12.11.18

Antologia (short stories #65)


Einstürzende Neubauten, “Nagorny Karabach”, in https://www.youtube.com/watch?v=hd-6WweqD0Y
          O guarda-livros, tenente empossado das memórias, desconfia das luzes garridas. Talvez seja o murmúrio das violetas levantadas pelo vento, um aroma ardiloso. Talvez sejam as equações não resolvidas a adejar sobre o peito aberto. Os livros estão à espera. Em estantes milimetricamente iguais, armazenados por ordem alfabética. À espera de quem deles se queira servir e provar do conhecimento farto. Cuidam os anciãos do manjar tão cuidado por gerações e gerações. Os livros imortalizam-se. Falam pelas gestas registadas, são delas prova – ou contraprova, quando livros dissidentes rompem com o estabelecido. O guarda-livros está de atalaia. Precata-se contra os fogos ateados constantemente por iconoclastas da incultura. As cinzas, que seriam os despojos desses fogos, evocam o obscurantismo sua lavra. Combinam-se os dizeres alegóricos em mentais manifestações que protestam contra a analogia do medo. O conhecimento é o antídoto do medo. A sua fonte primacial. Talvez nunca se tenha dado conta que há mais páginas de livros do que gente a povoar o planeta. Contudo, os lamentos são ciciados em cada esquina. Através dos lamentos, desfila um cortejo de medos: diz-se que há conhecimentos medonhos, outros que semeiam os rudimentos do medo nos sonhos aprazados. Não se enganem as pessoas: só tem medo do medo quem se refugia do conhecimento, quem patrocina esoterismos sem esteios, ou puras conspirações que fermentam na superstição. Os olhos bem abertos são uma bênção. O tirocínio dos fortes. O guarda-livros chega ao fim do turno. Vai para casa: passou a vez ao sucessor, um discípulo que desde tenra idade se encantou com estantes labirínticas repletas de livros. Porém, não se deita sossegado. Não sabe como vão ser as gerações que estão para vir. Aviva-se o medo pela ideia, contumaz, da apatia em contágio, cavalgando no dorso inerme de uma multidão. O desinteresse pode ser fatal. Dará lugar a um deserto de guarda-livros. Se ninguém proteger os livros, ficamos amputados de uma dose de leão da identidade. O guarda-livros desconfia que é o programa de intenções de alguns pederastas desossados de cultura, embebidos na frivolidade da espuma dos dias sem rasto.

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