31.1.20

Prova dos nove (agiota) (short stories #194)


Blur, “Go Out” (live with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=J7IoAd0I6zQ
          Era preciso refazer a clepsidra. Ordenar as sílabas dentro das suas casas, sem que as palavras pudessem desviar-se do proposto sentido. Às vezes, pressentia um frio avassalador a inundar as veias e o sangue explodia para outra galáxia, irrepreensível em sua doutrinação sem destinatário. Pois era disso que se tratava: ideias sem paradeiro concentravam-se ao pôr-do-sol, esperando por uma epifania qualquer que não tinha uma divindade por bússola. As folhas de papel esvoaçavam, levadas pelo vento em piloto automático, para angústia dos circunstantes. Não fosse pelo ato de insubmissão (ficou por determinar se a insubmissão se devia às folhas que levantaram voo, ou ao vento que as desarrumou), seria possível traçar a prova dos nove. Seria tudo dito, convenceram-se. Erradamente: podiam ir pela madrugada fora, em abraseadas discussões, que não passariam da avença da indeterminação. A prova dos nove não faria prova de coisa alguma. Aos que teimassem na ousadia do contrário, chamar-se-ia agiotas. Agiotas no pior sentido que a palavra transporta, sem enovelamento metafórico que lhe valha. Nessa altura, convencidos os agiotas que não podiam sê-lo, estariam todos em condição para atestar a sua loucura. Uma insanidade perfeita, sem embaraços, uma loucura a dispensar manicómios. A loucura de aprovisionarem palavras apátridas numa enxurrada benigna. Contra o torpor dos dias seguidamente repetidos. Contra as fogueiras que se incensam na boca dos gladiadores. Contra o disfarce do dia no avesso da estultícia. Nessa altura, desconvencidos os agiotas, sobravam as cinzas da sua opulência sem inventário. O chão ficaria despejado dos vestígios gastos que pertenceram a um lugar que perdeu alvíssaras. E as palavras seriam jogadas contra o cais onde se efabulam os sonhos improváveis. Seria como fazer o avesso da prova dos nove, uma prova existente para provar uma inexistência. Sem isso, todos seriam agiotas outra vez, senhores da sua própria contrafação.

30.1.20

Centeno, o herói errado


Depeche Mode, “Heroes”, in https://www.youtube.com/watch?v=q6yzrZfgQvI
Mário Centeno anunciou que a diminuição das taxas de juro da dívida pública deve-se à credibilidade da política orçamental do governo de que é ministro das finanças. Centeno desvalorizou o papel do Banco Central Europeu (BCE), quando esta instituição passou a comprar dívida pública no mercado secundário. Ao mesmo tempo, o político Centeno desvalorizou toda uma literatura que identifica aquele contributo do BCE para a superação da crise da zona euro e para o alívio do ónus que pesava sobre a dívida pública de Portugal (e de outros países). Centeno, o político, desmentiu a comunidade científica que integrava até ter sido nomeado para o governo liderado por António Costa. 
Este seria (ou será...) mais um episódio acantonado numa nota de rodapé, perdendo-se na espuma dos dias. Mais um episódio da repetida desinformação sobre assuntos europeus devida a atores políticos, por ato intencional ou por ignorância. Como acontece frequentemente no rescaldo destes episódios, eles nem são atestados pelos cidadãos que não devem abdicar do escrutínio exigível em democracias modernas e ativas. Normalmente, quando toca a assuntos europeus, os atores políticos proferem as declarações que lhes apetece, sabendo que não são contraditados pela comunicação social e raras vezes o são pelos adversários políticos. E, contudo, destes episódios de desinformação resultam distorções que não podem passar em branco. Eles transportam ao cidadão uma perceção errada sobre a UE. Fruto deste viés, os cidadãos acabam a premiar quem não merece o aplauso, o que pode adulterar a sua decisão no momento do voto. 
Voltando ao assunto deste artigo de opinião, Centeno negou o que é reconhecido pela comunidade científica. Existem provas sólidas de que a intervenção do BCE favoreceu a inversão de tendência da remuneração da dívida pública. O simples anúncio da intenção de comprar dívida pública (pelo então governador do BCE, Mario Draghi, num discurso em Londres, em julho de 2012) bastou para que as taxas de juro da dívida começassem imediatamente a descer. O programa de compra de ativos da dívida soberana consolidou a tendência. O cenário tornou-se favorável para a gestão da dívida pública, sendo-o ainda mais para os países sobreendividados, como é o caso de Portugal. Pagar juros mais baixos pela dívida emitida é um bálsamo, pois o encargo dos juros decresce, tendo repercussões positivas no alívio do défice orçamental (naquela fração do défice que resulta do pagamento de juros).
Quando Centeno tomou posse, só era conhecido no meio académico. O ministro das finanças terá feito um excelente tirocínio político durante o mandato do anterior governo. Ao puxar pelos galões da reputação da política orçamental, Centeno apresentou-se a exame entre a casta dos políticos, talvez inebriado com a analogia com uma famosa personagem do futebol. Lamentavelmente, para o rigor da informação e para o conhecimento dos cidadãos, Centeno convocou um estatuto de herói que não lhe pertence. Os cidadãos merecem sabê-lo. Sim, é ao BCE que se deve a recuperação da credibilidade da política orçamental portuguesa.

29.1.20

Capítulo 8 (Pulso aberto)


Dead Combo, Márcia e Camané, “Desumanização”, in https://www.youtube.com/watch?v=MxrGHi92Ro4
Jogava com as janelas como dantes jogava com o pião, quando era menino. Fugia das sombras como fugia das luzes. Fugia dos juízes. Não queria saber dos demónios vastos escondidos na planície. Desconfiava que os ventos de sul arrebatassem os medos que supunha castrados. Dizia: 
Não me lembro dos rostos. Não me lembro dos odores. Não sei dos nomes. Dos nomes. Da lava escura que se deitou na paisagem, depois da erupção. Tomo-me pelo vulcão, a soberba dos indecisos, e sei-me irredentista de mim mesmo. Não sei o que fazer.
Tomava de assalto as janelas em seu avesso. As minhas e as dos outros. Não queria saber das vidas. Temia por elas e a minha já era matéria de sobra. Por isso, cuidava do avesso das janelas. Uma tábua órfã arrancada ao mear da maré escondida. Ao longe, parecia ver um jardim. Mas o jardim estava embaciado, a neve corrida pelo vento assentava como uma delicodoce névoa que distorcia a silhueta dos lugares. Não me sentia vindicado. “Os lugares são sempre estranhos quando não os sentimos nossos”, lera algures. A imperturbável face emprestava rigor ao frio. Mas afinal não era neve. Era só um quadro disforme cavalgando o sopé do bosque, confundindo-se com a paisagem. Disse:
Só as coisas maravilhosas merecem o crédito das pessoas. E, mesmo assim, elas são trespassadas por angústias que açambarcam as almas. Das almas desmaiadas por serem tutoras de tanta indulgência. As almas que se entregam na armadilha das angústias, sem saberem que, uma vez a elas penhoradas, só com um temperamento metódico a elas escapam. Devia-se aprender com os abismos escondidos e sagrar as coisas que aformoseiam as vidas.
As esquinas eram os gastos cais de que todos fugiam. Havia medo a abrasear o céu da boca, como se de uma sede infalível fôssemos meãos. No ocaso antecipavam-se as estrelas furtivas entre as nuvens timoratas. As lembranças rumorejavam um verbo ininteligível. Esperava pelos parágrafos como quem espera num apeadeiro, sem saber que o comboio passa na linha oposta. Não queria saber dos nomes, não recordava os rostos nem com as mais poderosas mnemónicas. Se ao menos a noite não fosse um labirinto; se ao menos os menos de tudo se somassem para estonar as velas sem assombro, na soma maior de todas, diria sem escrúpulo:
-  Ah, venham ao meu regaço os ventos sem bússola, os capatazes dos mares, os poetas militantes, as avós sem tantos braços para o colo dos netos, um segredo sussurrado ao ouvido com a pele trémula de seguida, as planícies mesmo sendo todas iguais, os mapas numa página em branco, as nascentes de onde bolça o primeiro esgar dos ribeiros, e toda a opulência do tempo creditado. Como se de um amanhã não houvesse notícia. Como se à morte fossem devolvidas as vidas em sua perene coexistência.

