19.7.19

Seis da tarde


Jambinai, “In the Woods”, in https://www.youtube.com/watch?v=ErbdE5niMnE
Seis da tarde. Persigo a noite. Não sei se é mundana, ou se dela extraio um sal intenso que perfuma o peito. As pessoas seguem apressadas. Regressam a casa. Vão mais apressadas do que na inauguração do dia, quando faziam a viagem a caminho do trabalho. No penhor do entardecer, julgo ser a prova de que não deve haver ninguém que seja refém do trabalho, ou que viva para trabalhar – como é de bom tom dizê-lo, nesta sociedade mecanizada onde os fingimentos se disfarçam de fingimentos de si mesmos, numa cornucópia de mentiras que as pessoas contam, aos outros e a si mesmas (para começar).
Seis da tarde. Se fosse outono, depois da mudança da hora, não tinha de perseguir a noite: ela já tinha encontrado o seu ninho no fuso horário. As pálpebras cansadas pedem resguardo. Um casal enamorado refugia-se da chuva, entrando no bar do hotel. Um prestimoso taxista cobre-se de chuva para proteger a senhora idosa que chegou ao hotel. Um cão vadio abriga-se na extensa pala que dá acesso à entrada do hotel. O rapaz, que tem a tarefa de se desmultiplicar em cortesias quando alguém chega ao hotel, afaga o cão, discretamente. Há já muita gente sedenta do horário de verão. Consideram que o crepúsculo repentino esconde nas trevas a quintessência do mundo. Sem darem conta, são otimistas incorrigíveis.
Seis da tarde. Faz uma dúzia de horas que estou acordado. Não sei a que horas serei relíquia do sono. Às vezes, fico acordado até perder o sentido do tempo. Enfureço-me. Sei que voltarei a acordar daí a um punhado de horas, ao cabo de um sono insuficiente. O dia seguinte será um arrastar penoso do corpo, a semi-hibernação do pensamento (na melhor das hipóteses), o palco para sobressaltos fáceis. Aviso as pessoas, como certificação em minha defesa, que é um dia tingido pelo mau humor. É melhor para todos. Não sei, uma dúzia de horas depois da minha aurora para o dia nascente, o que fazer deste entardecer. Não sei do paradeiro da noite.
Seis da tarde. Ou é o relógio que está parado? Não pode ser: a modernidade não se compagina com relógios que funcionam a pilhas – isso era antigamente. São mesmo seis horas. Fico estático a olhar para o mostrador do relógio, onde o pequeno ponteiro dos segundos faz a sua marcha habitual. Fico à espera que sejam seis horas e um minuto. Para saber do sabor de um minuto suplementar que se acrescenta ao entardecer. Para ser testemunha do envelhecimento do entardecer, e não só do meu. Sinto-me prefácio do mundo, ou então uma anónima nota de rodapé perdida do meio do volumoso livro que condensa as vidas todas. 
Seis da tarde e já sinto que a noite me persegue.

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