31.5.19

A carta que o avô gostava que o neto lhe escrevesse


Lena d’Água, “A Grande Festa”, in https://www.youtube.com/watch?v=WZ3yHIz2lso
             “Avô:
(Tu sabes que não devo começar a carta com “querido avô”, pois não preciso de te lembrar que me és tão querido.)
Há dias, estavas na poltrona a ler um livro, e eu dei por mim a admirar-te. Cada ruga que ensina uma vida inteira, os óculos inclinados sobre o nariz escondendo o olhar cansado mas lúcido, as mãos que não tremiam, como consumias as páginas numa leitura que pareceu vagarosa, interiorizada. As pessoas costumam dizer que os velhos estão cansados. Mas tu não estás velho. Não são as rugas, ou o andar às vezes hesitante, ou o olhar que parece de alguém que só dormiu um par de horas, que de ti fazem um velho.
Vamos acabar com um mito: noto que à minha volta há uma patrulha do vocabulário que tenciona proibir determinadas palavras, por as considerar incorretas para o uso corrente. “Velho” é uma dessas palavras. Eu não entendo essas patrulhas nem o índex para onde são atiradas, arbitrariamente, as palavras assim proibidas. Por isso, e porque sei que odeias essas patrulhas e a nova geografia das palavras, sei que posso usar a palavra “velho”. És mais velho do que eu. Não há polícias do vocabulário que o possam negar e que me impeçam de usar a palavra nas nossas conversas.
Escrevo-te esta carta porque me apeteceu ter a ousadia de te recomendar um par de coisas. Sei que costuma ser ao contrário, são os mais velhos que ensinam lições de vida aos estroinas que ainda vão ter de durar muito para atingir a velhice, ainda vão a tempo de asneirar pelo caminho fora. Como aprendi contigo a ser insubmisso, vou com a ousadia por diante. Escrevo-te esta carta porque olho para ti e sinto que ainda tens uma vida inteira para apreciar. Uma vida inteira, pois o que importa é a qualidade do tempo que passa pelas nossas mãos.
Queria tanto que aproveitasses a vida inteira que ainda tens pela frente! Não me dizes, talvez para esconderes a mágoa que ainda te consome, mas sei que é como te sentisses amputado porque ainda não habituaste a viver sem a avó. A melhor prova de amor que lhe podes reservar, a melhor homenagem de que podes ser-lhe cultor, é viveres agarrado à vida como nunca. Se te apetecer viajar, viaja. Se te apetecer ir ao teatro, vai. Se quiseres ler o livro complexo que andas a prometer há tanto tempo, aproveita a oportunidade e mergulha nele. Se só queres sair para tomar um café e demorar na esplanada, fá-lo. Se queres uma experiência bizarra (daquelas que, pelos teus cânones, consideras bizarra: por exemplo, gastar uma extravagância num restaurante gourmet, só para teres a prova que aquilo não é gastronomia que se defina), não percas o ensejo. Se quiseres almoçar comigo sem pré-aviso, telefona-me. Se quiseres falar de memórias, ou das minhas consumições interiores, ou dos meus estudos e da desorientação que me persegue, ou da política que te desgosta, ou apenas do sentido da vida na sua intemporalidade, desafia-me (caso eu esteja à altura). Se quiseres ajuda para fazer um álbum de família, ou para recolher as memórias em folha de papel, ou as tuas anotações organizadas sobre as peças de teatro, os filmes, as viagens, as pessoas, serei teu cúmplice nessa empreitada. 
Quero, avô, que tenhas uma vida intensa. Ainda mais intensa do que a que trouxeste até aqui. Pois – vou-te confessar uma angústia – a tua velhice não me deixa reconhecer que é velhice suficiente para algum dia ter de me despedir de ti. Tenho mais medo da tua morte do que da minha própria morte.”

30.5.19

Percorria o estrado altivo e recolhia os rudimentos da incerteza (safra eloquente)

Jambinai, “Connection” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=56dv3XHUISY
Era um sanatório, contudo não salvífico. As pessoas dirigiam-se ao sanatório quando estavam assoberbadas pelas hesitações e as palavras vogavam numa nuvem fina, à margem da consistência. Porém, eram poucas as pessoas que frequentavam o sanatório. O edifício ressentia-se: notavam-se as ferragens que deviam estar escondidas sob a cama de cimento, a pintura estava decadente e, diziam os funcionários, chovia em algumas salas. A administração do sanatório estava quase a capitular: por mais que pedisse um reforço do subsídio (assim como assim, deve ser função do Estado pagar o serviço que alivia os súbditos das consumições da incerteza), o silêncio era a resposta perene.
Um patíbulo insistente era ocultado dos olhares que queriam avidamente ser penhores das certezas. Eram umas certezas contra outras certezas, num diálogo impossível, um diálogo de surdos. As pessoas só falavam com as que tinham as mesmas ideias. Saldavam-se, as conversas, por uma fútil sensação de triunfalismo. Todas concorriam no mesmo sentido, sem uma que povoasse o contraditório. Era como se não houvesse, naquele pequeno fragmento do universo, ideias diferentes. Havia-as. Mas habitavam outros pequenos fragmentos do universo em onanista elucubração coletiva. Os pequenos fragmentos que alojavam diferentes ideias não eram intermutáveis. Não comunicavam entre si. Não queriam comunicar entre si: não tinham disciplina mental para aceitarem um princípio geral de tolerância; e faltava-lhes a abertura de espírito para não se convencerem que as discussões tinham de se saldar por um triunfo e, se possível, pelo convencimento (e arregimentação) do oponente.
Para derrotar este errático existir, o sanatório era um lugar de abertura. À entrada, em letras garrafais, a única regra: “aqui não entram verdades.” Não eram admitidas as categorias autoimpostas e insuscetíveis de questionamento. Os utentes, habitualmente pessoas que esmoreciam diante de tantas hesitações, como se sentissem órfãos de identidade por terem sido despojados de respostas, meditavam o tempo que quisessem. Não havia regras (a não ser a proibição de verdades autorreferenciáveis). Eram os utentes que iam tecendo pacientemente as suas próprias regras, moldando a motivação, construindo uma teia com o mosaico do pensamento. Não era importante saírem do sanatório com respostas. Era mais importante terem lucidez para formularem as interrogações que importavam.
Não admirava que o número de utentes do sanatório estivesse a diminuir. O lugar era propício a uma multidão de entendedores de tudo-e-mais-alguma coisa – o reino dos tudólogos. Era quase uma heresia desfiar um rosário de interrogações que pudesse servir de antinómico às verdades autorreferenciáveis. Era entendido como uma provocação inaceitável, uma desconfiança irredutível, a desconstrução de vontades tão liminarmente embelezadas na sua própria frivolidade. 
O sanatório só queria romper o círculo vicioso das verdades inimputáveis. Convencendo, sobretudo os de fora, que as verdades inimputáveis são uma mera lei de bronze, incapaz de se provar a si mesma por não aceitar interrogações de sinal contrário. 