28.1.20

O direito a errar e a não ser julgado pelos erros


Goldfrapp, “Pilots (on a Star), in https://www.youtube.com/watch?v=ydNbuB6PLiU
(Instruções de leitura: texto provavelmente ácido)
É aquele anexim tão inspirado na moral judaico-cristã: que bata no peito quem nunca se achou transviado. Ou, por outras palavras: que os diligentes censores da atividade alheia não sejam apanhados em contramão e sem o cinto de segurança devidamente apertado. Talvez devesse ocorrer que as palavras deviam ser pensadas antes do tempo, para não se esvaírem em internas contradições antes de sentarem os outros no banco dos réus e, de sua altiva condição, os sentenciarem pelos erros cometidos em tempo pretérito.
Pudessem os arquitetos legais dos direitos fundamentais ter uma costela de filósofo para desaprovarem a intrusão dos censores alheios na esfera dos erros que não são seus. Os legiferantes deviam verter nos códigos, em cláusula autónoma e com devido destaque: “cada indivíduo tem direito ao erro pessoal e a não ser julgado pelos erros cometidos.” Depois, instruções deviam ser transmitidas, desde os bancos da escola e para os alunos ainda de tenra idade, para a interiorização deste direito fundamental. Com a ajuda de filósofos, para aprenderem o princípio fundamental, frequentemente esquecido nos dias que correm, da inversão de papeis. 
As crianças seriam conduzidas por um processo voluntário no qual seriam convidadas a colocar-se no papel de outro. Para que mais tarde não fiquem vulneráveis ao delito de comportamento de serem juízes dos erros dos outros. Esta é uma tremenda vulnerabilidade. Pois ninguém, batendo no peito (se lhes der jeito a espada de Dâmocles da moral judaico-cristã) pode reivindicar o estatuto de perfeição, estando sujeito ao erro que é inato. A partir do momento em que os ambiciosos juízes do erro alheio percebessem que podem ser chamados à condição de réu por um motivo análogo, teriam o máximo incentivo para abdicarem da toga em que se autoinvestem. Não é confortável estar no papel daquele de que se ousa ser seu julgador.
O direito ao erro precede o direito a não ser julgado por ele. A causalidade é lógica. É inútil consagrar o direito ao erro como eminente direito fundamental se não for garantido o direito a não ser julgado pela sua prática. Caso contrário, corremos o risco de ser uma espécie ingovernável, permanentemente intrusiva. O risco de sermos todos porteiras. De cada vez que alguém transborda para a esfera do outro, não pode ter a pretensão de não ser invadido por um outrem qualquer. Não se cuida de garantir a reciprocidade. Cuida-se de a evitar, vedando a ousadia de comentar (sequer) um erro cometido por alguém. 
A imperfeição ainda é melhor garantia antropológica. Conservá-la não transige com o topete de julgar alguém pelos erros transatos.

27.1.20

As árvores não estão sozinhas


Pedro Mafama, “Lacrau”, in https://www.youtube.com/watch?v=VYuoLqBdlRQ
O que diriam as sereias ao chegarem às árvores no planalto? 
Por verem que elas não estão sozinhas, desviariam o olhar para as imediações. Teriam de perceber a lógica dos despenhadeiros que separam o planalto da planície. Teriam de auscultar o rumorejo dos ribeiros que descem das montanhas sobranceiras. Teriam de sentir com as mãos a porosidade das rochas que são a cama do terreno. Seriam convidadas a depreciar as árvores, porque o que primeiro viram (as árvores) estava acompanhado por outros elementos. 
As sereias seriam vítimas de um equívoco próprio. A primeira impressão do olhar depressa se perderia nas redondezas. Os restantes pormenores que compunham a paisagem. Talvez inebriadas pela originalidade do ecossistema (as sereias nunca tinham saído do mar), queriam tudo olhar, tudo apreciar. Sabiam que lhes estava reservado um tempo limitado fora do seu ecossistema. E ninguém as avisou que as árvores, as poucas árvores que resistiam aos maus elementos que dominavam o planalto, eram os atores principais. Mas elas entenderiam que essa fora a insinuação. 
Subia à boca de cena outra hipótese: as sereias estão habituadas a serem tratadas como uma fraude. Não constam do rol de vulgaridades e depressa se constata que não são dadas aos lugares-comuns. Apesar de as árvores serem centrípetas, e de a elas estar reservado um papel heurístico no planalto (os biólogos explicariam melhor: o efeito regenerador das árvores, como elas são o ponto de Arquimedes daquele lugar), as sereias aproveitariam a ocasião para escaparem à banalidade. Diriam: “sim, as árvores são centrípetas, mas elas não estão sozinhas.” Ato contínuo, passariam em revista a demais linhagem do planalto. Em sua prodigiosa memória, as sereias reproduziriam fielmente o desenho da paisagem, descendo aos pormenores que a enriquecem. Esquecer-se-iam do punhado de árvores centrípetas. De propósito. Seria a marca de insubmissão das sereias, já que suportam o ultraje de serem uma farsa.
As árvores não estão sozinhas. E quem disse que esse era o caso? Terá chegado aos ouvidos das sereias. Esse foi o pressuposto com que partiram quando viajaram até ao planalto. Alguém as terá educado para darem atenção às árvores formosas que dominavam o planalto. As sereias, habituadas a serem clandestinamente insubordinadas, saberiam ver que as árvores não estavam sozinhas. E esse seria o mote para inventariarem a demais paisagem. Esquecendo-se das árvores. E dando razão a quem houvera sussurrado que as árvores não estão sozinhas.
Mas isto seria se as sereias tivessem autorização para saírem da prisão a que estão confinadas.

