho para a sua existência. Não cuides se não do que te agrada, com a consciência empenhada, sem te esconderes da responsabilidade. Com a minha ajuda, quando quiseres. 
Só tu podes ser tutora do teu devir. De cada vez que o amanhecer se anunciar, é um dia inteiro que te é dado a agarrar com as mãos. Usa as duas mãos e toda a força ao teu alcance. Até para aqueles momentos que parecem superficiais, os momentos que podíamos dizer que são inúteis para uma qualquer utilidade futura: pois esses momentos fazem parte das coisas desimportantes da vida a que temos de saber dar a importância que eles têm – mas sem nunca, mas mesmo nunca, deixarem de ter a fina espessura das coisas que nos parecem desimportantes. Não forjes o tempo que te espera; espera por ele, espera que ele repouse na serenidade do teu colo e depois faz com ele o que for do império do teu contentamento.
Celebra o décimo-quarto aniversário com a certeza de que não o festejas outra vez. Nem que essa seja a coisa mais banal que te é dada a saber no dia do aniversário. Pois dizer “parabéns, minha filha!”, é do mais importante que as minhas palavras podem angariar. E isso, é certo, é o contrário de uma coisa banal.

15.10.18

O menino que acreditou até muito tarde que não havia pessoas más (short stories #47)


Linda Martini, “Putos Bons”, in https://www.youtube.com/watch?v=aEpv69iSKIA
          Foi um longo idílio com a humanidade. Folgou-lhe a memória para adiar a idade adulta. Uma inocência – ou, dir-se-ia: uma ingenuidade – contumaz. Anos a fio a depositar confiança nos outros, a tê-los como património da bondade. Talvez tenha sido a sorte de frequentar escolas onde não havia meninos maus. Soube mais tarde, quando travou conhecimento com a maldade (ao ter sido sua vítima), que há uma variedade de maldades cometidas por meninos desde a tenra idade e a escola é o habitat natural da função. Teve sorte. Ou não: houvesse sabido da têmpera da maldade desde os bancos da escola e tinha sido preparado para saber o que é e como preveni-la. Agora, que já não é menino e deu um salto de salmão para a idade adulta (obliterando a adolescência), continua a lutar para impedir que os ventos do pessimismo hasteiem bandeira dentro de si. É tomado de assalto pela nostalgia: oxalá fosse possível viajar no tempo, resgatar o pretérito, e continuar imerso numa bolha onde todos eram imunes à maldade – onde o próprio conceito era desconhecido. Mas não tem a certeza se deseja o impossível repristinar do passado. Já aprendeu a conviver com as feridas abertas que são bolçadas pelo mundo e pelas suas contingências. Perpetuar o fingimento (da bondade intrínseca e geral, como vacina contra a maldade) é absurdo. Essas não são as regras distorcidas por que se pauta o mundo. E agora, que já deixou de ser menino há tempo de sobra, terça uma batalha interior. Tenta fugir dos instintos de maldade que, com uma certa frequência, sente assomarem à superfície. Umas vezes, como reação à maldade de que é vítima. De outras vezes – o que angustia mais – como selo instintivo de uma ação. Enquanto terça as armas na batalha interior que o consome, não perdoa o palco de ilusões em que se fez a infância. Sem perceber que nesse julgamento do passado se desvia da bússola que teve em mãos durante (talvez) tempo a mais: possivelmente não é o presente, com o arrojo de maldades, soezes ardis, fingimentos disfarçados de fingimentos em sucessivas camadas, que quadra com o desenho do mundo. 

12.10.18

O adeus do nómada situacionista (short stories #46)