29.5.19

Sorvete de tangerina (short stories #119)


Gorillaz, “Feel Good Inc.”, in https://www.youtube.com/watch?v=HyHNuVaZJ-k
         Serve-se a noite no pedestal de mármore, onde as nuvens perderam fôlego e a lua veste a noite com um vestido de vulto. Tinha a certeza de que este lugar era uma eutopia. Ficava. Demorava-se, por mais que houvesse outros mandamentos a murmurarem nas funduras do pensamento, desafiando a largar âncora e visitar outros lugares – o apelo do nomadismo. Um dia, num intervalo entre duas empreitadas, deitava contas à vida enquanto se afundava preguiçosamente num banco do jardim. As sucessivas ondas que o mar bolçava, tomando conta de mais e mais centímetros do areal, pareciam a metáfora do comboio inacabado que percorre vagarosamente o apeadeiro, como se nunca mais acabasse. O que diriam as ondas? Nada. Era inútil esquadrinhar a fundo para arranjar significados escondidos para as coisas que passavam diante do olhar. Essas coisas só tinham parentesco com a complexidade porque teimava em as tornar complexas. De outro modo, se não fossem as costuras de um pensamento gongórico, nos tortuosos corredores da veia labiríntica em que se detinha, as coisas eram tingidas por uma simplicidade desarmante. Quase dava consigo no papel dos chefes de cozinha da moda que reinventam iguarias já reinventadas sabe-se lá quantas vezes, até o resultado final não ser aparentado com o produto original. Ou: também fazia lembrar aquelas pessoas com conversa prolixa, tão prolixa e encadeada que transformavam um diálogo num monólogo, começando num assunto e desviando e desviando em sucessivas camadas que correspondem a assuntos sem ligação com o anterior, até se perderem no vazio da sua conversa. A noite podia ser demorada, no encanto não sussurrado do luar iridescente, mas o sono noturno tomava conta do silêncio. Silenciando a noite e deixando ao luar o papel de testemunha de um ocaso. Podia ser que o horizonte oferecido ao olhar transumante capitalizasse o étimo desejado. Não sabia que étimo era esse – apenas que o havia. Entretanto, reduzia-se à contemplação do sorvete de tangerina. Uma representação aproximada da perfeição simplificada.

28.5.19

Quem sou eu para determinar excomunhões?

Courtney Barnett, “Everybody Hates You”, in https://www.youtube.com/watch?v=ugUFu8XUjgA
Não uso lanternas vertidas sobre os demais em demanda das suas fragilidades. Não os abjuro – não posso. Não contemplo a possibilidade de instruir a não ser a minha própria ignorância nos assuntos em que a ignorância subjaz, ou o meu conhecimento nos assuntos onde o conhecimento espera benfeitorias. Não faço julgamentos de intenções. Não tenho autoridade para excluir ninguém do espaço que dizem ocupar, mesmo que coincida com o meu. Não componho libelos acusatórios porque não tenho estatuto à altura. Desprezo os pedidos para terçar os libelos acusatórios contra os que outros querem arremessar para a apostasia. Mas não me apanham a determinar excomunhões.
Posso lamentar muitos desvarios, exibições de mediania em preparos sumptuosos. Posso lamentar os beócios. Posso repudiar as solenes proclamações que são a negação de si mesmas. Posso verberar (mas só internamente) os gurus que em mim causam aflição. Posso desconsiderar as muletas dos poderosos e ainda mais os poderosos. Posso rir-me desalmadamente das manifestações de estultícia. Posso agrupar num canto reservado do pedestal das pessoais irritações quem comete a proeza de a esse altar ser entronizado. Posso ficar boquiaberto com tanto despautério, tanta mentira disfarçada de ignorância e o contrário. Mas não me apanham a determinar excomunhões.
Encontro muitas pedras semeadas no caminho. Desespero com a maldade preconcebida. Aflige-me tanta boçalidade, a sobremesa da desconfiança congénita. Repugnam-me os filisteus que se embebem em avareza. Fecho os olhos à violência gratuita, para a ela não ter de reagir na mesma divisa. Conto os atentados à gramática, sobretudo de mui erudita gente que não se cansa de ostentar as comendas da erudição que em si mesmos pespegaram. Bebo para esquecer que sou pessimista antropológico. Mas não me apanham a determinar excomunhões.
Adio os adiamentos só para chegar ao apeadeiro adiante e adiar novo adiamento – só porque apetece. Ajudo quem me apetece ajudar, mesmo sabendo que o ajudado não está na escala inferior das necessidades. Fujo das convenções por me soarem a falsidades irremediáveis (e para não ser cúmplice do jogo dos fingimentos em que se entretece o xadrez social). Enfraqueço propositadamente no perene braço-de-ferro com as divindades que aplanam a risível faceta da humanidade. Sou inventário de um magro pecúlio, o suficiente para prevenir sobressaltos. Sei que me assaltam os pesadelos tonitruantes que são a fotocópia do mundo à minha volta. Mas não me apanham a determinar excomunhões. 

27.5.19

Lágrimas lilases (short stories #118)


Dandy Warhols, “Shakin’”, in https://www.youtube.com/watch?v=R-5UxSj1T6I
          Ainda vais a tempo. A cortina que desce sobre o dia é o presságio de um encantamento. Há uma litania silenciosa que percorre as avenidas desertas, como se as estivesse a atapetar com um módico de felicidade. Vais a tempo: da tua quitação. Contempla o diadema da fala em todas as suas bissetrizes. Verbos no lugar certo. Substantivos sopesados. Adjetivos sem abundância. Compõe com os teus dedos os cabelos que sobem à maré. Atravessa o Rubicão que houver para atravessar, sem medo de entroncamentos. Quem pode dizer que nunca se desafiou no lúgubre lugar de uma interior peregrinação? Não estranhes que um rio de lágrimas inunde o olhar. E que ele se embacie. E não estranhes as coisas que podes considerar estranhas quando com elas tens aprendiz trato. Tu sabes o que é ser cosmopolita; alarga o conceito, deixa-o saltar as fronteiras da geografia e da identidade: aplica-o à aprendizagem das coisas desconhecidas. Saberás que esse desassombro enxuga as lágrimas que houverem sido vertidas. Ficarão lilases, depois de enxutas. Ficarás entregue a interrogações sobre o porquê de se terem transformado num borrão lilás as lágrimas que destinaste à sequidão. Não interrompas o que te pede o palco principal. Deixa essas interrogações para memória futura. Sem que a distração te distraia, alcança o verossímil método heurístico. Colhe as pétalas que se desprendem das flores demandadas. Dispõe-nas ao acaso no parapeito da janela sobranceira ao mar. E espera que o vento as leve: serão as pétalas a perfumar o vento insubmisso, tornando-o semelhante à madrigálica essência que se esconde na tua mais profunda medula. Das lágrimas lilases ficará apenas uma breve memória, um leve sabor na boca saciada. A quietude que aplana o chão por onde segues é o tempero que te precede. Os dias voltarão a ser donativos. Na mirífica paisagem desalfandegada pelas tuas mãos artífices, saberás que estrofes quadram com as imagens decantadas pelo olhar. O parapeito da janela sobranceira ao mar já não guarda as pétalas despojadas. Sobras tu, na tua incalculável plenitude. E a memória das lágrimas lilases.  

24.5.19

Cartas renhidas


Cage the Elephant, “House of Glass”, in https://www.youtube.com/watch?v=B1ZYRfK2v3E
#1 – Estes são os cromossomas da perenidade. Não sabemos do seu paradeiro. Só sabemos que existem.
#2 – E de que nos serve este expediente? Damo-nos por confortáveis só por saber que existe algo que seja eterno?
#1 – Para que servem as tábuas de salvação se não para isso mesmo? 
#3 – Não quero saber disso. No ocaso do tempo, perecemos. Depois disso não fica nada.
#2 – Ficam as memórias de nós. Alguém há de ser delas tutor.
#3 – Não nos aproveita nada sabê-lo. Quando for virada a página desse ocaso, não sobra nada. Em nós, não vegetam essas memórias. Delas não aproveitamos nada.
#1 – Não concordo. Se assim for, os horizontes perdem espessura. É como se a existência fosse efémera e não fôssemos industriados para lidar com a efemeridade. 
#3 – O que está mal é, em vida, as pessoas fazerem a contabilidade do pós-vida. A morte é isso mesmo, um fim.
#2- Vocês têm medo da morte?
#1 – Eu não tenho. Consegui encontrar a paz comigo mesmo. Resolvi as pendências atrasadas. Hoje não me sobressalto. Não me incomodam minudências que outrora tiravam o sono. O conforto que sei em mim ao dedicar à indiferença o que me é indiferente deixa espaço para validar o que distingo como importante. Tenho a alma preparada para viver como sou. É o melhor tirocínio para a morte. Olhando-a sem perplexidade.
#3 – Eu admito o medo da morte. Tenho pouco tempo para viver, mesmo que consiga chegar a ancião. Todo o tempo de vida é sempre escasso. A morte não devia existir. Eu sei: é uma distopia, mas é assim que resolvo mal o sangue em ebulição que zela as minhas veias.
#2 – Eu não sei o que dizer sobre o assunto. Vou olhando com desconfiança para o amanhã de que o hoje é véspera. Abjuro grande parte das memórias. Não quero ficar por elas sitiado. Só que, ao terminar mais um dia, muitas vezes sinto que não o honrei. Sinto que foi um dia desperdiçado, que o podia nobilitar como ele merece – como eu poderia ser se não fosse refém das minhas fragilidades. Julgo que ainda não tive tempo para amadurecer a ideia da morte. 
#1- Este jogo de que somos meros peões não merece insubmissões. Elas são espúrias. 
#2 – Admito que sim. Mas não estou convencido do teu desprendimento, de como acolhes em teu regaço a futura morte.
#3 – O que mais me custa é a capitulação de quem assim se comporta. Não há na tua atitude (virando-se, de dedo em riste, para o #1) a desistência da vida?
#1 – Pelo contrário: é a serenidade perante a hipótese certa da morte que traz mais ânimo pela vida.
#3 – Parece uma contradição insanável...
#2 - ...A menos que estejas convencido que o desassombro da morte limpa do caminho as angústias, ficando o terreno adestrado para os misteres da vida e só para esses misteres.
#1 – É um pouco isso. 
#2 – Mas pode ter acontecido que esse autoconvencimento seja um ardil, uma cortina de sombras que ilude a lucidez. Como se tu próprio te convencesses que as coisas têmde ser assim. Não significa que elas sejamassim. 
#3 – Acompanho o teu raciocínio. Só os ingénuos é que podem desalmadamente empenhar-se no depósito futuro da morte e dizer que isso lhes empresta lastro para terem uma vida sublime.
#1 – Insinuam que estou a mentir?
#3 – Não foi o que eu disse. Podes estar convencido da bondade da morte apenas porque essa ideia te apazigua. O teu desejo sobrepôs-se ao genuíno pulsar que sentirias por dentro, não fosse o caso de a armadura com que te investiste se ter sobreposto aos medos interiores, aparentemente obliterando-os.
#1 – E mesmo que assim seja, o que importa: o que eu sinta, mesmo que insinuem que é um fingimento? Ou sondar as camadas fundas sob o fingimento e deixar-me tomar pelos pesadelos perenes?
#2 – Só tu podes responder. Quando jogamos com a honestidade interior, somos ao mesmo tempo juiz, algoz e intérprete. É um trilema, muitas vezes.
#3 – Dispenso essa esquizofrenia. Prefiro a simplicidade das coisas como elas são legadas.
#2 – Estando nesta posição intermédia entre vocês, admito que estou mais próximo de #3.
#1 – Compreendo as reservas. A minha posição não é fácil de explicar. Atenta contra os preceitos estabelecidos. Até gente religiosa (o que não é o nosso caso) admite em privado o medo da morte. Notem que não há intenção de vos converter. Somos amigos de há longa data para sabermos que o respeito mútuo é parte do nosso cimento.
#3 – Eu ia dizer: “não quero ter pessoas no meu funeral.” Mas dizê-lo seria validar aquilo que hoje nego veementemente: não quero pensar na morte porque tenho medo dela. 
#2 – As contradições não têm mal. Não somos à prova de bala no território da coerência.

23.5.19

Os campeões das falsas proezas

Shame, “The Lick” (Live at Dropout Studios), in https://www.youtube.com/watch?v=J_i1FZEHH2o
De um anúncio na televisão a uma casa de apostas desportivas: um homem fanfarrão vangloria-se pela sua destreza no basquetebol, no ténis e no hóquei no gelo. As imagens em que o pimpão assegura ser o maior da sua rua em cada um daqueles desportos são intercaladas por imagens que o mostram em risíveis figuras. Percebe-se a dissonância cognitiva: o estarola tem de si uma imagem que não quadra com a proverbial inépcia para os desportos. É tão maior o abismo quanta a diferença entre a jactância do patusco e a sua manifesta falta de jeito para cada um daqueles desportos. Se tivesse noção de si, antes ficasse em casa resguardado das risíveis figuras que ostenta com inútil galhardia.
À lembrança vêm outros estroinas que, sedentos de palco e de serem o centro do palco onde os holofotes estão centrados, convocam as atenções da audiência que granjeiam. Ele são as proezas sexuais, as comezainas boçais, bebedeiras olímpicas, uma qualquer situação que roça a radicalidade, como acontece com aqueles episódios narrados em que pouco falta para o narrador reivindicar inscrição no livro de recordes: eles são os maiores em alguma coisa e, por vezes, em várias ao mesmo tempo. Dir-se-ia, são sobre-humanos.
Tomem-se as proezas sexuais como arquétipo: quem os ouve não terá motivo para excretar inveja, a menos que não esteja seguro do seu desempenho. Escutando a verve dos imensamente capacitados para a função, fica-se com a impressão de que estão dois degraus acima do comum dos mortais, pergaminho assegurado pelas proezas de que se dizem capazes. Como não há forma de ser testemunha presencial (partindo de um princípio de manutenção da intimidade do ato), sobra a palavra dos predestinados. Ou se acredita, ou não.
(Há uma terceira hipótese, a meu ver mais interessante: destina-se semelhante eloquência à indiferença. Assim como assim, o sexo é pessoal e intransmissível. Sempre me causou espécie aqueles patuscos que se excitam com as putativas proezas de outros, nomeadamente de famosos, como se eles próprios, do púlpito da sua excitação intelectual, a pudessem transfigurar em excitação sensorial. Lamentavelmente, não conseguem tirar partido do êxtase de quem se diz ser autor dessas proezas. Pois o sexo é pessoal e intransmissível.)
Haveria maneira de aplicar uma prova dos nove a estes fanfarrões. Chamar a depor as (dizem eles) donzelas que constituem o seu privativo e numeroso exército de conquistas. Para que elas de sua justiça pudessem dizer, desabonando-os por terem sido vítimas do mau desempenho de quem protesta ser um ás no sexo. Pois há certas coisas na vida em que a distinção não precisa de ser alardeada, sob pena de se desconfiar que a verdade reside nos antípodas das ostensivas palavras que reclamam créditos afinal infundamentados.
Diga-se destes farsolas o mesmo que se diz do inefável artista que se julga um ás no basquetebol, no ténis e no hóquei no gelo: são vítimas do seu mau julgamento interno. Em vez de provocarem admiração em quem a querem provocar, são pobres personagens ao serviço do escarnecimento dos outros. O pior (para eles), é que nem disso dão conta – como não dão conta da sua proverbial inépcia para o domínio em que se julgam campeões. São os campeões de coisa nenhuma.

22.5.19

Não se dá azeite a beber aos bárbaros (short stories #117)