24.1.20

Trago o dia perto de mim


Ty Segall, “Alta” (live on KCWR), in https://www.youtube.com/watch?v=wMvLTM1YZBs
O apogeu da tarde, quando é?
Tomo este pulsar como o barómetro do mundo. Dele peço emprestada a vivaz luminosidade que não se esbate, nem quando o entardecer consome o dia sobrante. Faço cálculos: quantos minutos sobram do dia, de quantos posso ser a bandeira desfraldada, a bandeira que não quer ser hasteada?
O caderno gasto guarda as anotações avulsas. Os pensamentos que afloram na voracidade do instante e que possivelmente se diluem na sua pusilânime inverdade. Das palavras, umas ricas e outras não, uma obra feita que não passa sob o crivo de olhos outros. Confesso-me: “não é preciso.” Ficam os verbos sem veludo, uma crina por onde se amaciam as palavras merecidas.
Imagino outras latitudes. O caminho que é preciso fazer até lá chegar. As muitas paisagens visitadas, antes de a essas latitudes aportar. Não corro o risco do desengano: as paisagens entrecortadas pela pressa da viagem são a maior recompensa. E nem os olhos marejados, por tanto ser o vento que os agride, capitulam no emoldurar de fragmentos dos lugares demandados antes de atingir o lugar escolhido para visitar. O apogeu foi antes de chegar.
É em este perorar que campeia o tempo. Podiam ser devaneios, estéreis como se convencionou serem os devaneios. Não concordo. Sei que se metesse as mãos nas funduras da terra amanheceria imensamente mais rico. O dia seguinte teria uma fortuna inteira a adejar-me, uma fortuna sem matéria, fortuna em que as mãos ainda sujas pelo arrematar do húmus não conseguiriam tocar. Repito as palavras mais cerimoniosas de todas: “não é preciso. Não importa.” Apraz-me ser curador de um processo que contém manuais inteiros de aprendizagem. Da aprendizagem incessante.
Digo: “trago o dia perto de mim.” Se me desafiassem, não temia entrar num concurso em que se medissem os quilos de força corpórea colocados no abraçar do dia. Não me demovo, nem quando um dos meus hemisférios me sobressalta, sintetizando a acusação interior: “não são poucos os dias em que desaproveitas a sua serventia. Pareces perdê-los entre os dedos, naufragando na levada onde te desencaminham os vultos estranhos.” Mesmo assim, decretei, em papiro solene e em proveito próprio, que sou tutor do dia que trago ao regaço, dos dias que me apetecer e dos que não me apetecer. 
Não é o dia que me transporta numa transumância baça. É o contrário. O crescer da alma não se esconde nos primeiros trovões. Faço as revisões necessárias, as mudanças. Contemplo os dias que são bons e distingo-os dos que são teimosamente maus. Como se fosse um jogo e à minha vontade atribuísse um crédito inviolável. O crédito de ser a vontade a moldar o dia, e não o contrário.

23.1.20

O mais aviltante é quando alguém cai do pedestal e todos fogem dele como se tivesse sarna (Compêndio do descomportamento)


Mão Morta, “A Porcaria” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=kwB9octlwBg
Foi o Salgado e agora é a “princesa de Angola” – e toda uma súcia que os pajeou e agora deles foge a sete pés, branqueando a memória. Mas apenas a sua memória.
(Este opúsculo não é uma defesa de gente indefensável, a começar pelos que caíram do pedestal.)
Faz parte dos manuais da História e dos compêndios da psicologia do comportamento. O processo repete-se. Os arrivistas, ou aqueles a quem convém ser pajem de um poderoso porque pressentem colher vantagens, multiplicam-se em genuflexões, adejando nas imediações do oxigénio respirado pelo poderoso. Prestam-se ao papel de idiotas úteis. São úteis para os poderosos que os usam como peões ao serviço dos seus interesses. Testas-de-ferro ou figurantes que tratam das encomendas endossadas pelo poderoso. Não se importam. A contrapartida é uma sinecura, uma benesse, uma lauta vantagem patrimonial, ou serem embaixadores do imenso poder detido por sua excelência – porque eles não viram a cara a um naco de poder, mesmo que seja delegado por quem está no topo da cadeia alimentar.
Um dia, o poderoso perde o estatuto. Cai em desgraça, a que se segue uma vertiginosa descida ao inferno da decadência. Fica sozinho. Observa-se a deserção do numeroso exército de seguidores na exata medida da sua decadência. Os que fizeram parte da obediente coorte desaparecem do radar. É de seu interesse que os olhares públicos deles se esqueçam enquanto os efeitos sísmicos da decadência do poderoso não forem dissipados. As dúvidas ficam clarificadas: esta era uma coorte oportunista. A debandada de poder e a privação de meios materiais do outrora poderoso alimentam a sua deserção. Foram falsamente leais. A lealdade não era à pessoa do poderoso; eram leais ao que ele representava, o que ele detinha. Esta era uma coorte desleal.
Quando alguém desta linhagem é atingido por tamanho descrédito, a decadência que lhe está reservada não é partilhada pelos que foram seu séquito e que, em nome dele, lesaram valores e princípios que parece só terem sido lesados pelo poderoso a quem o trono foi retirado. São ainda piores do que o poderoso sobre quem recai o opróbrio público. Ratos que saltam do navio à primeira oportunidade, por pressentirem que o navio está condenado ao naufrágio. 

22.1.20

Mercurocromo (short stories #193)


Evols, “Kindness and Talk”, in https://www.youtube.com/watch?v=r3C6mzS9jxQ
          Não sejas mendaz no esconderijo onde ocultas as cicatrizes. Onde agora estão as cicatrizes, outrora houve ferimentos. Carne aberta, sangue escorrendo pelo corpo abaixo. Uma angústia tremenda. Uma dor compungida. Disseste que passaste mercurocromo e tudo sarou. Tudo se sanou. Podia acreditar. Talvez queiras que eu acredite. Podia fazer esse favor. Ou não. Não julgues que estou preso a um justicialismo e que em teu nome procure a justiça devida. Tu sabes que o mercurocromo não é reparador. As cicatrizes ficam no mesmo lugar. Ficam, como mnemónica das feridas a que deram lugar. Dizes: a memória compõe-se, temos de ser os lídimos arquitetos da nossa memória. Desconfio que é linguagem cifrada para não te importunar. Mas não consigo. As tuas cicatrizes doem-me mais do que a ti. A dor é uma circunstância relativa. Pode ser que me sobressalte a patranha em forma de gente e como todos os fingimentos são um ardil por dentro de si mesmos, numa beligerante contrafação dos sentimentos em que, a páginas tantas, já ninguém sabe o que é o fingimento – já ninguém sabe nada. Nada disso deve interessar se pedes para não avivar as cicatrizes com a cal das lembranças. As cicatrizes são um abrigo que separam a carne da dor. Entendo que não devo avançar na hermenêutica dos acontecimentos, nas possibilidades que se jogam no tabuleiro onde tudo se desarticula. Estás coberta de razão: atira-se mercurocromo para cima das feridas e fica-se à espera que elas encerrem, que formalizem as suas próprias cicatrizes. E depois, olha-se para as cicatrizes e a memória adulterada não consegue saber por que estão naqueles lugares da cartografia do corpo. À espera – quem sabe? – de novas balas assestadas na direção do corpo, para mais cicatrizes serem levantadas no embaciar do sofrimento que houve um dia. “E assim sucessivamente.” Até que as cicatrizes que levaram mercurocromo sejam a metáfora de um corpo defenestrado de que a memória não tem lembrança.

