8.2.19

Sem título


Electric Wizard, “See You in Hell”, in https://www.youtube.com/watch?v=XX1530GNc6U
A orfandade temática tem, ao menos, uma virtude: não se poderá acusar o texto de ser monotemático (como se a monotemática fosse de vituperar). 
O título ausenta-se porque de início não se sabe ao certo ao que vem o texto. Com frontalidade: é por falta de assunto. Acontece. Logo depois, a primeira coisa que vem ao pensamento é “boca do inferno”. Podia ser a Boca do Inferno perto de Cascais, uma garganta funda escavada no mar (ou pelo mar escavada – talvez seja mais acertado), onde o mar é medonho e nem precisa de estar tempestuoso. Ou, apenas, uma boca do inferno.
E ocorre lembrar da Boca do Inferno porquê? Correm histórias (míticas, porventura) de gente desesperada que exigiu da Boca do Inferno que fosse sua sepultura, o lugar metodicamente escolhido para o suicídio. E de turistas pouco previdentes que, de tanto se dependurarem, desafiando a gravidade e a lucidez, foram tragados pela Boca do Inferno. Chamar àquele lugar “Boca do Inferno” pressupõe que se sabe o que é o inferno. Admita-se que a descrição foi emoldurada por pessoas que tiveram passagem pelo inferno e o assemelham à Boca do Inferno, aquele lugar rochoso onde o mar tem caprichos violentos e escavou na rocha uma caverna mesmo idílica para efeitos demoníacos. Hipótese em que se questiona como é possível alguém ter ido ao inferno e regressado, se o inferno é um lugar onde se depositam almas mortas; ou, hipótese mais congruente, só podem os viventes adivinhar como o inferno – a haver – será.
Quem tiver medo do inferno e for à Boca do Inferno, de lá sairá mais tranquilo. Afinal, o inferno não é um lugar incandescente, com o fogo a vomitar de vulcões imprestáveis, e as pessoas que no inferno tiveram degredo eternamente desconfortáveis com a canícula que consome, milímetro a milímetro, o que sobra da sua carcaça. Não: o inferno será cavernoso, conceda-se; mas o seu elemento é a água. E tendo em conta que nestas latitudes a água do mar é fresca, o inferno (a crer no pedaço dele ali para os arrabaldes de Cascais) é a antítese do fogo do inferno.
Também ocorre lembrar da Boca do Inferno porque foi o sítio onde comi o melhor polvo em vinagreta que a, até agora, minha vida conheceu. E se os polvos são criaturas marinhas medonhas, com os octogonais tentáculos desdobrando-se em meticulosas braçadas, não estarão longe de serem considerados criaturas de demo. Recuo nas memórias, mais atrás desse memorável polvo em vinagreta: eram pesadelos de infância depois de, inadvertidamente, ter sido espetador de um filme onde um polvo gigante comia um pescador, numa carnificina inenarrável. O medo compagina-se com o inferno – assim ensina o catecismo católico, que encomenda as almas boas para um lugar tão reconfortante com o céu. O polvo que acabou a nidificar na vinagreta – adivinhei, num movimento especulativo que vinha mesmo a propósito – teria sido pescado nas grutas da Boca do Inferno. Era um habitante do inferno. Que, contudo, perdeu os pergaminhos demoníacos ao ser sabiamente marinado na vinagreta inigualável. E assim se prestaria a especulação a uma hipótese tranquilizadora para os tementes do inferno: a vinagreta como antídoto do demónio.
Afinal, o título do texto podia ser “Boca do Inferno” (ou “boca do inferno”). 

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