Charlotte Gainsbourg, “Deadly Valentine”, in https://www.youtube.com/watch?v=LkyIVKbCfG8
          Era estranha, a noite, que deveras nunca mais anoitecia. E, todavia, as candeias estavam iluminadas, burladas pelo equívoco da luz. Via-se pelos pássaros, em sua desorientação aflitiva – o seu relógio interno em descompasso com o logro da noite que não conseguia ser noite. Alguns esbarravam fragorosamente contra as árvores, como se a luminosidade, todavia desmaiada, os cegasse. Havia mais gente na rua. Suportavam o mesmo efeito dos pássaros, ou era gente desabituada de olhar para um relógio. A compasso da insólita noite, estranhamente suavam em bica. Perguntavam-se o que motivava esta raridade. Não havia notícias de um eclipse na proximidade destes dias. As pessoas que andavam na rua estavam sobressaltadas e, ao mesmo tempo, extasiadas. Não era todos os dias que era dia de noite. E não sabiam se o fenómeno tinha repetição no dia seguinte. Arrastaram-se compulsivamente pela noite-feita-dia fora. Conversavam umas com as outras, não se conhecendo de lugar algum. Só ficavam lívidas com a razia na passarada. Depois de acertarem em cheio nas árvores, os pássaros ficavam imóveis no chão. Algumas pessoas chegavam perto dos pássaros. Queriam saber se estavam inanimados ou mesmo mortos. Não se confirmavam os piores temores. (Não que houvesse muitas pessoas genuinamente preocupadas com um possível genocídio de aves ditado pelo fenómeno em curso.) Concluíram que os pássaros, fora do ambiente natural e com o relógio interno desacertado, preferiam hibernar. E hibernaram até a “ordem natural das coisas” ser reposta. Os viandantes que resistiam à hora tardia, sem o menor assomo de sono, estavam à espera da manhã que viesse restituir a “ordem natural das coisas” – a luminosidade incensada pelo sol que haveria de despontar à hora fixada nos almanaques. E se o sol não se levantasse? – começou-se a ouvir, em surdina, em perplexidade antecipada, talvez extemporânea. Não se confirmou o apocalipse. À hora marcada, os primeiros raios de sol decretaram a aurora. E os resistentes começaram a bolçar a mistura de bebidas alcoólicas que tinham ingerido durante a noite que nunca fora tão diurna. Até descobrirem, pela análise das amostras enviadas para laboratório, que não é bom conselheiro beber azeite da almotolia. 

21.5.19

Fenomenologia das metáforas


Radiohead, “Ceremony”, in https://www.youtube.com/watch?v=cedNya7e8Uc
O que se diz numa metáfora? Palavras intermediadas para por elas dizer outra coisa. Ou de outra coisa cerzir nas palavras em forma de metáfora um caminho diferente para o dizer. O que diz uma metáfora?
As metáforas são um adorno. Podem servir para reforçar uma ideia, usando os termos comparativos para dar ênfase à ideia central. Às vezes, fica mais fácil explicar o que se pretende explicar se não forem usadas as palavras diretas. Ou reforçá-las com indiretas palavras, o conteúdo de uma metáfora, para emprestar vivacidade ao argumentado, fazendo crescer a sua persuasão.
Outras vezes, o recurso à metáfora é uma vaidade estilística. De vaidade se trata, porque se socorre da criatividade para alcançar as palavras que emprestam cor à metáfora. Não está ao alcance de qualquer um. Nestes preparos, a metáfora é como se fosse arrogantemente esbofeteada no rosto do recetor, para que se faça constar, junto da sua pessoa, que o autor de metáfora tão sibilina é um espírito superior e vive ungido por uma inspiração rara. 
As metáforas podem ser um ardil para engrossar um argumento com prosápia. É nos casos em que se somam metáforas atrás de metáforas, e o autor constantemente de atalaia à imaginação para as capturar quando elas assomam ao pensamento. De tantas metáforas serem usadas, o texto fica quase vazio. Mais parece um concurso de metáforas, deixando o essencial contaminado pelo acessório. Já fui testemunha de um palimpsesto de metáforas: metáforas que germinam de metáforas, numa cascada de metáforas que, a páginas tantas, impede a lucidez sobre a metáfora inicial e as que se lhe seguiram – e sobre o fio condutor entre a primeira metáfora e a que lhe sucedeu como epílogo.
Aa metáforas são como quadros pintados pelo meio das palavras. E por meio de palavras. Acentuam a imagem que desfila no horizonte mental do recetor. Encavalitam-se na realidade que se presta à metáfora, como se ela passasse a ser composta por duas camadas: a que interage com as palavras que a descrevem faticamente; e as que pertencem à metáfora, que se acrescentam ao seu lastro inicial. 
As metáforas deviam obedecer a um princípio geral de sobriedade. Para prevenir que um recurso estimável seja banalizado e perca utilidade. A escrita não é um concurso de domadores de metáforas. É o resto.

20.5.19

Não publicado


Republica, “Ready to Go”, in https://www.youtube.com/watch?v=JgffRW1fKDk
Mostra-me a matemática imperscrutável. Os fundos marinhos em aquários azulados. A chuva persistente e como não adianta molhar o chão que já está molhado. Mostra-me o lugar incindível onde o todo se aquartela. As matrizes que ecoam as palavras quiméricas e como somos enfeitiçados pela identidade forjada. O vento itinerante, o que alberga nos seus interstícios. Mostra-me a gramática reinventada por fora das convenções (a segunda palavra da frase é que leva maiúscula; as vírgulas foram extintas, assim como os parágrafos; os pontos de exclamação, precedidos por um verbo; etc.).
Mostra-me os dedos que se articulam com a fala, enquanto a fala organiza um pensamento inédito. Mostra-me as confabulações etéreas que sublimam o verbo adiado. Os vestígios de um eco. O sussurro da maresia. O colo em combustão à espera de mãos e de uma boca. A cartografia onde se desenha o desejo. Uma representação das feridas que procuram uma cicatriz. A matemática imperscrutável, outra vez. A teimosia desfraldada no convés onde despojadas jazem palavras irrelevantes dos outros. O veludo a que se abraçam os corpos nus. O tirocínio das almas – mostra-me isso e o demais que anotes em espera. 
Mostra-me as páginas anoitecidas. Os cantos patibulares onde se agigantam os vultos adormecidos. Mostra-me as rugas dos teus lábios, que a minha boca não se demora em seu saciar. Mostra-me: as velas hasteadas no dorso da manhã, nas imorredoiras luzes que emolduram a eternidade. Mostra-me de que é feita a eternidade. A contrapartida de ti nas veias solipsistas de mim. A aprendizagem de ser. As costas pétreas que são ossatura suficiente. Mostra-me as tipografias que só sabem compor letras aformoseadas. Mostra-me: para intuir que não é a caligrafia que importa. E mostra-me o dédalo de onde largamos âncora na errância propositada.
Mostra-me o sibilino arquear do peito sobre as varandas vítreas. O arranjo das almas, em uníssono, como flores pendidas do telhado impecavelmente apessoado. Mostra-me como prevenir a delapidação. A usura infundamentada. Os segredos mantidos no cofre de que somos tutores únicos. Mostra-me o dobro do que sei. As orquestras de que somos maestros. A nossa cátedra, singular arquivo do mundo que aspira a ser o que somos (e jamais conseguirá). 
E mostra-me como são genética conciliação dos nossos seres as palavras tingidas a ouro que resguardamos e que pertencem à não publicação. Os segredos, imaturos ou não, por onde andamos na incansável safra.

