11.2.19

Noção de confiança (qualquer semelhança com a ficção é pura realidade)


Talking Heads, “Psycho Killer” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qCfC5yVlvj4
Da terra que tinha um governo que a tirou do apocalipse. Da terra onde o governo continuava imerso num banho de confiança (à exceção dos incorrigíveis opositores, que continuavam insensíveis à evidência, e daqueles penhores de meu feitio que nunca gostam de nenhuma fórmula governativa). Da terra onde o governo era o paradigma de originalidade: um parceiro no governo e mais dois parceiros como rede de segurança. Houve quem não gostasse do arranjo, acusando-o de ser um casamento de conveniência.
(Esqueceram-se, esses críticos, que os casamentos são sempre de conveniência – mesmo quando o fio condutor da conveniência é o sentimento que costuma fruir no matrimónio.) 
Entre alguns arrufos de namorados e o periclitante equilíbrio de uma relação triangular que escapava aos cânones do matrimónio como ele é concebido de harmonia com o princípio geral da monogamia, os parceiros entendiam-se. Entendiam-se para as coisas fundamentais da governação e às vezes desentendiam-se, mas só ligeiramente, sobre outros assuntos não tão cruciais. Assim como assim, cada parceiro queria manter a sua identidade. Os parceiros que foram seduzidos pelo parceiro maior queriam ir a eleições com capital de protesto, para não ser adulterada a sua linhagem. 
Contrariando as más línguas (e os abespinhados tutores de oráculos que pressagiavam a rápida desgraça do arranjinho), o governo foi levando a água ao moinho. Faltavam apenas uns meses para o fim da legislatura. Inesperadamente, um acontecimento internacional teve contundentes efeitos na parceria triangular. O acontecimento internacional tinha gravidade para o mundo inteiro se pronunciar. A maior parte dos países alinhou com o insurgente; só um punhado de países, que se distinguem pela rebeldia na ordem internacional, foi leal ao poder que ainda reclama legitimidade. Nesta terra que se faz constar, o parceiro maior, o dono do governo, pôs-se de um lado, perfilhando a tese dos países que são, por tradição e por contexto, parceiros por excelência. Um dos parceiros do governo, contrariado, protestou enfaticamente. Assim estalou o verniz na relação a três. O parceiro contrariado não sabia o que fazer: manter-se leal à sua linhagem, que é de contrariar as posições dos tradicionais aliados desta terra, ou comer em seco (não seria inédito) para não hipotecar o governo desta terra e não romper a sua rede de segurança. 
O líder do governo, astuto como dizem ser, jogou as fichas todas: desafiou o parceiro insatisfeito a esclarecer de que lado estava no problema internacional e a tirar conclusões, ora se mantinha a posição inicial, ora se confirmava as críticas ao governo. O líder do governo jogou uma cartada forte. Passou-lhe pela cabeça desafiar o parceiro insurgente que, ao longo do tempo, ajudou a cerzir pacientemente a rede de segurança do governo. Podia ser que tirasse proveito da clarificação de posições. Na pior das hipóteses, se este parceiro fosse preciso outra vez depois das eleições, far-se-iam as pazes e promessas seriam seladas com o propósito de o agradar futuramente. Até lá, a corda tinha de ser esticada. Ao limite. 
O chefe do governo pensou apresentar no parlamento uma moção de confiança. O líder do parceiro contrariado respondeu com outro repto: “o senhor primeiro-ministro tem noção de confiança?

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