18.4.19

“Pai: não vais acreditar, agora sou poeta!” (short stories #110)


Mler Ife Dada, “À Sombra Desta Pirâmide”, in https://www.youtube.com/watch?v=iFn9UWBcqD0
          “Não me enganei – nem te estou a enganar: é mesmo verdade: agora sou poeta. Quem diria?! Lembrar-te-ás que era um problema quando, na minha adolescência, me procuravas convencer da importância da leitura. Lembrar-te-ás que houve um teste de português em que tive uma nota baixa e passaste em revista todos os erros de sintaxe que eram a razão para não ter sabido responder de forma capaz e convincente. Lembrar-te-ás que dizias, vezes sem conta, que a literatura fornecia o lastro cultural que não se pode recusar, que trazia mundo às pessoas. Lembrar-te-ás que eras guardião de uma biblioteca abundante e não havia maneira de me iniciar na literatura – quanto mais na poesia. Talvez estranhes: a poesia não era a tua literatura de eleição. Dir-me-ás que não te recordas de um único livro de poesia nas estantes que compunham a tua abundante biblioteca. Mas o tempo é zelador de mudanças e algumas delas encerram segredos insondáveis. Ficarias admirado ao saber que me converti ao prazer da escrita? Em parte, já sabias. Mas a escrita de que foste leitor era mais técnica, repousando sobre a atualidade, uma escrita que seria própria de um cronista do tempo que corre sob os dedos que escrevem. Por defeito de feitio (quero acreditar, mais do que na hipótese alternativa da atualidade enfadonha que, quando o não é, encerra os contornos de uma tragédia que se confunde com farsa), afastei-me desse estilo. Encantei-me pelo ensaio, pela narrativa de histórias, pelo teatro. E pela poesia. Imagina que tive o topete de começar por ensaiar uns versos. Habituei-me. Hoje a poesia (a que leio e a que arrisco dizer que é, pelo menos, um rascunho) faz parte da autoterapia para obliterar o tempo corrente que a minha atenção não deixa de convocar. Não digo que a ignoro, a atualidade; mas não lhe confiro honras de escrita, o que quer significar que a deixei para quintas ou sextas núpcias na ordem das prioridades. E assim desaguei na poesia. Ao início, como refúgio. Hoje, como casa centrípeta. Quem diria, pai, que o teu filho entraria no reduzido (e não reconhecido, por sorte) escol dos poetas!”

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