17.5.19

Periclitante


Dead Can Dance, “ACT II: The Invocation”, in https://www.youtube.com/watch?v=wjm5o0ZxLyg
A cegonha aperaltada está de atalaia ao ninho, protegendo as crias. O ninho – e os ninhos das outras cegonhas – está empoleirado numa torre onde os cabos elétricos encontram ancoragem. A cegonha faz um exercício de equilibrismo em cima de um cabo elétrico. Um dia destes, ouvi um velhinho dizer a outro que não entendia a contingência das coisas, dando como exemplo os pássaros que aterram nos cabos elétricos sem receberem uma descarga: “se fosse connosco, morríamos esturricados.” Ou:
Por um sortilégio qualquer, o pedregulho de elevada tonelagem desafia as leis da física. Está no limite do precipício, apenas suportado por uma aresta que o fixa ao chão, por um efeito de prestidigitação. Dir-se-ia: se baixa um vento tempestuoso, o pedregulho não aguenta e acaba aos trambolhões, ladeira abaixo. Faz lembrar o capitalista avarento que, possuído por uma súbita necessidade de compor a imagem, se dedica ao mecenato sabendo que o museu apoiado está para acabar. Ou:
A angústia derruía-a por dentro. Não sabia o que dizer. Tinha conhecimento da ignomínia do companheiro. Não queria falar no assunto – temia que ele reagisse de maneira desabrida, numa improvável inversão de papeis em que só uma mente conturbada e empenhada à liberdade do outro (mas não à sua) podia incorrer. Ao mesmo tempo, estava cansada de muito calar. Sentia-se refém de um dilema. Assim como o mar hesitante que, no epílogo da maré alta, quase leva consigo o cadáver de uma lagosta que jaz na areia humedecida pela chuva miudinha. Ou:
O cientista parece o novelo de lã que, atirado ao cesto de basquetebol, fica cai-que-não-cai até se imobilizar num equilíbrio frágil em cima do aro. O cientista está dividido entre duas teorias. As duas têm prós e contras. Não consegue medir a teoria que se distingue pelo maior saldo líquido de prós. E mesmo que o exercício fosse para a frente, não estava convencido do método: um punhado de prós de uma teoria pode compensar o numeroso exército de prós da outra teoria. É o dilema que coteja qualidade com quantidade. O cientista não consegue decidir. Até que um rapaz, o mais alto de todos, conseguiu repatriar o novelo de lã do aro que encima da tabela de basquetebol. Ou:
O jardineiro encontrou uma carteira perdida. Lá dentro, trezentos e cinquenta euros em notas. O jardineiro está convencido que ninguém o viu a recolher a carteira. Apetece-lhe meter o dinheiro ao bolso e entregar a carteira para o inventário dos perdidos e achados, anonimamente. Os trezentos e cinquenta euros vinham a calhar, logo no mês em que é preciso comprar os livros escolares dos dois filhos. Mas o jardineiro não tem a certeza de que não houvesse vivalma nas imediações. Pode ter havido alguém a espiá-lo no momento em que descobriu a carteira recheada de dinheiro. Entre o despedimento por ação indevida e um rédito extra, sente-se dividido. Fica mais de meia hora a varrer o mesmo lugar, olhando e olhando para a carteira, indeciso. A mesma indecisão do gato que não sabe se há de atravessar a rua por onde estão sempre a passar automóveis e camiões e motas e pessoas.

16.5.19

Ainda vais a tempo (short stories #116)


Siouxsie and the Banshees, “Dear Prudence” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=R77sby-ntgw
          Soluçam os adjetivos que se enxameiam nas alocuções. Sabes que há um excesso de adjetivos quando encontras um adjetivo a afear a frase. Perguntam: se os adjetivos existem, não é para serem usados? Talvez seja uma questão de medida. Saber o que constitui exagero. Não há bússola afinada para esse efeito. Os gongóricos torneiam as orações, embebendo-as em farta adjetivação. Um adjetivo vem sempre em reforço do sentido da frase – argumentam. Não sabes como proceder. Parece-te que um texto despojado de adjetivos fica amputado, herdeiro de um minimalismo em que não te revês. Não queres que o texto, de tão despido de ornamentos, fique refém da hermenêutica do leitor. Não acreditas que a liberdade criativa seja invertida. Podes experimentar. Um texto minimalista. Com orações curtas. E privilégio do conteúdo, no desprendimento da decoração, uma frivolidade. Podes ecoar a mensagem através do tempo. Ainda vais a tempo. Como para tudo: o tempo não é uma ferropeia que adeja sobre as pessoas, como se corresse vorazmente para a foz e não se pudesse travar a sua marcha. O tempo tem este tempero. Mas não possui faculdades para a capitulação das pessoas quando as empreitadas parecem delimitadas por um tempo exíguo. Podes experimentar. O texto minimalista. Tens tempo. Ainda vais a tempo. De dizer (por exemplo) que as paredes que experimentas parecem frias como o sangue lívido. (Um adjetivo. Não tem mal. As grilhetas não são categorias operativas. O minimalismo do texto transige um ou outro adjetivo, meticulosamente espalhado pelo texto fora.) As mãos suadas tergiversam. Tremem. Não sabes o que aconteceu. As paredes parecem frias. Mas delas escorre suor. Não sabes de quem é (o suor). Não importa. Sabes-te confrontado pelas paredes que terçam os limites do labirinto. Ainda não decidiste se queres sair do labirinto. Se calhar, o labirinto é a metáfora do lugar em que vives. Por “lugar” referes o planeta. Passas o tempo a limpar o suor das paredes. O teu sangue está em ebulição. Os paradoxos levitam sobre o rosto. A manhã que desponta cuidará de desmentir o pesadelo? (Se é que se trata de um pesadelo.)

15.5.19

E se meteres mais uma linha no diálogo?


The Clash, “Clampdown”, in https://www.youtube.com/watch?v=psB0cidB5bg
- Não era nada que o anoitecer não amaciasse. Talvez uma quimera por descobrir, uma árvore frondosa que escondia o seu esplendor no espelho baço da noite.
- Sem as consumições, ou se as descontasses, dir-se-ia ser um retrato igual ao do mar quando é um espelho perfeitamente horizontal, sem o menor descuido de nível. Uma aproximação à perfeição.
- Que se nos pode acometer, neste refúgio onde as almas transparecem?
- Não tenho ideia de nada. Não será mau conselho estar de atalaia. Os contratempos não enviam pré-aviso. 
- Eu julgo que podemos estar precatados aqui, neste castelo sobranceiro que alcança o resto. Julgo que somos à prova de bala quando nos querem furtar o juízo com espadas desferidas traiçoeiramente no dorso. Afastamos as mãos asfixiantes com um sopro de indiferença.
- E se a vontade não for garantia sublime?
- A vontade é a mais alta norma por que se rege o comportamento.
- Que dirias em teu favor?
- Precisava de o fazer?
- Imagina que sim. Um desafio. Um exercício intelectual.
- Que diria?!... Diria que sou desalmadamente eu. O que talvez não seja cartão de visita recomendável. Mas não é de supor que o que se diga em nosso favor seja com o propósito de seduzir os outros. É assim que vejo o desafio: ofereço-me em minha defesa como perímetro onde se delimita a consciência. O resto, não importa. Não quero saber de opróbrios, de maus julgamentos, de rumores que são apenas rumores – e, portanto, infundamentados –, de esperas sem tempo para o serem. Não teria muito para dizer em meu favor, em todo o caso.
- De mim, caso fosse confrontado, diria ser entrega absoluta às causas, honestidade desarmante, até franqueza excruciante (que se joga contra mim). Voluntarismo que me é prejudicial. Consequencialismo omitido. Algum hedonismo, irresoluto. Em vez da implacável espada sobre oponentes que surjam em liça, o desinteresse, a irrelevância a que os voto. E amor sem freios, acima de tudo. 
- E tens inimigos?
- Só atribuis importância a esse excerto da narrativa em minha defesa? Porquê?
- Talvez por não haver inimigos a povoar a minha existência. Não é muito diferente da tua posição, no fim de contas.
- Voltamos à página precedente. Melhor: viramos a página. Avançamos uma resma de páginas, ao acaso. Veremos o que nos sai em sorte: seremos penhores das palavras todas que dizemos? Não ficarão outras tantas, ou se não tantas, pelo menos mais contundentes, por dizer?
- É possível. Não há ninguém que consiga dizer tudo o que intui. Há palavras que ficam resguardadas. Outras que, estando-o durante longa temporada, são resgatadas porque a vontade assim o determinou, ou porque a esse favor se jogaram as circunstâncias. Não há nada de organizado, não há nenhum jogo predeterminado, que seja o critério. Acontece. Ao acaso.
- Não há palavras depositadas num cofre? Palavras de que temos medo? Medo, porque se podem jogar contra nós? Não as gerimos, não somos delas autênticos estrategas, ajuizando o que delas fazer? 
- Nada é assim tão cirúrgico. E, depois, como sabes se as palavras que entesouraste são o aval que por ti se empenha? 
- Ah, a verdade sobrepõe-se no fim do jogo!
- A verdade! E o que é a verdade? Consideras a hipótese de a objetivar? Como sabes? É um instinto? Uma qualquer decisão que se congemina na parcialidade dos corredores por onde se entretece o pensamento? Como sabes, objetivamente, acerca da objetividade da verdade? Já para não te interrogar sobre o lugar onde fixas a meta: como sabes que o jogo chegou ao fim e só depois avalizas as palavras que depuram a verdade?
- Nessa altura, admito que é a subjetividade que prevalece. Considero que a vontade é o melhor critério: será verdade aquilo que internamente considerar digno de o ser. 
- Jogas a tua verdade, as palavras que a cristalizam, contra a verdade dos outros? É um xadrez em se que terçam verdades, até vingar a que disser “xeque-mate”?
- Tu sabes que a pertença ao mundo, a existência, ela mesma, é um espelho da concorrência. Ditado pelas avulsas contingências.
- Por isso prefiro a noite. O sortilégio que se esconde nas densas camadas de escuridão onde se acotovelam os vultos que não têm rosto. Nessa dimensão imaterial, não medram vontades alinhavadas com a sede de as ostentar. Pois é disso que se trata: a verdade, essa sofreguidão, é um exibicionismo onde campeiam as almas ansiosas por afirmação de superioridade. Não é por superioridade; é por afirmação de superioridade. Uma maldição, isso de querer, e ter de provar, ser melhor do que outros.
- Não te interessas pela verdade?
- Só me interesso pelo que conheço. E tenho apenas um vago conhecimento de um punhado de coisas. Nenhuma delas é a verdade. 
- Não admites que este é um mundo selvaticamente competitivo, que a concorrência nos leva a querer provar que somos melhores do que alguém que é a bitola?
- Não. Rejeito-o totalmente. Só tenho de dar provas a mim mesmo. Essas provas não são esbofeteadas no rosto de ninguém. 
- E se meteres mais uma linha no diálogo?
- Prefiro o silêncio. Não há verdade que o desminta.

