25.10.19

As fronteiras são quase sempre estúpidas

Faith No More, “King For a Day” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=QMOqvf4i_Ec

(Dando-se a circunstância de o Colorado estar no meio do território dos Estados Unidos...)
Dizia, sem se cansar de o repetir: “as fronteiras são estúpidas. Sempre.” Depois mostrava a sua constela simultaneamente anárquica e cosmopolita para irradiar a utopia que lhe dava ânimo: haveria de haver de um dia em que as fronteiras seriam todas destruídas. Todas. E as pessoas podiam andar de um lado para o outro sem serem interrompidas em suas demandas pelos intrusivos polícias de fronteira. Era nesta altura que dava o flanco ao anarquismo empedernido e admitia que se havia um mérito na Europa unida, era a abolição das fronteiras. 
Uma convocatória inapelável: as pessoas deviam ser mais fortes do que as fronteiras. Essas pessoas dever-se-iam sobrepor aos irremediáveis burocratas que querem repartir os territórios em feudos hermeticamente delimitados. As fronteiras eram um encargo a adejar sobre a natureza das pessoas, que é a de serem nómadas quando lhes apetece. Como podem as pessoas deslocar-se se esbarram no muro que é uma fronteira? 
Às vezes, uma fronteira não tem de ser um obstáculo físico. Não ter de ser um muro. Não tem de ser uma fronteira em sentido próprio, com a casota onde os guardas controlam as passagens e impedem o contrabando e uma cancela que é demonstrativa do poder arbitrário destes funcionários. As fronteiras podem ser mentais. São as mais poderosas, as mais difíceis de abater. Os embaraços autoconstruídos são fronteiras que estorvam os movimentos. Retardam o crescimento. São as piores fronteiras porque podem partir de dentro do ser. Como movimento espontâneo, uma defesa contra o que possa ser considerado intrusão. Ou como reação a adversidades exteriores ao ser e que ele não pode domar. Cerceiam a autonomia e limitam a vontade de quem sobraça às fronteiras congeminadas a partir do interior.
Dizia, enfaticamente: “as fronteiras são estúpidas. Sempre.” Contrapunha com o exagero da formulação. Talvez fosse melhor temperar o axioma. Para afirmar: “as fronteiras são quase sempre estúpidas.” Interpelado para escudar a diferente formulação do axioma, argumentou que há fronteiras interiores que são imperativas. As que escondem o âmago do ser do espiolhar alheio. As que garantem que os limites de si não são invadidos pela curiosidade dos outros. Aí, os muros (mais até do que fronteiras) correspondem à autonomia do ser, à recusa de seu hipotecar às afoitezas alheias. 
As fronteiras são quase sempre estúpidas. Deixam de o ser quando preservam o ser da estupidez intrusiva dos outros.

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