21.1.20

O mar que chama


Cold Showers, “Shine”, in https://www.youtube.com/watch?v=nvZETvomGrA
O mar que tem chama. O seu incenso irrompe do luar que esbraceja a atalaia sobre o mar. Parecem diamantes a espreitar entre o leve ondular do mar. Diamantes soerguidos para se embeberem no lençol caiado que é conferido pelo luar sazonal. Dir-se-ia: o mar sobreaqueceu, de tanta chama, o mar abraseado como nunca se vira. Ou talvez já fora visto, pudesse o olhar vencer o sono (ou ser derrotado pela insónia) e, em dia de lua grávida, apreciasse o efeito produzido no mar seu recetor.
É um mar que chama. Apetece demorar o olhar, anotar meticulosamente as alterações trazidas pelo avançar da noite, até já se notar a primeira luz clara. Até à lua se agigantar de novo, como se contrariasse a senescência que a alvorada determina. O mar, qualquer que seja: uma vasta cama onde se acalmam os espíritos, ou um redemoinho voraz, a tela onde se expõe o mar sob os efeitos de uma tempestade. No último caso, não é provável que haja qualquer efeito da lua sobre o mar, ou pelo menos que este efeito seja visível. 
O corpo vence o frio da noite e abeira-se do mar. Sente a quimera da maré e procede como se as mãos (obedientemente diligenciadas) se deitassem sobre o mar e apanhassem cada um dos iridescentes diamantes que espreitam através da escotilha para se saciarem na lua. Uma noite, uma fina língua de nevoeiro bordejava o mar. Parecia que os diamantes eram pessoas, talvez marinheiros escondidos nas profundezas do mar que vinham beber no luar as quimeras de que precisavam. Não pôde confirmar se eram vultos brunidos pelo luar irrefreável, ou se era uma ilusão trazida ao olhar pela combustão do luar com a fina língua de nevoeiro que aterrara sobre o mar.
Este é o mar que chama. Com ou sem luar. Qualquer que seja a estação que toma conta do calendário. Sem relação causal com o estado de espírito. E muito mais do que um apeadeiro: um refúgio que se sabe sempre onde está, sem ser preciso um mapa para no mar ter cais; ou, em havendo dúvidas, é só seguir as indicações da maresia. 
O mar que chama, como se o chamamento fosse uma chama viva, incandescente, uma tocha sobrelevando no amparo das mãos que não se gastam. Enquanto houver um mar que chama. Um mar com chama.  

20.1.20

O dedo mindinho de quem beberica um chá


Wilco, “Handshake Drug” (liva at Lollapalooza), in https://www.youtube.com/watch?v=c4Jvg58MnfM
A velhinha passeava pela rua que circundava a velha fábrica, arrastando o passo nos ossos condoídos. Balbuciava umas palavras ininteligíveis, como se fosse dona de um idioma que mais ninguém entendia. Trazia sempre ao pescoço uma medalha, como se em tempos tivesse sido agraciada nas olimpíadas – ou, eventualmente, porque a achou entre os despojos de alguém e aquela medalha era de fancaria. Mesmo quando chovia, a velhinha errava em círculos, como se contasse as voltas à volta da fábrica que era o epitome da decadência. O oleado encardido prevenia a gripe.
Antes de atravessar a rua – empreitada arriscada, pelo muito trânsito e porque os automóveis correm a grande velocidade – a velhinha parava em frente aos vestígios de um muro da fábrica. Ficava inerte, a cabeça na direção do chão, continuando a balbuciar uns termos estranhos, como se estivesse numa prece. No fim do ritual, erguia uma mão e assentava-a na parede que em tempos amurou a fábrica. Arrumava as luvas que deixavam os dedos à mostra, tirava o gorro e as mãos fartas massajavam os cabelos todavia bem tratados. 
Um dia – era um dos primeiros dias soalheiros da primavera – a velhinha mudou o ritual. Depois do que parecia a prece em frente dos vestígios do muro da fábrica, tirou uns pertences da sacola que traz sempre a tiracolo. Sentou-se entre as ruínas da fábrica e começou a preparar um chá. A água da termos ainda estava quente, libertando um vapor abundante mal foi destapada. Terminada a feitura do chá, beijou a medalha possivelmente olímpica (ou não), ergueu uma mão na direção da parede onde parecia repetir o rito da oração e levou a chávena à boca, com cuidado porque o chá ainda fervia. E todos os que passavam pelo local puderam testemunhar o dedo mindinho destacado dos demais dedos enquanto a velhinha bebericava o chá de tília acompanhado por umas bolachas que cozinhara com as sobras da cozinha improvisada. Ou não: naquele lugar, as pessoas que passam vão apressadas, aproveitam a ingreme descida para deitarem velocidade nos automóveis. Não têm tempo para ver a paisagem que, em abono da verdade, é um amontoado de feiura.
No dia seguinte, a velhinha não fez a habitual vistoria à fábrica decadente. Ninguém notou a sua falta. A não ser a chávena de chá que ficou esquecida nas ruínas da fábrica, à espera de se tornar, ela também, parte das ruínas. À espera dos quatro dedos seguros da velhinha.

17.1.20

Cimento bruto


Chromatics, “You’re No Good”, in https://www.youtube.com/watch?v=PjUblmk4Cyo
Estas são as arcadas que suportam os ossos do pensamento. Vigas sólidas, com raízes fundas. Uma larga praça onde se debatem as ideias de opostos. Porque o pensamento não é um fragmento disperso que dança na ligeireza dos elementos. 
São as vigas sólidas, feitas de cimento em bruto que se transforma, depois da ação humana, em cimento bruto. Os alicerces precisam de ser uma fortaleza. Têm de ser imunes aos elementos exteriores que os possam ameaçar. Pétreos. Para terem arcaboiço para lidar com tergiversações. As vigas sólidas têm de ser uma demonstração dessa condição. A começar, têm de o ser para quem nelas encontra cais e lança, fundamente, a sua âncora.
Do cimento bruto não são vistas à mostra arestas fingidas. Isto não significa que o pensamento que têm suas baias nessas vigas não esbraceje quando é confrontado com dúvidas. Não significa que não haja momentos em que, colocado perante uma encruzilhada, o pensamento não saiba por onde seguir. É para isso que serve o cimento em bruto. Confere lastro. Ensina a travejar o pensamento, mesmo quando ele tem de sofrer mutações. A diferença entre um pensamento escorado em cimento bruto e outro que ande em demanda do seu paradeiro, é que o primeiro legitima as dúvidas, não se esconde das interrogações e não se inquieta quando não encontra respostas. Porque sabe que se pode apoiar em paredes vívidas que não tombam, por mais que possam parecer embaciados os eixos da memória e as fundações em que se protege o pensamento. 
Que não sobrem mal-entendidos sobre a expressão: trata-se de cimento bruto, mas o cimento não é bruto, não é a imagem selvagem de uma boçalidade sem remédio. É bruto porque foi feito à prova de intempéries, de contratempos, resiste melhor a todas as malformações que o adulterem, está preparado para as advertências e não segue imperativos de coerência. Não se pode pôr de lado a hipótese de influências exteriores, mesmo as que são intencionalmente rebatidas, poderem deturpar as fundações do pensamento, levando-o com elas a ser um pensamento não genuíno. O cimento bruto é a vacina contra as influências que se cogitam desde o exterior, quando elas se opõem à vontade do tutor do pensamento assim invadido.  
O pensamento é a linhagem da ação. Não pode ser menoscabado por falta de alicerces. O cimento bruto é a matéria-prima destes alicerces. 

16.1.20

Um bem-entendido


The Smashing Pumpkins, “Cherub Rock”, in https://www.youtube.com/watch?v=q-KE9lvU810
As palavras bem desenhadas, uma caligrafia impecável. Que não sobrem equívocos e nada fique por dizer. E que nada fique por entender. Um bem-entendido é um bem inestimável. Sem as arestas da hermenêutica enrixada.
Não se pode prevenir os contratempos que embaraçam os bem-entendidos. Ou porque as palavras que desenhamos não são a preceito do que intuímos dizer. Ou porque essas palavras são objeto mal-entendido por quem as recebe. Ou porque as dizemos com uma entoação que compromete o seu significado. Ou porque a quem elas se destinam distorce a mensagem, com propósito. Quando as apalavramos, só por um impulso suicida é que não pressentimos um bem-entendido. Bem entendido que ao autor das palavras não faz sentido se não as precaver num castelo onde só têm lugar os bem-entendidos. Os arautos assim cinzelados não quadram com o intencional viés das palavras mal ditas: se elas são ditas, por que não têm correspondência com a intenção que devia ser a delas? Um mitómano pode mentir a si mesmo.
O bem-entendido exige reconhecimento recíproco entre as palavras que se dizem e as palavras que são escutadas. As duas funções são miméticas. Mas o destinatário pode não entender as palavras como elas foram ditas. Um lapso semântico impede a comunicação. Não se faz luz às palavras como elas foram ditas. A sua interiorização desvia-se do pretendido e um mal-entendido medra na dissonância hermenêutica. O autor das palavras, se lhe for dado a entender a divergência, pode reparar o dano. Pode repetir as palavras, acrescentar outras para avivar o seu significado, aperfeiçoando-as de modo a dissipar o mal-entendido. 
O retorno ao bem-entendido pode ser fracassado se persistir a interrupção semântica entre quem proferiu as palavras e quem mal as entendeu, se o recetor não der a entender o vício de interpretação. O mal-entendido sobrepõe-se ao bem-entendido enquanto o dano não for reparado. Será dano irreparável enquanto se mantiver a fratura de comunicação entre o mensageiro e o destinatário. Impossibilitando o bem-entendido. Por isso, às vezes (de configuração indeterminada, porém), convinha fazer uma adenda às palavras ditas. Como se uma legenda viesse a acompanhar as palavras ditas, para não se ferir de morte a possibilidade de um bem-entendido. Seriam palavras em cima de palavras, as primeiras instrumentais das segundas.
Admita-se a impraticabilidade da hipótese: não são poucas as vezes em que as palavras ditas excedem a medida certa. Se a esta prodigalidade se adicionassem as palavras em adenda, não se andaria longe de uma inundação com efeitos possivelmente devastadores. As palavras seriam material contaminante, tóxico. A menos que se aceite que nunca há palavras excedentes e que o bem-entendido é um bem maior.

15.1.20

Fábrica (short stories #192)


Ryuichi Sakamoto, “The Sheltering Sky”, in https://www.youtube.com/watch?v=xLRpPISVgoA
          Desce a cortina sobre a noite. Neste soar noturno, pressinto a lava que se insurge contra a letargia. Pressinto um ofegar próximo, a respiração por que me guio. Este prístino lugar não obedece a regras, só às não regras de que somos tutores. Enfeita-se o horizonte com os dedos que escrevem nomes, os nomes de que somos feitos. No parapeito da memória, interrogamos o porvir. Interrogamos as próprias interrogações que não deixam de ser palco suserano, o lugar da redenção, se houver proveito na redenção. Tudo é artesanal. Tudo é fabricado com as nossas mãos, como se elas fossem as suas próprias pétalas e de um poço de água pálida se erguessem as falas precisas, decantadas pelas pétalas. Às vezes, a noite emudece. Emudece e nós falamos por ela. Nós e o murmúrio do mar, que espreita no véu da tempestade que compõe uma estrofe do inverno. Somos a fábrica de onde sai a matéria-prima de que somos feitos. Circulando no ermo lugar que resgatamos às juras, sem descuidar o amplexo em que caem os corpos à espera de ficarem trespassados pela estuação da carne. Não apetece dar corda ao relógio. Não apetece que o vento deixe de ciciar na sua iracunda proclamação. A lareira crepita com a exultação do sangue que se torna cálice em ebulição. Sabemos o que fazer desta combustão. Emprestamos as achas abraseadas à pele acometida pelo frio. Não é que precisássemos. A chama farta que de nós emana seria suficiente para aquecer o casario todo em volta. Talvez, sem exagerar, uma metrópole inteira. Sabemos que somos a fábrica dos sentidos colhidos no ponto mais alto do miradouro, onde só os mais audazes conseguem chegar. Seríamos, se estivéssemos nos Andes, andinistas diligentes contra a moldura baça dos decadentes. Agarramos o vento antes que ele fuja. Antes que abençoe outras latitudes. E tomamos em nós a linhagem sublime das paisagens bucólicas, sem olhar para trás, sem esperar pelo que se antecipa à nossa frente. Porque os olhos mergulham na imensidão dos olhos outros, e saciam-se.

14.1.20

Até setembro


Fontaines D.C., “Liberty Belle”, in https://www.youtube.com/watch?v=HgLypctZ9Gs
Diremos: “até setembro”, com ou sem exclamação, depende do estado de espírito, depende das cores que tingiram os sonhos. Até setembro, quando soubermos da latitude dos ventos que são o presságio do outono, e nas nuvens por ele trazidas repousarmos os rostos cansados do estio. Só para podermos dizer, sem exclamação, “até setembro” como arte da posse do tempo, como se agora, que ainda é inverno, estivéssemos a reaver a pele exsudada pelo calor que ainda se sente com o setembro às costas. 
Queremos o setembro para sabermos que o verão está de partida. Poder-se-ia contrapor, com o dedo erguido de perplexidade: “mas se ainda agora é janeiro, por que se pressente com tanta antecedência o cansaço do verão?” Não temos resposta. Só sabemos que o verão é uma fadiga inteira. Suamos, durante o verão, e não gostamos. Há noites mal dormidas porque são noites tropicais, raras neste lugar que semeia maresias localizadas que se opõem às noites tropicais, mas noites tropicais em número imoderado. 
O setembro, consideramo-lo o estaleiro onde se começa a montar o outono, a estação preferida. Aos primeiros arremedos de frio noturno, começamos a sentir o odor de um outono que medra na decadência do verão. E agora, que ainda é janeiro e está frio lá fora, damos um salto no tempo, aos meados do setembro que se apresta a dizer adeus ao verão, e temos a audácia de combinar esse salto no tempo, como se fosse possível obliterar o verão, o sempre longo verão (apesar da influência atlântica que o tempera). Alguém poderia protestar: “estão mal-habituados. Sem ir mais longe, prouvera que convivessem com o verão com influência dos ventos saarianos, e o que diriam?”
Não damos importância ao protesto lavrado no imaginário através de uma personagem imaginária. Este é o verão que temos. O verão que nos cansa. Mesmo quando ainda vamos a caminho do apogeu do inverno. Demanda extemporânea, porque nem sabemos como vai ser o próximo verão. Este é um proémio que não cai em saco roto. É como se se soubéssemos, com toda esta antecipação, que os corpos acobreados querem regressar à sua alvura com o consentimento do inverno. Por isso exclamamos: “até setembro!”, com o olhar tingido pelos tons acobreados do outono que se começa a pressentir por alturas de meados de setembro. 