14.5.19

Satélite


Rhye, “Needed”, in https://www.youtube.com/watch?v=n8woH4GxUMk
Deliberadamente: contava as luas inteiras e não sabia da aritmética restante. Podiam, algures, os duendes disfarçados fingir a sua própria condição. Seriam satélites de alguém, mas não sabiam de quem. E assim permaneciam, no limbo, sem direito a lágrimas, enquanto a noite se demorava no alpendre da euforia.
Da muita gente que atravessava a rua, ninguém sabia quantos eram duendes disfarçados. As almas silenciosas escondiam-se em vultos arredondados, a ausência de arestas propositadamente impedindo a revelação do que não convinha ser revelado. Afinal de contas, há um certo mistério quando se invoca o lado oculto da lua. De satélites deste jaez não se sabe ao certo se são recomendáveis, ou apenas uma distração que obvia o essencial.
Era deliberado, convém recordar: os olhares avulsos, uma palavra retida aqui, outra ali, como se o jogo consistisse no condensar das muitas palavras soltas apanhadas de bocas diferentes. Só para saber se o discurso da (amostra de) humanidade era inteligível. Coerente. 
Devia ser lembrado que não se podiam esperar grandes cometimentos do desafio da coerência. A coabitação de gente tão heterogénea era de saudar, mas, ao mesmo tempo, um imponderável que atrasava o exercício. Roda-se em volta de um centro, mas não se sabe do seu paradeiro; como se podem inventariar os satélites que adejam nas imediações? Como se pode saber se não somos nós os satélites, na possivelmente dolorosa ideia da nossa desimportância?
Não é fácil o constructo da identidade. O diligente apessoar não é garantia. Devíamos saber que a pele guarda um verniz que não é selo da identidade. E depois sobra um lugar-comum, pungentemente acertado como os lugares-comuns (dizem) costumam ser: é nas camadas mais fundas que se escavam sob a superfície que se encontram os rudimentos de tudo. As luas em que gravitamos são um disfarce.
As mãos procuram um salvo-conduto nas páginas avivadas. Nas palavras vigilantes. Procuram uma cor nas palavras. Querem saber se o lugar que lhes pertence é centrípeto ou é o lugar de um satélite. Não é exercício especulativo. A luz baça não é impedimento. O olhar é incisivo, não se intimida com as cortinas de fumo que podiam ser embaraço. Seja satélite ou não, o ser é o mais importante de tudo. Não importa se é ator principal ou figurante. Congemine-se a taxonomia dos papeis em sua aleatória fundamentação. 
Às vezes, os figurantes são atores principais. Sem o saberem.  

13.5.19

Senado


Maribou State, “Feel Good” (at 6 Music Live Room), in https://www.youtube.com/watch?v=ru9HgT1nGTk
- Que luzes são estas, que derruem um escudo armilar à procura de lugar? 
Oxalá soubesse. Foi a primeira frase murmurada. Mas que interesse tem saber que luz é aquela? Que interesse tem saber de onde irradia? Com que propósito foi congeminada para iluminar aquela área em particular? Ou: se o lugar estivesse votado à penumbra, que coisas diferentes podiam acontecer na medida da ausência da luz? A fonte de energia que alimenta aquela luz é limpa ou poluente? 
(E assim sucessivamente.)
Interrogações a eito. Podiam subir no inventário das interrogações, à medida que o pensamento as fermentasse. E se as interrogações forem vazias, um lago evaporado na indiferença do que acautelam? Pode ser que seja importante investigar a função daquelas luzes. Pode ser que todas as outras hipóteses arrematadas pelas interrogações anteriores (ou por outras, não aqui listadas) reúnam a relevância que os seus julgadores determinarem. Ou pode, de forma mais modesta, dar-se por assente que a luminosidade existe, que as luzes obedecem a uma certa característica que as torna distintivas. 
Não se faça uma exegese errada do enunciado: não é sugerido que as interrogações são um bálsamo da inutilidade. Não se aceite que o pensamento, insubmisso ou apenas controverso, cave sucessivas camadas, enovelando-se em hereditárias interrogações, e que toda essa atividade telúrica seja destituída de utilidade. Não é de mais evocar a sensibilidade das interrogações e de como o método inquisitivo é preferível ao desenvencilhar de respostas categóricas a todas as interrogações formuladas.
Pode o pensamento descair para a especulação. Ou, apenas, nele medrar a incorrigível provocação que recusa respostas e, em vez delas, alimenta o caudal abundante onde se soerguem interrogações, umas atrás das outras. E por cada ensaio de resposta, hasteia-se imediatamente uma interrogação que a atropela. Por dentro do pensamento sobram múltiplos eus que são os atores que sobem a palco, esgrimindo as hipóteses que se oferecem a cada interrogação no pressuposto de não acrescentarem um ponto final quando a frase se encerra. Todos esses eus são senadores do eu primacial, de onde emanam os restantes eus. São os senadores que se sentam no chão, em palco, e são tribunícios num concurso de interrogações.
A luz pode ser axial. Ou não. Não se saberá, porque o império das interrogações nega validade às repostas, aos categóricos alindados na pueril estatuária que irmana os beócios e os eruditos. Pois o senado pode apurar que a luz é, afinal, uma treva disfarçada. Nunca o fará com ponto final no remate da frase. 
O ponto de interrogação é o único suserano admitido no senado.