Mac DeMarco, “Honey Moon”, in https://www.youtube.com/watch?v=5AQ_GBJkcG8
(Qualquer semelhança com uma polémica contemporânea envolvendo sexo não consentido entre uma senhora e uma estrela mundial do futebol é, apenas, mera coincidência)      
O nómada situacionista cansou-se da situação. Ao seu conhecimento chegaram ecos de lhe serem imputados comportamentos que ele reputa execráveis (no domínio da sua inextricável consciência). Como está na moda, parte-se da presunção de culpa para inverter o ónus da prova. Ao nómada situacionista chegaram microfones em barda, plumitivos querendo justificações. Já não o safou o estatuto de nómada situacionista, esteio do regime e da normalidade instalada. Até os poderosos – normalmente fazendo de adereço do nómada situacionista, pois estar ao seu lado granjeia popularidade – esqueceram-se dele. É o preço da fama. Quando se está em alta, até os poderosos, os mandantes da gleba, usam fita-cola para serem andarilhos do famoso. Quando se cai na desgraça, é o esquecimento que grassa. O resto do povo está atónito. Não esperava tamanho ultraje (aos bons costumes; o povo é exímio cobrador de fraque dos bons costumes) do nómada situacionista. Não admira que o nómada situacionista queira ir embora: recusa o estatuto (de nómada) e o rótulo (situacionista). Se os seus o apostrofam, não são merecedores da sua continuidade na terra que dele fez nómada. Não têm préstimo as tentativas, alguma elaboradas, de fazer valer as regras que dão corpo ao regime: o acusado da situação ultrajante para os bons costumes deve ser processado e devidamente julgado, com direito a contraditório. São apelos em vão. Outros famosos, de pedra em riste, e o imenso exército recrutado no povaréu, já proferiram sentença extrajudicial: o libelo acusatório saldou-se por condenação sumária e implacável. O nómada situacionista, por vontade dos juízes sem toga, está condenado ao degredo. O rótulo (de situacionista) foi deposto liminarmente. De que lhe adianta continuar a usufruir da condição (de nómada)? O nómada situacionista está angustiado, revoltado, triste. Dando a volta a vários calendários, o porvir cuidou de provar (em litígio decidido pelas vias legítimas) que a acusação estava coberta por um manto de falsidade. O mal estava feito e não tem reparação. Nestes tempos de escrutínio cerrado das vidas alheias, as sentenças de juízes sem toga são mais contundentes do que as sentenças dos juízes legítimos. Males há que vêm por bem: o nómada passou a sedentário. Agora é um rebelde.

11.10.18

Os sábios (short stories #45)


Bauhaus, “She’s in Parties”, in https://www.youtube.com/watch?v=QXh30qF7D38
Os sábios não são apenas os velhos, emoldurados num cadeirão de onde ostentam a imensa autoridade intelectual e peroram com o jeito dos que se afastam do conhecimento acessível com a caução da erudição jactante. Há sábios de todas as idades. Sábios com diferentes pergaminhos. Sábios não são apenas os detentores de cátedras (de todas as espécies); são também os apóstolos do saber variado que comentam prolixamente no espaço público, os ascetas que se interiorizam como detentores de saber à prova do saber dos outros, dos pecaminosos (por atentado à humildade do conhecimento) peritos que desfilam imperativos categóricos à prova de contraditório, os purulentos eremitas que arrematam a razão a seu favor. Há os sábios entronizados pela admiração dos outros e que aceitam a coroa e a demais auréola. E há os sábios autoproclamados, feitores de um conhecimento do lugar-comum, tributários de fontes de saber não escrutináveis, soberanos de um exíguo lugar mental que protestam ser do tamanho do universo – sábios de vulgaridades sem valor para a sabedoria. Os sábios que se cobrem com o estatuto da respeitabilidade intelectual estão no cocuruto da sabedoria. Foi longo o caminho (mas nem sempre árduo) até lhes ser reconhecido senatorial estatuto. São detentores da sabedoria por direito adquirido. Já não precisam fazer prova da sabedoria. Decaem na vulgata da sabedoria enquistada no estatuto. Deixa de ser sabedoria; é apenas estatuto. Das demais categorias de sábios não merece a pena mais palavras dedicatórias. Os sábios sabem tudo. E não sabem grande coisa – pois a quem tudo cobiça saber, é embebida a garantia do pouco que sabe. Os sábios só têm respostas. Os demais procuram as interrogações. Maior a sapiência dos humildes, dos que procuram saber e o saber lhes abre as portas para múltiplas fontes de saber. Invocar o estatuto de sábio é a confissão de que não se é sábio. A humilde condição da humanidade devia ser suficiente para banir a condição de sábio das possíveis condições a que alguém pode ambicionar.