13.1.20

A ditadura dos corpos


DIIV, “The Spark”, in https://www.youtube.com/watch?v=YEI2IAyoBZI
O desafio dos corpos: não são um simples amontoado de maquinaria, a confluência de carne e sangue e ossos, os fluidos do seu funcionamento; os corpos são a sua transcendência, um corpóreo manual de respostas aos impulsos que os corpos, como domínio da vontade, não conseguem domar. Os corpos respondem à vontade que lhes é exterior, a vontade comandada pela parte incorpórea que há em nós e que nos domina. A vontade não inventariável.
Por toda a História fora, são copiosos os episódios de censores dos corpos, na repressão de um hedonismo que é adversário de uma outra forma de obediência – os credos vários, as religiões, os sacerdotes que são porta-vozes de credos, religiões e outras dependências das almas. É mais fácil reprimir os corpos do que dirigir a repressão para a parte incorpórea de nós. A vontade sem rosto, que não está tatuada no corpo, não se presta à dominação absoluta dos sacerdotes que, do exterior, pressentem a bondade dos comportamentos esculpidos. 
Por mais que seja fértil a safra dos comandantes dos corpos, as mentes continuam irrefreáveis, penhoras de uma liberdade irremissível. Não importa que sejam usados métodos execráveis, e que em nome de um autoanunciado “bem maior” exércitos imensos de mortais abdiquem da sua liberdade e aceitem a castração dos sacerdotes que os convencem da necessidade e da bondade dos atilhos que convergem para o enevoamento dos corpos. Dizem, em sua defesa: somos dominados pela ditadura dos corpos, eles têm de ser dominados por uma força maior que os liberte desse espartilho. Nem que seja preciso dobrar a vontade à força bruta, contrariando os instintos que conduzem os corpos. Acreditando que a castração dos corpos se há de impor à vontade rebelde, sem rosto, não identificável, que norteia os corpos. 
Uma ditadura que substitui uma ditadura não deixa de ser uma ditadura.
Monta-se um cenário hediondo. Linhas de montagem para desmembrar a linhagem dos corpos, com prévia ideologização obrigatória que ensine os malefícios da ditadura dos corpos. Partes de corpos torturadas até que as forças se tornem exangues e juras irremediáveis sejam feitas, no selo da incapacidade que subjaz, para os corpos não mais sucumbirem no planalto da demoníaca vontade. Como se fossem lobotomias do desejo, só porque os sacerdotes desta moralidade impante se extasiam na desarte de dominar vontades que não são as deles – possivelmente, porque as vontades deles ou são frígidas, ou se enovelam numa conspícua, mas inconfessável, promiscuidade. 
Será sempre uma totalitária exação que tem uma colheita por defeito ou por excesso. Sem meio termo plausível.

10.1.20

Capítulo sete


Grace Jones, “La Vie em Rose”, in https://www.youtube.com/watch?v=q1IYUvrn8gk
As palavras de todos os dias. Extinguem-se? Banalizam-se? Não. São as palavras de todos os dias que emprestam sentido aos dias todos. As palavras de todos os dias não recusam as palavras singulares, as que são resgatadas a um lugar escondido do vocabulário e embelezam um instante, uma frase, um sentido que está a precisar de sentido através das palavras a que vem jungido. Ou os afeiam, porque a peregrinação da alma assim o exige.
A “vida a cor-de-rosa” – exulta-se. E porquê a cor-de-rosa? Há quem renegue o cor-de-rosa. Os boçais marialvas que o decretam inaplicável a homens que honrem o seu gabarito (que, recorde-se, é a linhagem boçal e marialva, logo, não recomendável). Outras pessoas indispõem-se com o cor-de-rosa por razões diversas que mereceriam indagação noutra sede. Dizem, os outros que não têm apneia com a cor, que uma vida a cor-de-rosa é isenta de angústia, não sobressaltada por fantasmas que precisam de exorcismo. A vida a cor-de-rosa é uma composição de palavras que interioriza as palavras de todos os dias, um sentido comum com um significado reconhecido pela maioria. E como será uma vida a cor-de-rosa para os boçais marialvas e para as pessoas que, por uma qualquer razão, repudiam o cor-de-rosa?
As palavras comuns ditam um sentido que se irradia, tornando-se convencional. Mas o que dirão as pessoas que, por exemplo, têm no preto a sua cor preferida? Podem adulterar a expressão vulgarizada, de si dizendo (se estiverem satisfeitos com a vida que levam) que estão enamorados com a vida a preto. A “vida a preto”: não soa bem? Aos costumes, não. Se alguém se confessar num périplo com a vida a preto, a expressão de comiseração não demora. A maioria considera que a vida a preto é sinónimo de luto, ou de constante inquietação por causas exteriores ao domínio da vontade.
As palavras de todos os dias são palavras de todos os dias para quem assim as reconhece. Não constituem uma medida absoluta. Não devem obrigar quem nelas não se revê a usar uma legenda de cada vez que afirma a sua pessoal e adulterada versão da expressão, corrompendo o sentido das palavras de todos os dias. Não há palavras de todos os dias. Apenas palavras, com o desenho que lhes é emprestado pelas diferenças entre as pessoas, pelos diferentes estados de espírito, pelas diferentes preferências, pelos diferentes matizes como a mesma palavra pode ser decifrada. 
Há palavras e hermenêutica, uma empreitada muito desvalorizada nos tempos atuais.

9.1.20

Mãos à obra (short stories #191)


Jambinai, “Connection”, in https://www.youtube.com/watch?v=mpmtnLLZPcg
          Deste cimento que só tem história futura, uso dose moderada para assentar a obra. Espero fruir da obra e deixar que os que dela queiram ter usucapião consigam seus intentos: a obra não obedece à regra da exclusão do uso; é uma obra para memória futura. Não temo os temores sacrificiais inscritos no caderno de encargos. Não fiz cálculos sobre a resistência dos materiais, que a matemática não é o meu forte. O meu forte são as bainhas das palavras que se escondem nos contrafortes da obra. Não estão lá escritas, que as paredes caiadas não deixam que nelas se deponha nada para além da cal. As palavras pressentem-se quando os pés se metem nas suas entranhas. É como se subissem do chão e se embebessem nos corpos dos visitantes, transfigurados em autênticos poemas vivos, andantes. Por isso, meto as mãos à obra. As mãos sufragam os alicerces com a medida de sua solidez. Congeminam a feitura das paredes, dando a forma à obra, as arestas aparadas pela graciosidade das mãos obreiras. Para tanto, abro uma exceção, eu que estou convencido da inaptidão para a empreitada. Abro uma exceção e deixo que as mãos caiam sobre a obra e a façam através do estirador dos dedos meticulosos, cuidadosos, artesãos. No fim de cada dia, vendo como a obra progride nem que seja uns modestos centímetros, sussurro uma jura para o dia vindouro: “mãos à obra!” Quero da obra que as mãos se saibam saciadas, ao verem, quando a obra tiver finalização, a obra por elas erguida. Esse é o incentivo que abate as contrariedades que um dia sombrio possa tecer. E, no dia seguinte, acordo com o incentivo de meter as mãos à obra. Nem que seja para a fazer avançar uns poucos centímetros. Pois as mãos obreiras estipulam o seu próprio caderno de encargos e do resto (o seu cumprimento) cuida a vontade rebelde.

