30.4.20

Cinto de segurança


Einstürzende Neubauten, “Redukt” (live in Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=XUv3mUZrV_I
Apanhado na montanha russa. O corpo sitiado em marés contrárias de forças centrífugas e de forças centrípetas. É como se bombas com luzes florescentes atingissem o corpo, vindas de todos os lados, e fosse impossível desviar delas. E as luzes, na sua incandescência, a medrar um apocalipse em tempo real, o psicadélico rapto da vontade. A montanha russa não é uma circunvalação, como dizem das montanhas russas. Não tem critério no itinerário. Se houvesse um mapa que tirasse as medidas à montanha russa, o mapa seria o espelho exato do caos. 
Levo o cinto de segurança. Não tenho de temer a agitação rabugenta da montanha russa. Estou seguro. E se o cinto de segurança não aguentar os solavancos estridentes da montanha russa? Ainda tenho tempo para a interrogação, empenhado pela voracidade da montanha russa que traz o rigor da agonia. Como ainda tenho tempo para alinhavar as bainhas de um pensamento e dele fruir uma interrogação, ali despojado pela fúria da montanha russa?
E se o cinto de segurança fugir aos critérios de segurança? Não tenho arnês substituto do cinto de segurança. Se o cinto de segurança naufragar, fico à mercê da montanha russa. Se ela quiser, atira-me borda fora. Depois, será o sortilégio da queda a cuidar do resto. E aguardar que não haja uma árvore pontiaguda pelo caminho a fazer o papel inverso do cinto de segurança. E que o corpo se adestre ao afunilamento do espaço enquanto a queda se materializa. 
Levo o cinto de segurança. Pelo que pude confirmar, no curto espaço de tempo entre duas curvas que cuidei de amaldiçoar, levo o cinto de segurança bem apertado. Não fosse ter sido negligente no aperto, aproveitei a folga entre as duas curvas para o cingir mais ao corpo, quase no limiar da asfixia. Não quero saber se vou herdar hematomas nas partes do corpo apertadas pelo cinto de segurança. Será o seguro de vida contra a demência da montanha russa.
Ainda não tive tempo de me interrogar por que fui embarcadiço na montanha russa, se agora o arrependimento tem vociferação audível no vernáculo que o pensamento segreda. Não faz diferença. Agarro-me com toda a força ao cinto de segurança, à revelia das forças gravitacionais que deformam o corpo. 
O cinto de segurança cuidou da minha segurança, para aplauso no estertor do pesadelo.

29.4.20

Inventário (short stories #210)


Sigur Rós, “Vidrar vel til Loftárása” (live in Reykjavík), in https://www.youtube.com/watch?v=iTtLbXB8YGo
          Uma reta sem fim. A estrada converge no horizonte, funde-se com ele. A estada é o mar que desagua no horizonte. É entardecer. Nuvens avulsas somam-se à luz desmaiada. Parece de propósito. Os senescentes raios do sol, que a esta hora se inclinam para o acobreado, matizam as nuvens. Não se dirá que as nuvens açambarcam o céu, tingido com o seu acinzentado rosto que apressa o ocaso. O acobreado do céu evoca a finitude do dia, como se o dia protestasse contra o óbito. E as pessoas, encantadas com o postal poético, perfilam-se na esplanada, olhar fixo no horizonte, à espera que cada milímetro do sol se dissolva no imperturbável firmamento. Não se diga que é um malefício da humanidade, este prazer perverso pela decadência. O entardecer pressagia o fim de um dia. A sua morte. Aquele dia, como todos os dias, é irrepetível. Mesmo que se tornem uma enfadonha sucessão de rotinas e pareça que os dias se repetem, cada dia é irrepetível. Como espetadores da sua decadência, sentados na esplanada, somos procuradores do inventário do dia. Não temos a ousadia de lhe perguntar pelo deve e haver, que o dia é curador de milhões de vidas. Limitamo-nos a observar o seu vagaroso ocaso. Testemunhas do seu trespasse. Sossegamo-nos. É a finitude daquele dia. Sabemos que amanhã se levantará outro dia quando o sol se cansar da noite e a deixar postergada. E quem fará o inventário da noite? Não somos nós. Seguimos pela noite fora reféns do sono. Os sonhos que nos tutelam farão o inventário da noite em nossa vez. É um sortilégio que não conseguimos domar. Os sentidos são os juízes máximos do que, no posto de observação, é trazido ao olhar. Recuamos ao entardecer de véspera. Não é em todos os entardeceres que a luz desmaiada do ocaso se funde com as nuvens avulsas que se emprestam ao céu. Os momentos singulares merecem um lugar diferente na memória. Em favor do nosso inventário.

