25.7.19

As montanhas foram feitas para trepar


Cocteau Twins, “Iceblink Luck”, in https://www.youtube.com/watch?v=L_Tj4bJ0VFw
Não adiantam os prantos se as contrariedades teimam em fazer parte do palco. As lágrimas não resolvem nada. Nem as contrariedades. Se têm algum fruto, as lágrimas, é o de se deitarem em cima de mais uma camada de angústia. São um fruto envenenado.
É por isso que as montanhas não podem ser olhadas como matéria preparada para um princípio geral de capitulação. São astutas, as montanhas: vistas ao longe, quando apenas se apresentam como uma imensa massa, não intimidam; quando a distância se supera e as montanhas estão mesmo ao pé, alcantiladas e pressentindo obstáculos, elas assustam. Há muita gente que desiste antes de tentar derrotar a montanha. 
(Esta formulação – “derrotar a montanha” – encerra um equívoco. Insinua-se que a montanha está contra quem a quer trepar, ou o contrário. A montanha pode ser um obstáculo quando separa o lugar onde se pretende aportar. Um obstáculo não é uma adversidade. A montanha é o caminho necessário para chegar ao lugar desejado. Ou, quando não é o caso, e a montanha é um objeto de ócio, cuidando de uma curiosidade de almas preenchidas pelo interesse, ela não é uma contrariedade. É matéria-prima que contribui para o contentamento do alpinista de circunstância.)
As montanhas foram feitas para trepar. São acidentes do terreno que obedecem ao sortilégio da trama do mundo. Por mais inclinadas que sejam, por mais árdua que seja a escalada, a montanha merce o respeito de ser ascendida. Ou de pelo menos se tentar. O próprio que empreende a ascensão não se respeita a si próprio se desistir à partida, ou se for seu o convencimento de que não será empreitada vitoriosa, a ascensão. O diálogo entre a pessoa e a montanha é uma questão não trivial. Pertence ao domínio da intimidade. Só o próprio sabe o que foi preciso tirar do corpo para subir ao marco geodésico que encima a montanha. É um esforço intransmissível. 
O marco geodésico emoldura a façanha. Os que desconfiam de si mesmos e os que arrastam os ossos pela mitomania têm de provar a proeza, fotografando-se para a posteridade na companhia do marco geodésico. Emulsionam-se, ao mesmo tempo, numa arcada do narcisismo. Ao fazê-lo, insultam a montanha que os acolheu com a sua paradoxal bondade exigente. A montanha não merece o despropósito. Não se admitem exageros, nem por defeito (a desistência da ascensão), nem por excesso (o vangloriar de quem ostenta a proeza como sinal de derrota da montanha). 
Um dia destes, pode acontecer que seja a montanha, sentindo-se ultrajada, a derrotar quem a quis derrotar.

Sem comentários: