9.1.19

Por encomenda


Trentemøller, “November”, in https://www.youtube.com/watch?v=-MR5SVUuch4
Uma obra por encomenda compromete a autonomia do criador? A história da arte está repleta de exemplos de obra encomendada. Mesmo na escrita. 
(Não se ponha de parte a hipótese de a limitação da autonomia do criador estar diminuída noutras expressões artísticas: o que acontece se um ditador – ou um autocrata com devaneios de grandeza – encomendar uma estátua de si próprio?) 
A questão que se levanta é esta: na escrita, a encomenda de uma obra sobre determinado tema bloqueia a capacidade criativa do autor? Não se afigura o caso. Entenda-se a encomenda (na forma do tema a tratar) como uma sugestão de assunto a convidar a uma reflexão do autor. Talvez o autor agradeça a encomenda, se estiver com pouca inspiração para encontrar assunto para escrever; ou talvez, não declinando o convite, o remeta para tempo futuro, justificando o adiamento com empreitadas pendentes que se sobrepõem, pela urgência que carecem, ao assunto encomendado.
A partir da interiorização do assunto encomendado, nada se perfila como limitação da autonomia do criador. Ele tem total liberdade para pensar sobre a demanda e, no uso da sua capacidade criativa e dando voz à forma como interage com o assunto, usufrui de autonomia criativa. Nem se espera que quem encomendou a empreitada a intua de outro modo. Quando alguém interpela outrem, pedindo-lhe opinião sobre um assunto, o interpelante aguarda pela posição do interpelado. Pode, ato contínuo, dirigir interrogações, fruindo uma função dialógica entre ambos. Está fora de questão interpelar e delimitar as baias por onde se possa mover o raciocínio do interpelado. Era como perguntar algo tendo por intenção obter uma resposta predeterminada. Assim se entenda a autonomia criativa do destinatário da encomenda. 
Nem pode essa autonomia ser limitada pelo possível gosto de quem encomendou: o criador não pode pensar, por um instante, na reação provável do interpelante. Se o autor esboça um texto tendo parte do pensamento locupletado pela preocupação sobre o gosto (favorável ou não) do interpelante, uma camisa-de-forças sobrepõe-se à sua autonomia criativa; mesmo quando o autor, no uso de um aguçado espírito de contradição, entretece um argumentário que sabe ser a desprazer do interpelante, provocando-o desse modo. Saber em que medida aquela limitação afetou a produção intelectual depende de um exercício especulativo: quais as diferenças entre o texto produzido em consequência da limitação autoimposta e o texto que resultaria da inconsideração daquelas preocupações? 
A autonomia só existe quando o autor, colocado perante a demanda, apenas discorre a medida do que sobressai como fonte de inspiração e como seu entendimento sobre o assunto, sem ser hipotecado por demais obstáculos. O interpelante só o será se não aceitar menos do que esta medida de liberdade criativa. 

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