28.4.20

Perímetro


Explosions in the Sky, “Postcard From 1952”, in https://www.youtube.com/watch?v=6obrtC66VyE
Este é um lado. O lado acolhedor dos exilados. As pontas das cordas ajeitam-se para o cobertor se prestar a ser refúgio contra o frio da noite. As vozes sussurram, em surdina. Não se intui o que falam. Ao canto, uma senhora idosa dormita. À entrada, dois capatazes asseguram a integridade do lugar. Sabe-se lá por que penhor se move a empreitada. Por que nortes se adestram as vontades.
Não apetece aprovar a jugular do medo. O delicado estertor parece ser uma morada final. Mas não é. Diz-se que somos cataventos diligentes. E dos ventos que nos chegam conseguimos extrair os frutos que não negligenciamos. Não daremos o flanco aos intérpretes dolosos. Não saberemos ser ingénuos no perímetro do refúgio. Assentamos sobre as contingências que não anuímos, que não são nossa autoria. Às vezes, parece difícil distinguir o sonho onde se amontoam as personagens fictícias de uma peça de teatro. Não sabemos ao certo onde está o firme propósito das fronteiras. 
Ao menos, se o amanhã viesse na companhia de um sorriso largo e do sol retemperador, podia ser que valesse a pena dormir sobre o sonho incógnito. Mas ninguém sabe do paradeiro dos sonhos. Ninguém os inventaria. Provavelmente, a metáfora do dia ungido por um sorriso largo e pelo sol retemperador é um logro. Uma armadilha, para cativar a ingenuidade. O passo certeiro para dela sermos vítimas. Que seja preferida a desconfiança como método. Se o dia vem com a aprovação de um sol sorridente, temos de convir que é tanta a magnanimidade que podemos ficar de pé atrás, perguntando pela paga que nos espera. 
Ao menos, os dias enigmáticos e chuvosos não escondem nada. É como são. O seu perímetro não entretece aventuras nómadas, saltando as fronteiras que escondem outras fronteiras. Não se pense que este é um monólogo sisudo. Não seja acusado de estreitar os corredores por onde me movo. As páginas que se multiplicam são um bónus. Ao mesmo tempo, um território tão vasto que ninguém consegue domá-lo por sua conta e risco. 
Às vezes, preferimos a modéstia dos propósitos. O seu perímetro circunscrito às monásticas dimensões que acautelam o rigor. Porque tutelamos o feixe de circunstâncias. Deixamos a ambição, a imensa sede do conhecimento, um mar apalavrado, para um palco a preceito.

27.4.20

O desassossego (short stories #209)


Joy Division, “Twenty Four Hours”, in https://www.youtube.com/watch?v=VnM9X0IgUmg
          As linhas que se projetam das mãos fundem-se nas nuvens estáticas. A falsa sensação de fausto anestesia as pessoas. Em demanda de refúgio, descobre um povoado onde as insaciáveis misérias da alma encontram porto de descanso. Subindo à cumeeira, onde o ar respirado é paradoxal (mais límpido, mas rarefeito), encontra a arena extática sem contratempos por perto. Sozinho, imagina as paisagens bucólicas escondidas em cada fragmento da imagem. As mãos estendem-se, como se desenhassem a paisagem. A sucessão de montes e vales, os rios escondidos, as florestas que entrecortam a aridez das montanhas, uns leves arabescos no céu em forma de rudimentares nuvens, e o suor que se despede da pele enquanto os olhos repousam no torpor do miradouro, reinventando a gramática interior. Há um indecifrável equívoco que atravessa os veios da alma. A dorna onde o sono se extingue, prematuro, verte uma certa tumefação. Não sabe de onde provém o desassossego. Talvez esteja errado e o desassossego não seja caução do sono amputado. É um desassossego heurístico. Sede sem freio pelo conhecimento. As tornas em forma de interrogações. Diligente, o raciocínio desatrela-se da letargia. Salta todas as fronteiras, como se fosse um meteorito à espera de beijar uma porção de chão. Provavelmente, este desassossego coloca-o na posição de pária, ou, na melhor das hipóteses, como aberração. Não importa. Não pode transigir com outro critério. Hasteia o rosto impressivo diante das janelas que, de abertas serem, estão de atalaia ao que vem depois. Os jardins aformoseiam-se à espera do cunho do futuro. Esse é o desassossego, a impaciência de não aceitar a espera pela espera que não pode ladear. Há um tempo furtivo que ladra ao ouvido, repetindo as mesmas frases que chegam a ser ininteligíveis. O desassossego não é um lúdico estandarte que se consome na frivolidade de si mesmo. É o penhor das equações que transformam a matéria árida em pedaços de ouro, sem preço. 

24.4.20

Boiler room (short stories #208)


Blur, “The Universal”, in https://www.youtube.com/watch?v=BrbxWOMpwfs
          Uma montanha de livros em cerco higiénico. A música ao acaso – entrego a escolha à devassa do algoritmo. Uma folha de papel sobre a minha direita (à mão da escrita – à mão direita). Um copo de vinho. Começa a leitura irredentista. Como se fosse nómada, deliberando entre a pilha de livros, um escolhido ao acaso para, minutos depois, dar lugar a outro e por aí fora. Enquanto as aleatórias músicas se sucedem, entrecortadas com palavras anotadas com o peso da mão: “O estuário oferece ao olhar as muralhas desembainhadas, como se o rio estivesse preparado para receber o mar.” Estrutura-se o verbo na carruagem do estio. O estuário passeia na tela imaginária, como se houvesse pelo meio o testemunho da alma insubmissa. “Se ao menos soubesse como são soletradas as palavras quiméricas; se ao menos as soubesse, essas quimeras, podia libertar-me do jugo que me mantém cativo. Contenho em mim a matéria-prima da liberdade. Sei que um dia terei entre mãos essas palavras quiméricas. Até lá, vou adestrando a fala nas sílabas que as compõem. Para não ficar a meio do caminho, no tempo certo.” Não sei que horas são. Os sentidos atropelam-se. A latitude das ideias não arrefece com a boémia imanente. Há livros fora do sítio. Livros que ficaram abertos com as páginas viradas para baixo, como marcador da página, sua mnemónica. Sei que do outro lado da parede se move o mundo inteiro. Mas pressinto que no higiénico cerco em que estou não há firmamento que se anteponha. Fujo do lugar-comum (podia dizer: “o céu é o limite e eu sou o meu céu”, mas a mão direita rasurou, com contundência, o esboço). Sou um turbilhão de ideias que se fundem no paredão da voracidade. Contam as palavras, como gotas de vinho, e todo esse mantimento alinhava frases avulsas. “Tomara que na sela das palavras viesse um demiúrgico momento. E da imaginação fruísse o mapa que sou.”

23.4.20

Pensar fora da caixa


...And You Will Know Us By the Trail of Dead, “The Rest Will Follow”, in https://www.youtube.com/watch?v=5itgMTaJSo8
Fico intrigado quando alguém desafia a que se “pense fora da caixa”. Admitir que o pensamento labora dentro de uma caixa é uma confissão da limitação do pensamento. Diga-se: do pensamento que alguém limita às fronteiras da caixa, mas do próprio pensamento que se reclama fora da caixa. Se nos restringirmos a categorias herméticas, quem garante que os peticionários do pensamento fora da caixa não têm a sua caixa onde labora o pensamento?
É nestas alturas de sobressalto contínuo e coletivo que mais se investe para que o pensamento venha para fora da caixa. O que também me intriga. Quem se acomoda ao pensamento rotineiro, às mesmas sinapses que contribuem para as mesmas ideias e para as mesmas leituras do que se passa à sua volta? Fora dos tempos críticos é mais fácil a acomodação ao pensamento dentro da caixa. Para tempos normais, pensamento normal. Sem que as pessoas sejam capazes de dar conta como são mesquinhos intérpretes de um conformismo que só não é letal porque o pensamento que fica dentro das fronteiras do pensamento (dentro da caixa, portanto) não agride mais ninguém a não ser o seu fautor. Dir-se-ia, contra esta maré enfadonha, em protesto contra a normalidade e as baias estreitas do pensamento a condizer: o pensamento, até nas épocas normais, não deve obedecer a fronteiras. Para não perder a validade enquanto pensamento. Um pensamento que se reproduz ao infinito deixa de ser pensamento. Passa a ser lugar-comum, mnemónica dos acomodados, o plágio mais banal.
Deve o pensamento sair da caixa? Não estou seguro de que assim seja. Independentemente de a maré ser de feição ou de ser ter posto um mar tumultuoso. Se o pensamento sai da caixa, quem nos convence que ele não é aquartelado noutra caixa? É o que costuma acontecer com os ascetas do “pensamento fora da caixa”. É pensamento fora da caixa para os cânones. Mas está aprisionado noutra caixa, com outras paredes e outra semântica, com alinhavos diferentes. Mas é sempre uma caixa. Outra caixa. O pensamento fora da caixa não deixa de ser um pensamento dentro de outra caixa. Caixa por caixa, não se há de notar a diferença – a não ser pelos partidários da caixa fora da caixa e pelos que saírem da zona de conforto e experimentarem o pensamento fora da outrora sua caixa. 
O pensamento devia-se emancipar do pensamento para ver em que cais podia fundear, sem deixar de ser pensamento. Sem estigmas, nem preconceitos, nem regras e esquadros metodicamente cingidos, sem a pulsão de destinar aos escombros o pensamento não perfilhado, sem haver um pensamento que desafia outros pensamentos para lhes ostentar a sua superioridade. Devíamo-nos contentar com o pensamento, o singelo pensamento. Sem rótulos, nem baraços, nem linhas geométricas, nem fronteiras escondidas atrás de fortalezas. Não devia haver pensamentos, na pluralidade. Apenas pensamento – meta-pensamento. Nem que mais não fosse, para não sermos invadidos, nas marés vivas que nos sobressaltam, por iluminados que peticionam (e patrocinam) um pensamento fora da caixa.