10.5.19

Medo de si


Sigur Rós, “Svefn-n-englar”, in https://www.youtube.com/watch?v=8L64BcCRDAE
- São estes precipícios intangíveis que arranco dentro de mim que me metem medo. Vejo sombras e nas sombras encontro a cor que não consigo desenhar no arco-íris. Vejo os vultos que noutros são fermento do medo e em mim causam admiração. Vejo a noite como fac-simile do dia, não lhes encontro as diferenças, por mais que os lugares-comuns ilustrem a antinomia, por mais que as pessoas digam que a ausência de luz marca a noite em contraste com o dia. Julgo os sobressaltos como adrenalina que preciso para emprestar sentido aos sentidos. Não sei do paradeiro do arrependimento. Dos arrependimentos. Quase sempre dou comigo em roda livre, ao sabor dos ventos dominantes, preparado para investir no sentido contrário ao dos ventos dominantes – por mais que seja empreitada dolorosa e improfícua, pelo menos quando estou na casa da partida. Não consigo ver-me em discurso direto: se há medo que tenho, é de ser uma mera paráfrase dos outros. Não me escondo em metáforas assisadas. Prefiro as palavras contundentes, por dramáticas que sejam, e depois vestir-me em minhas cicatrizes para encontrar o paradeiro da redenção. Logo a seguir, interrogo-me sobre a serventia da redenção. Vejo tudo como se tivesse sido atirado vinagre para os olhos. E, todavia, reivindico a meu favor uma clarividência insuspeita. Talvez sejam estes paradoxos o maior oceano que a geografia dos sentidos industria. Às vezes, incomoda-me; outras vezes (a maior parte delas), sento-me na poltrona e, em pose majestática, extasio-me com o efeito, como acontece com os máximos deleites. A improbabilidade do meu nome assoma à superfície enquanto bebo o vinho gourmetde um cálice esbotenado. A língua áspera: é a minha. E, contudo, aprendo com o que desaprendi no estertor que é a alavanca diametral do pavor domesticado. Se soubesse do teor dos segredos, perdiam interesse. Antecipo o ontem que deixei de ter lembrança. Resgato desse passado embaciado um sinédrio onde campeia o silêncio e a ausência. Um promontório imponente oferece-se ao olhar siderado. Não são as gentes comezinhas, em seu rame-rame diário, que assustam. Sou eu, penhor de mim mesmo, cautela dos arrependimentos adiados, vulto meão no meio da graciosidade inútil, argonauta sem paradeiro estabelecido, insubmisso – sou eu, a chave-mestra do meu próprio medo.

9.5.19

Circunvalação (short stories #115)


Nine Inch Nails, “Dead Souls”, in https://www.youtube.com/watch?v=WeAiRM1CVUY
          O grito acidulado das máquinas que fraturam o aço, ao passar pela metalurgia. O incessante passar de automóveis e autocarros e motorizadas e camiões de transporte, apenas interrompido pelo semáforo que caiu para vermelho. A velhinha que disfarça a solidão com uma conversa consigo mesma na paragem do autocarro, à espera que alguém lhe dê troco. O avião surpreendentemente baixo na aproximação ao aeroporto, largando um ruído tonitruante. A estrada remendada por onde terão passado sabe-se lá quantos milhões de veículos, sabe-se lá conduzidos e transportando quantos milhões de pessoas, com sabe-se lá quantos milhares de milhões de estórias, umas interessantes e a maioria desinteressantes. O taxista que dorme recostado no banco do passageiro, enquanto o rádio debita uma vozearia vaga típica dos programas matinais das estações de rádio. O gato poltrão à janela, desinteressado do bulício lá fora, apenas desejoso de uma nesga de sol, que a prometida primavera está em demora e os dias têm estado teimosamente plúmbeos. Ao longe, uma nuvem mais carregada, pressagiando um aguaceiro. As imagens de cores garridas que preenchem o ecrã de um imenso cartaz publicitário, não estejam as pessoas distraídas e não se apercebam da bondade da mensagem. Uma parede pichada com dísticos saídos do alfabeto privativo de quem a vandalizou. O vagabundo andrajoso que erra pela berma da estrada agarrado a um pacote de vinho de um litro, balbuciando palavras impercetíveis no dorso da sua aparente loucura. O inspetor dos autocarros, em pose solene, a multar um adolescente estroina apanhado em contravenção. O corretor da bolsa em dia de folga, furtivamente dentro do centro comercial “à civil”, para não ser reconhecido (que só o reconhecem quando enverga a fatiota obrigatória dos corretores de bolsa). Uma ambulância apressada, exibindo a pressa com a sirene em gritos estridentes, irrompendo entre o trânsito. O comboio no mecânico percutir dos carris, os rodados soltando faíscas quando entram em atrito com os carris. E o grito acidulado das máquinas que fraturam o aço, ao passar pela metalurgia. Circunvalação: em adiantado estado de acabamento.

8.5.19

Sem saber as medidas do carrossel


Moderat, “Bad Kingdom” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=1BUJX9vESQY
Dizias: “follow-up. É preciso fazer um follow-up”. E eu, sitiado por um pesadelo qualquer que não sabia inventariar, convencido do meu torpor, fiz de conta que não ouvi. Já chegam as vezes em que sou peão dos idiomas e tenho a impressão de que se jogam verbos e substantivos em línguas diferentes na mesma oração. 
Parecia uma montanha russa. Não exageremos: um carrossel, que a vertigem não era tanta assim. Olhava para o teto. Fixava um ponto, um parafuso saliente ou a embocadura de um alicerce. Depois fechava os olhos. Era preciso sentir a velocidade do carrossel, sentindo-a de olhos fechados. Parecia mais veloz, o carrossel. Por isso, quando abria os olhos, logo a seguir voltava a fechá-los. O vento que esbarrava no rosto rimava com os suaves declives que o carrossel ensaiava, volta após volta. Absorto, nem tomava atenção na musiqueta que acompanhava a viagem – a sobreposição de musiquetas que eram donas do lugar, vindas de outras atrações. E as frases “follow-up. É preciso fazer um follow-up” eram a paisagem que desfilava diante dos olhos ainda fechados.
A viagem do carrossel parecia interminável. E logo eu, que nunca admirei carrosséis. Não podia sair em andamento. Não era a velocidade que o impedia: o rapaz que recolhia as fichas que davam acesso ao carrossel entrava e saía com destreza, e tenho a certeza de que a minha destreza não ficava atrás – insisto: a velocidade do carrossel não intimidava. Não saí do carrossel. De repente, fui assaltado pela ideia de que o rapaz que recolhia as fichas que davam acesso ao carrossel e a senhora gorda que estava na receção do mesmo a trocar fichas por dinheiro podiam ficar desiludidos com a minha saída prematura. Não sei onde fui arranjar a ideia. Se não estivesse anestesiado por um sonho paradoxal (por não estar a dormir), a lucidez ter-me-ia sussurrado que a senhora e o rapaz não queriam saber da minha saída prematura nem iam perguntar, como acontece quando não se termina a refeição no restaurante, se não tinha gostado do carrossel.
Aquelas palavras continuavam a persistir no horizonte do pensamento: “follow-up. É preciso fazer um follow-up”. Não tinha a menor ideia do que dizias precisar de continuação. Esperava que fosse algo que valesse a pena dar continuidade. Muitas vezes, um ato extingue-se na sua consumação. Não fica à espera de repetição. A menos que o juízo seja favorável à repetição. É que, mesmo quando se repete, já é um ato diferente.
Saí do carrossel, no tempo devido. Tinha outra ficha na mão. Desaproveitei-a. Não repeti a viagem. Assim como assim, nunca percebi o encanto dos carrosséis.

