27.6.19

Quiosque (short stories #126)


Dead Combo, “Esse Olhar Que Era Só Teu” (ao vivo na RTP), in https://www.youtube.com/watch?v=ZpCOcIttnJo
          Os quiosques deixaram de vender jornais e revistas. Vendem cafés e bebidas e registam os jogos de sorte (ou azar – ou, em homenagem ao rigor, ausência de sorte) da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Têm extensões, os quiosques: esplanadas sabiamente à sombra de árvores, para os clientes se resguardarem do calor maçador de que Lisboa é testemunha no Verão. São um cais onde as pernas descansam depois de intermináveis caminhadas que palmilham as calçadas, as avenidas, os becos, os museus, os miradouros, num sobe e desce que torna a caminhada extenuante. São postos de observação para a vida que leva a cidade: os idosos, os seus principais clientes, fazendo o tempo demorar-se; os turistas que mergulham nos mapas e nos guias, para saberem onde estão e para onde vão a seguir, depois de deixarem em cima da mesa canecas de meio litro de cerveja que beberam num ápice; as pessoas que, não querendo consumir bebidas, evitam a esplanada e sentam-se nos bancos de jardim que a ladeiam; os operários que descarregam materiais de construção para o apartamento do terceiro direito que está a sofrer uma profunda reabilitação para engrossar o contingente de turismo local muito procurado pelos turistas; as pessoas que saem da livraria, especulando-se sobre o possível retrato de quem ainda se dá ao trabalho de indagar sobre as novidades editoriais; a senhora que faz a limpeza das casas de banho públicas (situadas na cave vizinha à esplanada, depois de descida uma escadaria pitoresca em forma de caracol) a comer um gelado; um casal de namorados que, noutro banco, se entrelaça de pernas e mãos e deve estar imerso em juras de amor; a faixa evocativa da manifestação do primeiro de maio que ficou perdida entre duas árvores, para lembrar que o primeiro de maio dura, pelo menos, cinquenta e dois dias; o que leva à evocação da liberdade, que começou a ser construída no largo sobranceiro à esplanada, uns metros mais abaixo, e de como não a teríamos se os manifestantes que esqueceram de retirar a faixa evocativa do primeiro de maio tivessem tomado as rédeas do poder. Ou então, a esplanada do quiosque serve apenas para uma imperial bem servida matar a sede, na exata medida dos pensamentos sem tutor que se evadem da observação do meio exterior, para não serem sitiados pelo pensamento comprometido. Os quiosques de Lisboa não merecem tamanha responsabilidade.

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