22.4.20

Do otimismo patogénico


The Fall, “Wings”, in https://www.youtube.com/watch?v=6m2lfk4Bm34
Opúsculos com prolixa propaganda sobre a felicidade perene. A soi-disant positividade da vida. Transpiram boa disposição, os seus arautos. É tanta a jovialidade que consegue ser enjoativa. De tal arte que nem o distanciamento preventivo dos militantes do pessimismo impede que estas sombrias personagens sejam adoráveis, em plano comparativo com os otimistas descomprometidos.
Tudo tem de ser encarado com um largo sorriso a enfeitar o rosto. Dizem: dê por onde der, há sempre um lado sorridente da vida, uma faceta que nos sorri mesmo que estejamos apoquentados por um ror de contrariedades. Viver é a essência máxima. Só de vivermos, tudo o resto compensa. Nem que seja porque o amanhã que nos espera só pode ser melhor. Somos nós que o industriamos. Somos os arquitetos únicos da vida que levamos. Temos o fado nas mãos. Cabe-nos cinzelá-lo com as cores encantadores que se emprestam à existência. Para luto há de chegar o da finitude da vida.
Este otimismo é enervante. Uma falácia. Não, o nosso viver não depende apenas de nós. Há toda uma constelação de circunstâncias que nos são exteriores e que, por vezes, parecem conspirar contra nós. Quando somos golpeados pelos contratempos que nos esperam sem pré-aviso, temos de cristãmente dar a outra face do rosto e prosseguir com um sorriso como se nada de mal houvesse acontecido? Ou, visto por outro ângulo: os apóstolos da felicidade perene, os que apascentam a positividade inquebrantável da vida, não são assaltados por perplexidades excruciantes, por dores vividas no tempo presente, por desenlaces que desencravam um pedaço de infelicidade? 
Só os que acreditam em vidas perfeitas – ou na perfeição ao alcance das pessoas – ousarão responder afirmativamente. Se a resposta à última interrogação for negativa, concluir-se-á que os apóstolos do otimismo imorredoiro são uns fingidores. Fingem que não têm males a arquear sobre o seu dorso. Fingem que só saboreiam as coisas boas. E o pior é que o sorriso inapagável, a felicidade tão contagiante que chega a cansar, é um fingimento ciclópico: estão-se a enganar a si mesmos. 

21.4.20

Personagem, ou personalidade?


Elastica, “Connection”, in https://www.youtube.com/watch?v=ilKcXIFi-Rc
Tirando o véu da ignorância, o que ficava à mostra era a nudez intrínseca, a verossimilhança de um eu que ia até à medula. Queria ser apenas um personagem. Passar os dias imerso no heurístico anonimato. Ser como as árvores que identificam a floresta: mais uma árvore, sem traços distintivos, capaz de percorrer as ruas sem ser notado pelo rosto. Se algum dia fosse personalidade, tinha a certeza que morria no dia seguinte.
No seu círculo de conhecimentos, havia quem desse o seu melhor para transitar de personagem a personalidade. Fazem lembrar aquelas personagens que fazem de pano de fundo quando o senhor ministro disto-ou-daquilo aparece solenemente perante as câmaras da televisão numa visita de trabalho. Estudam o ângulo da câmara que filma o senhor ministro e ajeitam-se, como se tivessem um esquadro mental que calculasse o ângulo meticuloso que os põe no campo de visão da câmara. É o equivalente aos bicos de pés dos arrivistas (não confundir como os bicos dos pés das bailarinas, que a expressão artística tem entrada direta no olimpo da estética). Raramente alcançam o desiderato, ficando-se pela categoria de personagens.
Não é fácil a evasão da personalidade. Isto é, querer ser personagem e não saber como evitar a transição para personalidade. Pode ser um processo irrevogável. Há quem seja herói improvável e ganhe os seus cinco minutos de fama que o projetam para o imemorial. A proeza, ao ficar emoldurada na memória coletiva, resgata a personagem para o escol das personalidades. Nem que seja uma entronização efémera, que hoje tudo é efémero e há personalidades que depressa se dissolvem no vazio do tempo passante. 
A derradeira hipótese são as personalidades que ainda não deram conta que ficaram reduzidas ao reduto das personagens que são. Ficaram esquecidas, porventura porque a memória coletiva é ingrata, ou porque perderam a visibilidade que outrora as trouxe do patamar de personagem para os holofotes em que habitam as personalidades. Às vezes, ficam irreconhecíveis. Pudera. Não aceitam que tenham passado a ser meras personagens. Consideram que ser personagem é uma despromoção. Angustiam com a despromoção.
E as quatro personagens – porque todos somos personagens, apesar de termos os nossos irrecusáveis direitos de personalidade – cruzam-se num momento que é convergente, para nele se sentirem em lugares profundamente divergentes. Velhos do Restelo pressagiariam que raramente se é aquilo que se deseja ser. Não estou tão seguro da profecia sombria. Tenho a impressão de que o numeroso exército de personagens prefere manter o anonimato.

20.4.20

A armadilha dos vinhateiros


CocoRosie, “Restless”, in https://www.youtube.com/watch?v=JUJIJIVJfsA
Não digais que não vos levou no braço a presunção. Da tez esbranquiçada se arremataram as divindades hasteadas e no sacerdócio inverosímil se consumiram as fogueiras atónitas. Pode ser, senhores meus, que os olhos do avesso estejam. Que procurem um cais fundido na névoa. Ou que intempéries irascíveis se abatam nos contrafortes da memória, adulterando a fala, adulterando o próprio tempo que se emacia. 
Não temais, senhores meus, a volúpia do entrecruzamento de palavras assaltadas pelas poucas dioptrias do acanhamento eructado. Os vetustos anfitriões perderam a fala, consumidos pelo verbete da insídia, tresmalhados nas margens irreproduzíveis onde acidulam os arbustos impróprios. Ao longe distingue-se um ajuntamento de pessoas; serão patrícios? Serão forasteiros? Tememos pelo nosso fado? Esperemos que as réplicas tenham o aval da trovoada que se pressente. Se os relâmpagos cobrirem a paisagem com seu troar, devemos saber o ajuntamento penhor de hostilidade. Se a tempestade apenas rasar o nosso lugar, não temais, senhores meus, que a horda não urdirá em nosso desfavor.
Não sejais temerários, que os heroísmos perderam gesta, mutilados pelo atavismo. Encarai a pele que usais como única, improvável manto onde as cicatrizes não desdenham tatuar-se. Há ulteriores desmodos que não convidam paráfrases abonançadas, veredas sem mapa que cedilham os pés com perfunctórias rochas povoadas de arestas. Teça-se um mapa nunca inventado, senhores meus, que não transigimos com a perda dos azimutes nem alcançamos a finitude da travessia no caminho emparedado.
Não vos apagais dos inventários amuralhados, senhores meus. Vosso não é o destino ungido pelas preces sem voz. Vossa não é a fala, a menos que seja requisitada por bispos desguarnecidos de sotainas. Havemos de levar de vencida os contratempos desassisados. Dos braços transidos repomos as sementes da lua, no opúsculo rarefeito tingido com a mais florida das fazendas. Sabemos adiante ser a morada escondida dos amadurecidos artesãos. Sabemos poder interpelá-los contra a mudez do mundo. Estamos por saber se refutações nos providenciarão enquanto, indiferentes, mergulham o olhar nas artes e matraqueiam umas palavras que não se distinguem da maquinaria destoada.  
Não recusemos as dádivas que se nos apresentam atreladas às costas cansadas. Não desconfiemos das intenções dos vinhateiros. Deles se diz serem demónios disfarçados, artesãos de um néctar por tantos demandado e, todavia, fautor de diligentes maleitas e recaídas. 
Oferecem-nos um copo do primeiro mosto retirado à pipa inaugural. Estejais convencidos, senhores meus, que desse mosto não se torna insubmissa a alma? Não percais a atalaia dos sentidos, senhores meus, antes que apanhados sejamos na mortificada roda dentada onde, decadentes, os polvorosos sentidos emagrecem no fogo extinto.

17.4.20

Fortaleza (short stories #207)


Imploding Stars, “Adulthood”, in https://www.youtube.com/watch?v=4pgYFj3w8tk
          Não peçam lágrimas de vidro no meio da intempérie. Não peçam mãos ágeis a meio de um contratempo. O estuário estreita-se perto da foz. Fica aprisionado numa camisa-de-forças e a corrente enfurece-se, esbarra contra a força explosiva do mar. Os remoinhos são formidáveis. Não por acaso, os barcos não ousam entrar ou sair do rio. É um estuário interdito. É como se fossem perenes as nuvens e do sol não houvesse se não uma tímida ideia, os olhos furtivos fugindo das suas ameias para saltarem sobre as nuvens. Não peçam a chuva vigilante se as nuvens não têm linhagem. Desconfio que há na minha fragilidade o rudimento da minha própria fortaleza. Da iminente humanidade em que me consumo, sem medo dos medos de atalaia, incorporo as vírgulas da humildade na fala. Não fujo, não finjo. Agarro-me à medula intemporal. Às vezes, fico com a impressão que guardo um vulcão profundo dentro de mim. Como se fosse o tutor de um sismo em espera, só para desarrumar as peças impecavelmente organizadas. E do caos sobrante, fazer futuro. Agiganto-me ao desconfiar da fortaleza que se arquiteta nas minhas costuras. Dedico ao saber parte do sangue fervente. A outra parte, deixo-a entregue ao desejo. Duas metades que se fazem inseparavelmente irmãs. Não volto aos lugares de outrora. Pertencem à arqueologia da memória, e a memória (caso seja preciso) é caução razoável. Procuro por cima do céu os lugares apetecíveis. O poema desarmadilhado. Matriz do corpo levitado em constantes marés que aprovam a noite. A integridade possível. Sei que sou fortaleza pelo estuário de fragilidade que me estilhaça em pedaços por sua vez mais fortes. Um murmúrio que adoça o sono enquanto de véspera se prepara o devir, na passividade com que é esperado. Os heróis são o logro de si mesmos. Imersões narcísicas que escondem fragilidades que envergonham. Eu não tenho vergonha das minhas fragilidades. Essa é a minha fortaleza.

16.4.20

Heráldica


Destroyer, “It Just Doesn’t Happen”, in https://www.youtube.com/watch?v=VmApPGE6Zio
Passei por um jipe da moda que ostentava na parte traseira um dístico com uma bandeira feita metade azul celeste e outra metade da alvura típica da ingenuidade. No meio, um escudo aludindo à realeza. Era um monárquico. 
Antes de ir por diante com a argumentação, fique registado para memória futura: as pessoas podem defender as ideias em que acreditam, saibam ou não porque acreditam nelas. Da mesma forma que um comunista tem direito a ser comunista, um monárquico tem direito a ser monárquico e qualquer pessoa tem direito a ser o que lhe apetece. Da mesma forma que exerço a minha liberdade de expressão para escarnecer dos monárquicos como a exerço para repudiar o comunismo (e como devo admitir que alguém me tome de espécie e de mim faça um ódio de estimação). Caso seja entendido como uma manifestação de intolerância, deixo-o à conta dos que assim tresleem a hermenêutica.
Ultrapassei o jipe e espreitei para tirar o retrato do condutor (não na aceção literal do termo). Condizia com o estereótipo. Bigode farfalhudo, levemente dobrado para dentro de si mesmo nas extremidades, um pullover azul sobre uma camisa de riscas, avantajado charuto a quadrar com o sobredimensionamento corporal. O resto, adivinho: sapato de vela, missa aos domingos, tourada quando está na época, caça com os amigos, jantaradas em casas de fado, onde arrotam alarvemente o seu marialvismo. (Uma dúvida: casas de putas depois das casas de fados?) Juram fidelidade à coroa, essa inexistência. Renegam a bandeira republicana, não reconhecendo a legitimidade dos presidentes que a encimam. Se não se esquecerem da coerência, não participam em eleições presidenciais, a menos que o candidato conservador e com a bênção da igreja corra o risco de ser derrotado pelo candidato de esquerda (caso em que se esquecem da coerência). São os chefes da família, pois as mulheres foram criadas por deus para serem obedientes aos homens e para os assistirem na consumação dos prazeres carnais. São contra o aborto, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra a eutanásia – são muito contra as liberdades de costumes e a liberdade das pessoas, em geral. O que quadra com a sua cosmovisão: juraram fidelidade ao rei, e estariam dispostos a sacrificar a vida pelo rei como epitome da pátria. O rei é tudo e tudo pelo rei. Por poucos, uma visão do mundo tão redutora.
Estes embaixadores da heráldica estacionaram no tempo. Ou foi o tempo não passou por eles, numa bizarra versão do elixir da juventude que é procurado por todos os que abjuram o envelhecimento – como se uma coisa atávica pudesse reproduzir um fogacho de juvenilidade: uma contradição de termos. Mergulhados no seu atavismo, são tão curiosidades antropológicas como os comunistas. Mas ninguém lhes chame conservadores. Não se pode conservar o que não existe. À monarquia, nem o formol lhe vale.