10.10.18

Do salitre que há em minha pele (short stories #44)


Trentemøller, “Come Undone”, in https://www.youtube.com/watch?v=c3SDpsPPepY
          A voz tonitruante assoma à pele em forma de lobo esfaimado. Não se trata de uma cavernosa deriva, dos dentes selvagens tomando pelo cachaço, e com violento desenho, o mundo sem espera. Não. Cuidassem os mensageiros do zelo com que resguardam os cais dos assaltos oportunistas, cuidassem de polir as palavras com o encardido vernáculo (se preciso fosse) para se libertarem das peias em que se consomem. Eu prefiro ter a pele saldada no salitre imenso e dela fazer refúgio para a noturna convocatória dos sonhos. Obtenho vencimento nos pleitos que quero relevantes. Dos trunfos faço as costuras que são minha delimitação. O salitre que há em minha pele não é agressão; é tempero. Visto à lupa, encontra-se a pele irregular, preenchida por uma constelação de pequenos cristais que, à vista da lupa, parecem grãos com tamanho para encravar engrenagens. Não é essa a serventia do salitre. Salto da ponte, na verticalidade de um sonho desassombrado, e trago às mãos o caudal inteiro. Não o quero como manancial das lágrimas. (Não querendo dizer que enjeito as lágrimas; não aspiro à condição de super-homem, nem sou da colheita dos empedernidos.) Tempero a água com o salitre do corpo que nela se banha. E faço perguntas, perguntas a eito. Perguntas às perguntas. Sonho com as perguntas que, por serem alinhavadas em sonhos, depois não consigo formalizar. Na varanda com periscópio sobre o mar, apenas sei que na outra extremidade encontro terra firme. Não sei de que nome é feita essa terra, nem sei das suas cores e de que desenho se compõe a paisagem. Mas sei que a maré tumultuosa há de levar o salitre da minha pele que tomou o mar como sua imersão. E que o salitre que houve em minha pele irá desaguar na terra semeada na distância imensa que separa as orlas do mar. Tomo praça, no testemunho do salitre vertido pelo meu corpo, nas terras que a elas se abraça o salitre despojado. Para meu domínio delas fazer, mesmo não sabendo de seu paradeiro – mesmo não tendo delas a mínima noção.

9.10.18

Provérbios gastos (short stories #43)


The Rapture, “Get Myself Into It” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=IUl5KIwszQI
          Se as palavras ditas são as palavras dos outros, que não fiquem esquecidas as aspas; é a mnemónica que se impõe. Gastas são aquelas palavras pedidas de empréstimo à “sabedoria popular”. Os adágios estão exaustos, de tanta utilização. Não podiam esperar outro desígnio, os provérbios assim gastos: mal subiram ao olimpo dos provérbios, vieram a caminho da banalização. Andaram de boca em boca. E de tantas bocas os possuírem, num frémito instantâneo de sabedoria equivalente ao erudito lugar-comum, ficaram puídos. Dir-se-ia, em seu abono, terem sido o epitome da democracia. De tanta gente os usar, de tão popularizados terem sido, os provérbios são o estandarte da legitimidade. Os testas-de-ferro do povo. Mas estão gastos. Talvez irremediavelmente, que não se antevê a hipótese de serem reescritos (uma variação na conjugação aqui, uma palavra remediada ali, ou a sua reescrita em conformidade com os tempos que são a variável independente). Ou, talvez, o povo esteja à espera de uma personagem presciente que, num acesso de incomparável lucidez, desenhe o novo provérbio da moda. Os outros provérbios terão um módico de sossego, pois as bocas ávidas farão andar, entre elas, o novo provérbio. Até que este se junte aos demais, exaurido e condenado ao mutismo, no apalavrado devir de que não se foge. Os provérbios gastos já não dizem nada. É como se as suas palavras se esvaziassem de sentido por dentro, e da conjugação dessas palavras resultassem os ecos de uma frase logogrífica. Na escola devia-se ensinar a não falar através de adágios. E que a fuga determinada dos provérbios não é delito contra a democracia. As pessoas deviam aprender a falar através das suas próprias palavras. Deviam ser elas as fautoras da sua própria literatura. Pois dos provérbios, gastos ou não, não restam nem as sombras da criação. Nem naquelas alturas em que é tão óbvio, no derramar de uma circunstância, que vêm a calhar as palavras compostas no lugar de um provérbio. Os lugares-comuns são os lugares-tenente da pessoa hipotecada.

