14.11.18

Má tradução (short stories #67)


Little Dragon, “Sweet”, in https://www.youtube.com/watch?v=VzONcZR3438
         Não pensou duas vezes. E gabava-se. Era como se as decisões repousassem em cima do joelho – e o joelho fosse a parte mais nobre do corpo humano (no que à racionalidade diz respeito). Invariavelmente, traduzia mal as circunstâncias. Era mau intérprete dos acontecimentos, inebriado pelo febril estado de quem não tem tempo para os digerir. Era mau intérprete porque não conseguia ser elástico na gestão do tempo e do pensamento. Ainda por cima, gabava-se: era proeza a velocidade supersónica com que fazia aterrar as decisões. Não conseguia aprender com os erros, convencido que a palavra arrependimento tinha sido banida do (seu) vocabulário – e sem a lucidez necessária para não atalhar conceitos, incapaz de perceber que arrependimento não quadra com a humildade de aprender com as lições pretéritas. A má tradução de tudo começava no diagnóstico. Errado o diagnóstico, acendia o rastilho de uma prescrição também errada. Do altar onde campeavam as (suas) más traduções, empilhava-se um amontoado de equívocos. Sê-lo-iam ao olhar imparcial de um observador exterior. Não era o seu caso. Tinha sempre certezas milimetricamente desembainhadas para todos os pleitos que se colocassem. E, todavia, quem estava de fora, ao menor contacto com o (seu) caso de estudo, percebia a falta de rigor na análise, a incandescência que contaminava a reflexão, a voragem sem freio, a mercê dos instintos, a teimosia em dar dois passos atrás para avançar um pequeno, mas sólido, passo. Os erros eram sempre no exterior dos seus limites. Infalível. Era o paradoxo último da má tradução que tomava conta dele. Não esperava. Dizia: “não tenho tempo”. E, contudo, o que mais sobrava era o tempo, desocupado de outras empreitadas. Um dia, alguém teve a insensata ideia de lhe pedir a tradução de um texto. Assim como assim, orgulhava-se das quase duas décadas que passou a trabalhar no estrangeiro, dizia-se fluente no idioma. Quem encomendou a tarefa acabou a dizer mal da vida. A tradução, feita numa brevidade impressionante, estava repleta de erros. E assim se perdeu um negócio, à conta da superficial entrega a tudo do volúvel campeão das más traduções. 

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