8.1.20

O otimista acidental


Neon Indian, “Toyota Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=-jvkHxmeNXc
Incongruência de método: exercitava uma irritação emblemática contra os otimistas empedernidos, os que exsudam boa disposição permanente e a ostentam como medalha contagiante. E, todavia, não encontrava os rudimentos para se situar na trincheira contrária. Deplorava o pessimismo metódico. Repudiava os conservadores irremediáveis que militam contra a modernidade (e ele há sempre uma modernidade a tingir cada tempo que passa). Os aflitivos críticos exponenciais eram corpos estranhos, via-os como gente angustiada, consumida pelo seu próprio sangue corrompido pelo veneno que destilam pelos poros.  
Era um otimista, por princípio. Sem convicção. Não podia de si dizer que alimentava uma tocha estruturalmente otimista. Se fosse preciso, dava o flanco para admitir que também era assaltado por dúvidas que o colocavam no ermo do pessimismo. Não é com dificuldade que se encontram provas, e não apenas circunstanciais, das náuseas que afeiam o mundo. Ato contínuo, à recordação subiam os indefetíveis do pessimismo (antropológico e de outras estirpes) e depressa suprimia os laivos de pessimismo sob a custódia do seu exigível oposto. Mas não tinha condições para ser um otimista descomprometido. Sentia a exigência de colocar condições ao otimismo, para que o otimismo não caísse no logro da banalidade e não fosse condenado ao esvaziamento por dentro.
Aceitava que dele se dissesse ser um otimista cauteloso. Já era mais do que mera retórica, a posição estabelecida: recusava a decadência do pessimismo, por causa da contaminação dos seus dogmáticos, que considerava gente não recomendável. Tinha, contudo, os desalmadamente otimistas como igualmente recusáveis, por motivos diferentes. 
Não era isenta de danos, esta posição. Durante muito tempo, causara-lhe espécie a equidistância, o ponto cardeal que o distanciava, em doses iguais, de cardinais que se opunham. Não alinhava pelo estalão das meias-medidas. Isso era dantes. Agora, já não é um embaraço. Contudo, não aceita ser arregimentado na equidistância entre os abnegados otimistas e os circunspetos pessimistas.  
Era um otimista, porque a teoria geral da relativização das coisas (por si cunhada) ensinava que do ponto em que nos situamos temos a possibilidade de testemunhar quem se encontra em pior posição. Este era o incentivo para o otimismo. Um otimismo metódico, não destravado e acrítico, mas acidental. Triunfante por não olhar para o mundo e as pessoas e as coisas que o compõem como uma aguarela sem cores, plúmbea, tristonha, boçalmente decadente. Sabendo, contudo, que não encerra em si um perene e radioso arco-íris, o mundo retratado aos seus olhos.

7.1.20

Incógnita


Portishead, “Machine Gun” (live on Later With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=oCAIsPz8nWg
De rastos. Sentia-se de rastos. Ou os restos de si próprio. Advertiam os penhorados vultos em forma de capital que esse devia ser o seu estado, que a moralidade dominante ensina que a felicidade é uma extravagância pecaminosa, evitável.
Não estava convencido que pudesse ser convocado para o banco dos réus onde se joga a validade das abjurações. Procurou contornar as fronteiras da consciência. Não sabia localizá-las. A qualidade da retórica não assistia os argumentos. Não podia esperar contemplação na hora certa do julgamento esperado. É possível que os juízes subissem ao púlpito sem darem a conhecer os rostos. Seriam juízes incógnitos, para cercearem as moratórias dos réus. Juízes incógnitos, para um processo incógnito. Desconhecidas, as garantias.
Não se recordava de ter consultado a acusação. Sabia que era acusado, mas não o crime de que vinha acusado. Não podia prever o julgamento por omissão. Nem seriam precisos agentes de autoridade para coagir a presença no tribunal incógnito. Uma força inapelável cuidaria de o empurrar para o tribunal, mesmo contra a vontade. No dia e hora marcados, estaria no tribunal a aguardar o julgamento, sitiado por uma irremediável esquizofrenia: ao mesmo tempo que temia o pleito e não confiava na imparcialidade dos juízes, queria submeter-se ao julgamento. Intuía que era o único modo de arrumar com o processo, ciente (no que a memória permitia caucionar) que o perdão dependia da absolvição em juízo. 
Se a lucidez não estivesse embaciada, poderia ter interrogado se tinha acolhimento um salto metodológico: que notificação tem vencimento se os corredores interiores do pensamento não reconhecem a infração? De que absolvição se fala se não há permissão para o perdão, já que a transgressão não é reconhecida? 
A demanda não podia ficar sem resposta. Não sabia das cores que preenchiam a culpa sem rosto. Não sabia como tratar a incógnita que deixava a equação em suspenso. Se ao menos o arrependimento não adiasse o tempo, podia encontrar o dedo acusatório entre os despojos do venal labirinto deixados como ruínas da encruzilhada. 

6.1.20

Coisas concretas


Cowboy Junkies, “Sweet Jane”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fa9nN3G2CSg
I
Um minarete irrompe do nada, quebrando o silêncio da alvorada. Os fiéis respondem ao chamamento. Saem para a mesquita, substituindo-se ao silêncio que dominava a cidade.
II
A pistola abandonada no banco do jardim parece um cadáver de si mesmo. Os dois meninos, acabados de sair da escola, encontram a pistola. Não se perguntam quantos cadáveres terá feito a pistola. 
III
Serão as sombras do entardecer a imagem de um vulto que é o fingimento de alguém que quer ser tutor do anonimato?
IV
Havia uma brisa, uma leve brisa, que não descompunha a manhã. O mar ressentia-se. As ondas cresciam com a ajuda da brisa, possivelmente localizada mesmo antes da rebentação. Depois de quebradas, as ondas davam lugar a um mar que se alojava na primeira areia.
V
Ela desafiava: “contrapõe. Quero a tua oposição à minha ideia.” Ele não sabia o que dizer. Parecia sitiado num silêncio que não sabia derrotar. Disse: “considera anuência o meu silêncio.”
VI
Algures entre o rio e os contrafortes da serrania, o arvoredo atuava como fronteira. Ou como transição entre dois ecossistemas diferentes. Esse era o logro. As diferenças não precisam de transição.
VII
Possivelmente, a miragem não era uma miragem. Seria uma imagem virada do avesso e sonhada por fora, com as paredes baças a servirem de palco.
VIII
Quais são os atributos de uma pessoa boa? Não conseguia responder. Não sabia identificar uma pessoa boa.
IX
Pensava na morte. No pós-morte, quando (dizem as convenções) somos todos matéria inerte e não conseguimos ser espectadores do próprio decesso. Afinal, não valia a pena pensar na morte.
X
Um duodécimo da paciência anual, era tudo o que dizia precisar para não ser vítima de si mesmo. Nunca soubera congeminar se não a impaciência. A insensatez era a argamassa do resto.
XI
Os pequenos gatos – quatro, a ninhada inteira – espreitavam entre as ruínas que foram a sua maternidade. Entreolhavam tudo com desconfiança. Era a metáfora do mundo obnóxio, que é este.
XII
De dia, arrastava o seu corpo poltrão. À noite dinamitava a força interior em doses maciças de boémia. Sempre soubera que estava predestinado para viver em contramão. 