15.4.20

Acerto de contas (ou: portugalidade exacerbada, cortesia de uma pandemia)


Pavement, “Infinite Spark”, in https://www.youtube.com/watch?v=cO7P6vXbnok
Mote: não haverá coisa pior do que chamarem “Suécia do Sul” à terra pátria?
Não tenho a propensão para atribuir crédito aos adágios populares. Desta vez, peço de empréstimo um deles que é o retrato fidedigno do sentimento esquizofrénico que sobre nós se abate por estes dias de pandemia: “há males que vêm por bem”. E digo: sentimento esquizofrénico. Pois estamos amordaçados pelo pânico da doença e ao mesmo tempo ufanos de tanto sermos paradigma para os outros, que – diz-se – não têm tido a mesma sorte no combate à pandemia. 
É como se a pandemia fosse a oportunidade para fazermos um acerto de contas com uma portugalidade mal resolvida. Quando os tempos vão de feição, a tendência dominante para a melancolia (é o fado que resiste – e aqui uso o termo no sentido artístico) e um coletivo decair para a depressão colocam-nos como o pior dos exemplos. Estamos na cauda de quase tudo, quando é preciso puxar lustro ao desorgulho pátrio. Os outros são sempre exemplo. Nós não somos exemplo para nada. O que explica que, a espaços, quando um concidadão alcança notoriedade internacional e figura num escol, saímos temporariamente da depressão coletiva e fazemos nossas, como coletivo, as proezas do dito concidadão. 
Agora é tudo ao contrário. São tempos de emergência. As pessoas andam com medo de serem apanhadas pelo coronavírus. (Menos os inconscientes que estão convencidos que nada lhes pega e os velhinhos que se lamentam que se não morrem de mal morrem da cura e preferem morrer do mal.) O vírus viajou do oriente para o ocidente. Como estamos na extremidade ocidental da Europa e como teremos aprendido com os erros dos outros que nos antecederam no choque com o vírus, temos sido exibidos como exemplo para os outros países (de acordo com muita comunicação social). Até na política as armas foram depostas. Quase ninguém ousa criticar o governo. Os que se aventuram na empreitada, são imediatamente apostrofados – como se, por estes dias, uma extensão do estado de exceção fosse a proibição da crítica, dando cobertura à reanimação de uma união nacional sob pretexto da situação de emergência.
São exemplos atrás de exemplos. É o vice-primeiro ministro espanhol, homem de extrema-esquerda, que elogia o líder da oposição em Portugal por ter baixado as armas. Foi um enfermeiro português que cuidou do primeiro-ministro britânico durante a hospitalização para se curar do vírus. Ato contínuo, é o incansável presidente da república que telefona para o épico enfermeiro, condecorando o orgulho pátrio. São os vários países europeus que põem os olhos na estratégia portuguesa de combate à pandemia, tentando perceber o “milagre” (sem que os observadores cuidem de comparar os números com objetividade para perceberem que não há milagre). É o primeiro-ministro que põe em sentido o ministro das finanças holandês por este ter ultrajado a Espanha, como se fosse o procurador dos interesses espanhóis, quem sabe se por este país estar tão diminuído pela devastação do vírus que ficou sem reação política – e, ato contínuo, os jornais espanhóis aplaudem o que, de outro modo, seria entendido como uma ingerência. E é Portugal, alcunhado como a “Suécia do Sul”, exaltando o orgulho pátrio de muitos que travam conhecimento com a redenominação e ficam extasiados, os mesmos que exalçam a portugalidade e não se incomodam com a adulteração dessa essência identitária quando chamam “Suécia do Sul” ao seu país.
A mudança radical de hábitos de vida, de mão dada com o medo do contágio do vírus, tem semeado uma dose homeopática de vivo e intenso orgulho pátrio. Eis outro paradoxo nacional, de que fermenta uma idiossincrasia: é preciso estarmos à beira da apoplexia para exaltarmos a portugalidade. Pois, “há males que vêm por bem”.