8.10.18

Mise-en-scène (short stories #42)


Cat Power, “Woman” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=eXhihx7_B5c
(Mote: “Otelo”, de William Shakespeare, encenação de Nuno Carinhas, Teatro Nacional de S. João)
No banquete da diplomacia – ou de qualquer outra (des)arte que meta as traves-mestras do poder, onde o poder se exiba como galões que cobrejam, ufanos, nas dobradiças dos fardamentos ornamentados, onde o poder pura e simplesmente seja ostentado (porque é a genética do poder). No banquete onde se sopesam as palavras e se lhes retira a sua espontânea matéria. Antecipando as jogadas no tabuleiro onde se congeminam os ardis. Pois nada é o que parece. Nada do que se diz é espelho das costuras por onde haveriam de ser desembainhadas as palavras se não se soubesse que as peças se movem (e são diligentemente movidas) no refogado dos fingimentos, no anteparo das conspirações. Até que, de tão densas camadas de fingimento, no palco sobrem as palavras malquistas entretanto adulteradas, entretanto objeto de salvo-conduto; todas as que no dicionário ecoavam inaceitáveis usos e malsãos atributos conquistam novo lugar, por tantas camadas de adulteração serem adestradas, ganham uma dignidade só possível porque o antigo dicionário foi esquecido na evanescência. Nestes que são os banquetes (agora) bem frequentados, o palco já não é um fingimento, já nada é fingimento: tudo se tornou matéria genuína, espessa, uma sucessão de enredos válidos que confirmam a equação onde, num pretérito longínquo, quase tudo que era desprezível ganhou foros de recomendável. Até que, a páginas tantas, os atores que pisam o palco sejam fingimento dentro de fingimento que, por sua vez, encobrem outros fingimentos. Uma galáxia de fingimentos, até já não se saber o que é um fingimento. Palavras houve (“verdade”, “mentira”, “decente”, “lamentável”, só para usar uns exemplos) que foram banidas do vocabulário – e com o seu próprio consentimento. Foi o melhor serviço que lhes prestaram, estes censores inadvertidamente bons. Não tivessem sido excluídas e, no nevoeiro intrincado dos sucessivos palcos onde tudo se finge, esses termos teriam sofrido ultraje ainda mais insuportável. Os que não quadram com a mise-en-scèneficam em dívida com o devir pelo labor minucioso de arqueólogos que exumem as palavras proscritas. Mas só quando a tela dos fingimentos em cascata se tiver exaurido e a alvorada convoque a repristinação das proscritas (para sua própria salvação) palavras.

5.10.18

Diário da República (short stories #41)


Soft Cell, “Say Hello Wave Goodbye” (Live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=exdCiRPvmpU
(Narrativa na primeira pessoa)
                  Hoje faço anos. Cento e oito. Não me meçam a idade pelos padrões humanos. Não me meçam pelos dobrões pendidos e pelas possíveis teias que pedem aranhas. Eu sou imortal. (Dou por assente, em coro com uma imensa maioria, que os reis são figuras atávicas e apenas preenchem um imaginário folclórico.) A prova de que não estou vetusta é que saio todos os dias à rua ostentando os belos e ainda roliços seios. Quem se pode gabar desta prerrogativa? Se outras fossem as mulheres a exibir os seios (descontando as manifestações de mulheres semidesnudas em protesto contra boçais espécimes masculinos), seriam encarceradas por atentado ao pudor e alcunhadas “galdérias”. Sou a franqueza em pessoa, a simplicidade que se despoja de artefactos, a âncora da confiança dos cidadãos. Sou, num certo sentido, a figura maternal que cinge os cidadãos na asa quando eles precisam de abrigo – e já era tempo de vulgarizar no léxico “mátria” em vez da desusada “pátria”. E não me canso. É outra prova da vitalidade que se não me esgota. Sou a ágora dionisíaca onde o areópago do poder se oferece à sindicância. Sou tolerante. Prezo o diálogo e o contraditório. Arrenego os que a mim se agarram com o propósito de excluir quem se lhes opõe. Não me limito a ficar à defesa: denuncio-os e sonho, nos meus sonhos confessáveis, que sejam aprisionados e desprovidos de direitos cívicos. Não quero ninguém deposto a meus pés. Odeio a ideia, defendida por alguns dos meus seguidores, de ser sacralizada. Sou modesta – daí a leveza da vestimenta que trago, a lhaneza dos seios à mostra, uma certa ingenuidade contundente, ingenuidade apenas na aparência. Sei que da minha boca sopra o vento suave, mas assertivo, que desenha as curvas do porvir. Mas não quero que me comparem a uma deusa. Sou eu, república e apenas república, expoente da humildade, lição única que ambiciono que seja reconhecida por todos que se dizem meus súbditos, dos economicamente poderosos aos mendigos que protestam um futuro, dos mandantes que tomam conta de públicas sinecuras aos modestos funcionários imersos numa vida que mais parece uma ladainha. Não estou fora de prazo! Porque não tenho prazo de validade. 

