6.9.19

Medo de funerais (short stories #158)


Radiohead, “Nude”, in https://www.youtube.com/watch?v=BbWBRnDK_AE
          Não vou a funerais. Digo-me, a título de justificação interna, que o deixei de fazer depois do funeral do meu pai. Pode ser apenas um pretexto. Interroguei-me sobre o assunto enquanto lia “Em tudo havia beleza [Ordesa]”, de Manuel Vilas. O autor admite um transtorno que é, ao mesmo tempo, uma exegese por ter reordenado o pai na sua existência só depois da sua partida. Passa por vários outros familiares – a mãe, os avós, alguns tios – todos eles mortos; e repete, com melancolia tardia (o que pode encerrar alguma ironia negra), que não foi ao funeral de nenhum deles. Mortifica-se: não foi, e não vai, ao funeral de ninguém. Di-lo com arrependimento, daquele arrependimento que parece genuíno quando os acontecimentos são revisitados mas não podem ser alterados na ordem do tempo. Parece um arrependimento prestes a extinguir-se se o porvir reservar mais alguém destinado a um funeral. Eu fui ao funeral do meu pai. Vivi de perto a sua agonia, o estertor de uma doença implacável e indecentemente cruel (se é que uma doença pode ser decentemente cruel...). Nunca mais fui a funerais. Escondo-me dos funerais a coberto desta ferida sem cicatriz. Incomoda-me o clima pesaroso e pesado dos funerais. Sei que esgrimo um profundo egoísmo, porque as pessoas vão a funerais para fazerem a última homenagem a um corpo sem remédio– é uma norma de conduta que (dizem) faz parte da (dizem) imperativa socialização. Depois de ler Manuel Vilas, comecei a interrogar-me se seria essa a razão de fugir de funerais. Tenho a impressão de que um funeral é a antecâmara do nosso próprio funeral. Poderá ser esta imagem avivada à medida que nos afastamos do nascimento e avançamos pela idade fora. Eu tenho medo da morte. Não consegui encontrar os mecanismos interiores que me apaziguam com a ideia de deixar de fazer parte dos vivos. (Ia a escrever “ainda” na frase anterior, mas preferi omitir. Não sei se estarei à altura de mudar a maneira de encarar a morte. Não devo abrir a possibilidade – que justifica o “ainda” naquela frase – porque é uma hipótese exigente). Como tenho medo da morte, um funeral é a imagem antecipada do meu próprio funeral. O que me sobressalta. Talvez só encontre sossego na ideia de funeral se conseguir convencer os que me são queridos a não irem ao meu funeral.

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