7.5.19

Mural


The Cure, “Pictures of You”, in https://www.youtube.com/watch?v=UmFFTkjs-O0
Uma prenda de aniversário: um mural, com trinta metros de comprimento e vinte metros de largura, que aproveitava a parede de uma fábrica abandonada. Não chegou a saber quem remeteu o presente. Vinha com uma nota misteriosamente anónima, com uma frase em letra de forma, para não ser revelada a identidade do donatário (ou do testa-de-ferro dos donatários, caso fosse o caso): 
“Agora tens um mural inteiro para dizer, ou pintar, o que te vai na alma.”
Não sabia o que pensar. Nunca passou pela ideia receber semelhante prenda. Fora tamanha a surpresa que ainda não discernira se ia tirar partido da prenda. Podia ser que aproveitasse o mural para ir escrevendo uns pensamentos esparsos, daqueles pensamentos que se soerguem do nada e, quase sempre, pouco mais que nada querem dizer. Podia ser que ensaiasse uns desenhos, ele que pouco mais tinha do que jeito para gatafunhar. Não sabia.
Deixou o mural intacto por um mês inteiro. Todavia, não houve um só dia que não tivesse ficado diante do mural, a apreciá-lo nas suas formas e na convexidade da decadência que era própria do lugar – um complexo de fábricas abandonadas, os edifícios perdendo a sua utilidade à medida que as ruínas se transformavam em cimento putrefato, num amontoado onde se misturava, indiferenciadamente, vestígios das paredes e dos telhados com lixo que se amontoa sempre nos lugares abandonados. Ficava de olhos fechados, tateando as porosidades da parede, imaginando-a decantada antes de começar a receber as suas intervenções. Durante um mês inteiro, não quis inaugurar o mural. Não podia defraudar os donatários com a primeira leviandade que viesse à cabeça.
Um certo dia, tempo depois de ter passado um mês sobre o aniversário, contratou um amigo que trabalhava na construção civil. Pediu para raspar as porosidades que afeavam a parede e para a pintar de preto. Esse seria o pano de fundo para o mural. Sabia que não era um pano de fundo definitivo. Gostava de encarar as coisas à volta da vida como não perenes. Um dia destes, voltaria a telefonar ao amigo da construção civil e pedir-lhe-ia para dar outra demão na parede, de outra cor qualquer, a decidir em cima do joelho. 
No dia da intervenção inicial no mural, decidira inscrever, em letra aformoseada (caso conseguisse, pois tinha algumas dúvidas sobre a estética da sua caligrafia), um breve poema. Só não sabia se era um poema de poeta consagrado, um poema fétiche, ou um poema da sua modesta lavra. Demorou mais cinco dias, a contar da primeira demão a negro sobre o mural, para tomar uma decisão. O mural teria de ser inaugurado com as suas próprias palavras, sem que isso fosse uma manifestação de exibicionismo, ou representasse falta de consideração pelos poetas que considerava. As estrofes, mais dedicadas e, elas sim, sem dúvida, penhoras de poesia, viriam a seguir. E dedicou-se a uma justificação para consumo interno – como se estivesse a pedir desculpa aos poetas cardinais por não serem suas as palavras inauguratórias do mural: aquele era o seu mural; as palavras peregrinas tinham de ser suas; elas seriam o pano de fundo, dentro do pano de fundo pintado a negro, para as posteriores palavras dos outros que fossem a fotografia de um estado de espírito momentâneo, ou a homenagem que o dia exigisse a um poeta.
Faltava decidir se as palavras suas seriam resgatadas ao espólio existente ou se o mural exigia palavras neófitas. Entusiasmado, decidiu-se pela segunda possibilidade. A um canto – o canto superior direito do mural – afixou estas palavras: 
“Não dou à noite/se não o coração aberto/o febril êxtase da transgressão/a redenção sem culpa.//Não me dou à noite/notário de mim mesmo/nas margens da loucura que apetece/e num botão de rosa/sou a constelação aberta à luz solar.”

6.5.19

O relógio parado no fuso de Asunción, Paraguai (retrato de um anti-herói, um homem banal, o verdadeiro herói)


LCD Soundsystem, “Dance Yrself Clean” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=L_SJUJHPi5w
Tremiam as mãos. O coração, acelerado e exíguo dentro do peito. O peito, pequeno para o albergar. O suor a banhar o corpo todo (e não era por estar calor). Os sobressaltos todos alinhados no mapa diante do pensamento. Talvez fosse melhor remeter-se a uma gruta e levar uma vida monástica. Talvez fosse melhor...não sabia o que seria melhor. 
Os pés pareciam pequenos para suportar tanto peso do corpo. Um formigueiro era visita frequente. Era como se estivessem a espetar pequenas espadas em pontos sensíveis do corpo, um castigo qualquer. Sabia: se houvesse um tribunal para castigos como punição de contratempos da consciência, não se livrava do banco dos réus e de uma cominação talvez parecida com o formigueiro que o atormentava. Se lhe dissessem que somos todos de igualha semelhante e que ninguém escapava ao libelo acusatório dos beatos do formigueiro, não lhe interessava. As suas dores eram suas, não eram as dores dos outros. Não tinha por hábito copiar os outros, nem muito menos justificar-se através dos atos, mundanos, dos outros. 
O relógio estava parado. Nem deu conta – o que era de estranhar, tão viciado no mostrador do relógio, não fosse perder a meada ao tempo. Estava parado. E, investigou, pelo fuso horário de Asunción, Paraguai. Às vezes dava jeito que o relógio estivesse parado. Se esse fosse o pretexto para suspender o tempo e, através da suspensão do tempo, as tidas por irrecusáveis tentações não conseguissem respirar. Afinal de contas, nada disso interessava. O relógio estava parado pelo fuso de Asunción, Paraguai, mas o tempo não deixou de fazer a sua roda habitual. 
Prometeu que se esqueceria de mudar a pilha do relógio. Ficaria pelo fuso de Asunción, Paraguai, até se sobrepor a angústia de não saber que horas eram. Mas nem isso estava certo. Àquela hora, os ponteiros do relógio já não quadravam com o fuso de Asunción, Paraguai. Afinal, era um anti-herói. Reformulando: a antítese de um herói. Um homem banal. Incomodou-se e logo a seguir desincomodou-se. Um homem. Banal. Lá diz o lugar-comum: de carne e osso, com sangue transferível, os ossos duros, o pensamento letárgico, um interesse relativamente fugaz pelas coisas à sua volta, porventura o epítome do mundano – e o demais, que os lugares-comuns mandam dizer. Não seria diferente de um numeroso exército desfardado que desfila à sua volta. 
Em seu proveito, uma narrativa inventada na altura (rompendo com a inércia habitual do pensamento): a antítese de um herói, o homem banal, talvez seja a representação moderna do herói. Se é que precisamos de heróis, ou sequer de modernidade. A fragilidade dos homens banais converte-os em super-homens. Sem que eles saibam. Sem que eles queiram. Mesmo que não consigam ordenar que o fuso de horário de Asunción, Paraguai, esteja sempre em sintomia com o relógio. Porque este é o tempo de paradoxos.

3.5.19

A coutada dos cangalheiros


Viagra Boys, “Slow Learner”, in https://www.youtube.com/watch?v=eQUmeJspwuc
Levo esta vida inteira (até ao dia em que escrevo) sem perceber uma tendência inexorável da espécie a que pertenço: uma pessoa morre e o resto da humanidade faz uma pausa na geografia do tempo que a manda ser guerrilheira, desconfiada, boçal, maldizente, descrente dos seus pares. Morre uma pessoa e o resto da humanidade tece-se em prantos, congemina os mais comoventes elogios. Impõe-se um epitáfio e, em tempos de epitáfio, o resto da humanidade esquece-se dos maus pergaminhos e retoma a senda do que devia ser a sua feição bondosa, o elogio da humanidade. 
Esboço uma teoria em forma de explicação: contrariando as solenes proclamações dos otimistas que ensinam a preparação para a morte, convencendo-nos que a morte não é medonha, temos medo da morte. E como temos medo da morte, homenageamos sentidamente os mortos, antecipando a nossa própria homenagem na altura em que formos nós a deixar de pertencer ao mundo dos vivos. A conduta encerra uma contradição: desfazemo-nos em elogios diante do féretro quando, em vida dele, não o fizemos. Que se saiba, o féretro já não é capaz de usar os sentidos, justamente por estar na condição em que está (féretro). Os elogios fartos são inúteis, na perspetiva da pessoa a quem são destinados. É lamentável que os elogios tenham de esperar pela morte do elogiado.
O que leva de novo à minha teoria: os epitáfios e toda a comoção que envolve a despedida da vida de alguém só têm utilidade para os remetentes, os autores dos elogios fúnebres. Será a maneira de se sentirem bem no meio da tristeza, ou do choque, que sentem por alguém que amavam, ou prezavam, ou apenas conheciam por algum modo, já não estar entre eles.
As homenagens póstumas são isso mesmo, póstumas e, como tal, extemporâneas. Chegam fora do tempo. Se fosse possível tecer uma narrativa fantasiosa, apetecia especular que o decesso, se pudesse dar uso aos sentidos que perdeu, teria legitimidade para interrogar: “por que não disseram tão belas coisas de mim enquanto fui vivo?” Parece que na morte não há sacripantas. Todas as almas são boas desde que já não estejam entre os vivos. Esta talvez seja das maiores hipocrisias da humanidade, nos seus trejeitos correntes. Da humanidade que, enquanto assim se comporta, se preenche como uma autêntica coutada de cangalheiros.