4.10.18

“Nas minhas barbas!”


The Breeders, “Spacewoman”, in https://www.youtube.com/watch?v=oVk4xRdD5MA
Fugíamos a bom correr da professora de francês, só porque ela dobrou a esquina que dava acesso ao corredor das salas de aula no exato momento em que soava o segundo toque (aquele toque da campainha que selava a não comparência de um professor). Fugíamos: nenhum de nós desdenhava uma gazeta e, no caso da avançada cinquentenária professora de francês, não teríamos de conviver com os perdigotos esgravatados para cima do rosto (por isso, já ninguém oferecia as suas dúvidas), nem com a pose esdruxulamente obscena em que se colocava quando insistia em ensinar in loco, sobre a carteira de um de nós, empinando o rabo na direção dos outros que se encontravam na retaguarda do aluno com necessidades momentâneas de esclarecimento.
Fugíamos, mas não era porque não apreciávamos as aulas da professora de francês. Sabíamos que tínhamos de saber um módico de francês. A professora ensinava bem (descontando a teimosia em se debruçar sobre a carteira de um de nós, com o rabo proeminentemente erguido sobre o olhar já não desprevenido dos que estavam atrás). Fugíamos, porque da primeira vez que fugimos, ao menor atraso da professora, ela começou a correr na nossa direção e, com o vozeirão que era seu apanágio, protestou, para nosso deleite: “nas minhas barbas! Nas minhas barbas!” – vertendo a sua indignação por fugirmos quando ela acabava de dobrar a esquina e fazia notar a sua (atrasada) presença.
Daí para a frente, não perdoávamos o menor atraso. Contávamos os segundos (trezentos) entre o primeiro toque e o segundo toque da campainha. Se preciso fosse, rezávamos para que a professora de francês se distraísse na conversa com outras colegas na sala dos professores e se esquecesse das horas. Só para a ouvirmos dizer : “nas minhas barbas! Nas minhas barbas!” Era a paródia total. Por mais que procurássemos, a professora não tinha barbas. Nem sequer umas avulsas pilosidades, como às vezes acontece com mulheres mais descuidadas. Naquela altura, fazíamos de conta que não sabíamos o que era uma metáfora. 
A professora de francês ficou conhecida como a “mulher das barbas”. Chegou ao seu conhecimento a alcunha com que a cunhámos. Nunca mais se atrasou. Para pecúlio da nossa tristeza.

3.10.18

Mudar o futuro (short stories #40)


LCD Soundsystem, “Oh Baby”, in https://www.youtube.com/watch?v=5gIhrPGyu6U
          O peso de uma rocha inamovível: este é o paradeiro das conturbadas lições sobre o devir. Os tempos de diferente ordem de grandeza não são intermutáveis. Abraçam-se a conchas diferentes, que por sua vez não se abrem umas às outras. Dizem: somos passageiros do tempo vindouro e temos essa passividade como moldura. Mais vale esperar. Sem grande esforço, na posição invejável de quem se oferece ao fado que estiver por vir, seja ele qual for. Reforçam a convicção, argumentando os esforços destinados ao malogro se alguém carregar aos ombros a ingrata empreitada de mudar o futuro. Não podemos, deste lugar atual em que estamos, lançar âncora no tempo futuro, ainda inexistente. Talvez seja acertado corroborar a ideia de que somos meros passageiros do tempo transiente. Voltamos à casa da partida: ficamos onde estamos, imersos numa passividade que não deve ser contrariada, porque se o for o mais certo é o devir, ufano de seu enigma e ungido com um irreprimível mau feitio, desfazer as vontades que congeminamos num certo sentido. Os precavidos advertem para os efeitos malsãos da passividade. Somos, todos os dias, arquitetos do devir mediante as ações e inações, as palavras adestradas, as causas abraçadas, as escolhas, os silêncios, os esquecimentos. Deixam um rasto. O hoje consome-se a prazo. O rasto não se projeta no tempo oferecido no retrovisor; admita-se que os vestígios ficam emoldurados num tempo que pertence ao pretérito, mas não é inócuo na peugada legada ao tempo vindouro. Temos uma quota-parte no desenho do futuro. E é nesse sentido que podemos oferecer um modesto contributo para o lugar onde vamos ser mais velhos, o lugar que deixaremos em herança às gerações depois de nós. Não é pretensioso: podemos mesmo levantar a mão e conduzi-la ao desenho do futuro. Mesmo que o façamos desde o presente que, à vista do futuro, se constitui passado.