3.1.20

Um shot de hoje (short stories #190)


O Terno, “Pegando Leve”, in https://www.youtube.com/watch?v=SqAb_9xuYuc
          Não é à razão que deixamos rédea desenfreada. A razão; e o que é a razão? Se quiséssemos entrar pela semiologia, cuidaríamos de concluir que é um conceito. Apenas um conceito. E que a razão por trás do conceito fosse a razão da razão que, enquanto conceito, aparecia esvaziada. Olhamos para o dia corrente. O dia que importa. Decidimos abraçá-lo, como os gurus da moderna comunicação (os profetas do marketing) dizem de “abraçar um projeto” (não vá o projeto, de tão prodigioso, fugir entre os dedos; por isso é que se usam os braços, na totalidade). Usá-lo, até à medula. Desafiamos o dia: “mostra o que tens para nos dar, ó dia audaz!”. Não importa o tempo que está, porque o tempo, esse outro, o que encurta a cada dia a que dizemos adeus, é a medida que usamos para a nossa estatura. Perguntas, em desafio: “tomamos um shot de hoje?” Não rejeito a demanda. E partimos pela estrada, sem saber para onde vamos. Partimos, como se o asfalto fosse as páginas onde deixamos seladas as palavras que deixamos vir à boca. Dizemos nomes: nomes de terras, nomes de flores, nomes de escritores, nomes de filmes, nomes de músicos, os nomes que gostamos de chamar um ao outro. Entoamos a cor do amor, o seu nome. Tudo isto enquanto delibamos o shot de hoje. Pegamos numa máscara deixada ao acaso na berma. Não cuidamos das máscaras; é como os despojos do mar que ficam, avulsos, a afear a praia depois de um mar tempestuoso. As máscaras são o ardil do fingimento. Não queremos saber do fingimento (a não ser quando vamos ao teatro). Deixamos que os outros sejam o seu próprio teatro, à medida que somos os penhores dos palcos onde montamos o teatro sem fingimento de que somos lídimos dramaturgos. Enquanto apreciamos o shot de hoje. O intemporal shot.

2.1.20

A segunda maré (short stories #189)


Zero 7, “Passing By”, in https://www.youtube.com/watch?v=3q_MAzkGXjU
          O que nos conta o marégrafo? A espuma das ondas aviva a cal que se sentou na praia. Diz-se: é de esperar que as grandes incumbências não fiquem para segundas núpcias. Ao encontro das promessas, um arco-íris inesperado tinge as gotas que sobram da maré que beija a areia. Foi a primeira maré. Aquela que cumpre as possibilidades, num sortido de juras com o selo do notário. Mas não é a primeira a maré que vem desmatar os medos. Não é esta a maré que inspira o olhar. E o que vê o olhar? Sobram sobre o pano gasto as cicatrizes que estão em cima da pele. São suas substitutas. Não cumprem a função das cicatrizes tatuadas na pele, mas servem de inscrição para memória futura. O mar vaza. Dá lugar aos preparativos para a maré consecutiva. Os artesãos pacientes revistam o areal molhado, encontram o que o mar despejou na areia depois da maré que nela se gastou. O mar deixa um recado: “não imaginam o que tenho para trazer nos despojos da maré.” Não interessa. Porque o lugar que ocupamos, depois da maré intemperada, é o planalto servido na segunda maré. Estamos preparados. Intuímos os usos da maré, porque já nos adestramos na maré anterior, a que ficou como o santuário inaugural do dicionário por que nos regemos. A segunda maré anuncia-se. O vento está a preceito, o perfeito habitáculo que deixa pressentir o planalto da maré. Damos voz ao marégrafo. A areia que fora cemitério da maré anterior começa a ficar submersa. A água coloniza pedaços cada vez maiores da areia, que deixa de estar à mostra. E bebemos a maresia a combinar com o lúpulo que é a fermentação que nos aponta um norte. Pela noite, quando a segunda maré deixar seu testemunho, seremos ainda maiores.

1.1.20

Por entre os silêncios noturnos (short stories #188)


Nick Cave & the Bad Seeds, “Waiting for You”, in https://www.youtube.com/watch?v=e0vQTzYe9Lk
          O caudal sem rosto, silencioso, apresenta-se a serviço. Não quer comendas. Não quer reconhecimento. Quer apenas ser. Deseja que não sejam amurados os silêncios que se compõem na paisagem. Os silêncios que se compõem na remissão das palavras. Porque há no silêncio uma textura inigualável, palavras que amadurecem na peregrinação do pensamento. Um silêncio pode ser reparador. Antes do tempo. Quando sopesa as palavras que importa dizer e previne as palavras desastradas. Noturnos são os ávidos silêncios que tutelam o silêncio estrutural. Dizem: é quando o pensamento é mais fecundo. Quando se enraíza num húmus gourmet. Quando não tem interrupções de ruídos invasores. Ou de palavras embaraços, coalhando a lucidez. Por entre os silêncios noturnos, habilitam-se as ideias. Porventura infecundas, que a sua linhagem só se afere depois de ditas, depois de escritas e depois de decantadas, pelos outros e pelo próprio que é delas seu autor. Por entre as palavras noturnas, entre os suores frios e os vultos que adejam no infinito, lá longe, onde o infinito vegeta, indisponível e irrelevante, a parede estreita dos silêncios. Dos silêncios que se entrecortam nas palavras mudas, a medula mediata projetada no peito fértil. Antes que seja tarde, ou depois que seja cedo. Antes que venha a manhã e venha a palco o santuário das palavras a derrotar os silêncios heurísticos. Depois de ser erguido um monumento mundial de agradecimento aos silêncios, reparando a injustiça que o abraça. O campo fértil, desminado, onde os corpos se podem oferecer à fervura das palavras escondidas nos silêncios. Sem espadas embainhadas ou arestas aguçadas à espera de lancinar a pele desprotegida dos incautos. Um úbere onde fermenta a voracidade das palavras promitentes. Os silêncios são democráticos. São o único trono onde a igualdade se cumpre, plenamente. Os silêncios nunca se anunciam, ao contrário das palavras.