2.10.18

Não sei que razia fariam as palavras destapando segredos (short stories #39)


David Sylvian, “Waterfront”, in https://www.youtube.com/watch?v=aX7BnTOQBIs
          As pessoas guardam segredos. De si próprias. E guardam segredos relativos a outros. É como se os outros ficassem reféns dos segredos seus na posse de quem os guarda. Talvez seja um sobressalto contínuo: a qualquer altura, o tutor dos seus segredos pode desvendá-los e, se eles forem de modo a causar embaraço, pode ser um momento calamitoso. Quem guarda segredos dos outros é porque foi credor de um incalculável capital de confiança. De outro modo, não se intui a razão para confiar um segredo telúrico à guarda de outrem. Mas as pessoas caem no logro do desentendimento e a confiança acaba diluída. Se o tutor dos segredos quiser, tem a arma da vingança no coldre. Se proferir as palavras necessárias para destapar esses segredos, quem as ouvir fica a conhecer um pedaço da existência subterrânea que estava sob proteção do segredo. O autor do segredo entra em pânico. Ou, se recuar no tempo, sabendo que está sitiado pelo conhecimento do seu segredo por aquele a quem o confiou, evita mal-entendidos; o seu jogo de cintura diplomático cancela a existência de desentendimentos, submetendo-se à vontade do outro. Calcula o mal menor: ficar refém da vontade do outro. É preferível do que vê-lo revelar, de forma contundente, os segredos que quer continuar a esconder do olhar público. O autor do segredo submete-se aos humores do tutor do seu segredo, se este quiser usar do jogo da represália e tomá-lo pela trela da ameaça. Tudo pode levar vencimento por um chão manso: o tutor do segredo, mesmo depois do litígio com o amigo, não tem interesse em mostrar as cartas pérfidas de um jogo que não é seu. Não causa dores por portas travessas. Não lhe sobra o remorso de ter destapando o véu da humilhação a quem lhe confiou o segredo. E não amanha as dores de consciência por se ter desvinculado da cláusula de confiança. Quem quiser contornar estes dilemas, não deposite segredos na posse de outros.

1.10.18

Igual ao litro


Jambinai, “They Keep Silence”, in https://www.youtube.com/watch?v=PB1k7CDVWVk
Arrumem-se os embaraços a um canto. Que o caminho esteja desimpedido de rémoras, para a passadeira rubra ser estendida à passagem das excelências que esperam tributo.
Respeitem-se as coisas que têm a espessura das coisas sérias. Respeitinho! Cobre-se pela raiz o topete dos que violam a regra sagrada, esta regra que traduz (traduziria, se fôssemos obrigados a respeitá-la) uma religiosidade pagã, o mesmo sentido acrítico que os crentes das religiões argumentam a favor das divindades de que são crentes. 
Não se pode falar mal. Não se pode criticar. Sobretudo: não se pode criticar em tom jocoso, em estilístico exercício de sátira. Porque – lá vem à colação o respeitinho – os cânones são cânones por alguma razão e os seus ícones só merecem aclamação. Os sacerdotes deste dogma dos novos tempos exasperam-se com o contraditório. Talvez tivessem uma existência mais sossegada se toda a gente pensasse no mesmo sentido; ou, em generoso contributo para um módico de tolerância (nem que seja um conveniente faz-de-conta), concedem a existência de contraditório desde que não resvale para o motejo. Caçoar das vacas sagradas é – suspeito que faça parte do seu argumentário – caçoar da tanta gente que os entroniza como vacas sagradas. E, portanto, a sátira não atinge só a sua vítima; oferecem-se-lhe vítimas indiretas, o que justifica a exigência de não se libertar o torniquete da sátira. Que haja respeito – respeitinho – pelo Graal.
Tenho más notícias para os que gostariam de ser castradores da liberdade dos outros: por essas objeções tenho a mesma atenção que dedico à música popularizada como pimba (que é: nenhuma). A tais objeções dedico a mais pura da irrelevância. É igual ao litro que corram conversas acerca do método sarcástico que uso no comentário às coisas públicas. Até a política (essa coisa tão séria) tem de ser levada pela trela do sarcasmo. Para higienizar o pensamento e aprender a conviver com dois princípios gerais que cortam transversalmente a política: a desonestidade genética e a hipocrisia sem escrúpulos.