14.4.20

O filósofo não inocentemente honesto


Branko, Ana Moura e Conan Osiris, “Vinte Vinte”, in https://www.youtube.com/watch?v=eORRKrcJ8BU
Talvez se possa elaborar agora uma modesta teoria da conspiração: e se (...) o sistema como o conhecemos está em profunda crise, que não pode continuar na sua forma liberal-permissiva existente e está a explorar implacavelmente as epidemias para impor um novo sistema? O resultado mais provável da epidemia é que um novo capitalismo bárbaro prevalecerá: muitos idosos e fracos serão sacrificados e deixados morrer, os trabalhadores terão de aceitar um padrão de vida muito mais baixo, o controlo digital das nossas vidas continuará a ser uma característica permanente, as distinções de classe tornar-se-ão (muito mais do que agora) uma questão de vida ou de morte
Slavoj Zizek, Pandemic! How Covid-19 Shakes the World, London: OR Books
Zizek volta a espalhar a confusão. Ainda a pandemia vai no adro e já deu ao prelo uma análise sobre o fenómeno. Limito-me à profecia auto realizável na citação que retirei do livro. 
(Ou a profecia que Zizek gostaria que se realizasse contra a sua linhagem ideológica, pois continua a ser um filósofo do apocalipse; aposto que Zizek ficaria sem objeto de observação se algum dia o mundo, ou um pedaço dele, correspondesse às suas preferências ideológicas).
O filósofo espanta pelo desassombro: admite, em registo irónico, que o desenho do futuro após a pandemia é uma “teoria da conspiração”. Mas não será uma teoria da conspiração inocente, nem Zizek se inocenta ao esboçar esta “teoria da conspiração”. Primeiro, o sistema capitalista está a explorar a pandemia para sobreviver à crise em que está mergulhado. Falta a prova. Um dos grandes problemas dos grandes “conspiracionistas” (se me é permitido o neologismo) é que congeminam elaboradas teorias, desenhadas com o propósito da demonstração à partida, antes mesmo de serem submetidas à comprovação empírica. As provas ficam para segundas núpcias – ou para o púlpito do esquecimento, quando já ninguém evocar a profecia, extinta na espuma da efemeridade, datada e inútil porque não corroborada. 
Segundo, o que aí vem, depois da pandemia passar, é o “capitalismo bárbaro”. Anda grande parte dos analistas (entre eles, filósofos) a pressagiar uma mudança no funcionamento da sociedade, com um novo equilíbrio entre Estado e mercado que passa pela deslocação do centro de gravidade para o Estado, e Zizek antecipa o “capitalismo bárbaro”. Admita-se que Zizek é, e tem sido, mais radical do que o mais radical dos filósofos que têm escrito provisoriamente sobre a pandemia. Zizek mantém que o aparelho do Estado contemporâneo é servil aos interesses do capitalismo. Será esse o pano de fundo para a profecia do “capitalismo bárbaro”, decerto com a complacência do Estado burguês que, mesmo depois da reconfiguração da sociedade e da relação entre Estado e mercado, continuará a ser servil aos interesses do capitalismo. 
Esta profecia não tem âncora nos factos observados. Sobretudo se dermos atenção, em alternativa ao catastrofismo militante de Zizek, a outros analistas (entre eles, filósofos) que pressentem o fim do “neoliberalismo” como consequência da pandemia, porque o combate ao coronavírus tem exigido um Estado forte como não há memória desde o fim da segunda guerra mundial. Zizek há de situar esses analistas entre o séquito do Estado burguês e dos que são complacentes com o capitalismo que há de despontar com uma carantonha bárbara. A pandemia terá servido, de acordo com a História do futuro assinada por Zizek, para salvar o capitalismo (e o Estado burguês, possivelmente indistinguíveis) do seu estertor. Em vez da decadência, a pandemia salivará um capitalismo ainda mais forte e intrusivo, mercê de uma pandemia a preceito e com a cumplicidade de um Estado revitalizado.
Até ver (mas, admito, ainda há muito, e decisivo, por ver), o fortalecimento do Estado tem vindo acompanhado de alguma sensibilidade social das empresas. As provas não faltam, mesmo que muitas empresas estejam vegetativas e muitos dos grandes conglomerados empresariais tenham de aprender a conviver com perdas a que não estavam habituados. Aplicam-se exceções, com capitalistas inescrupulosos que se aproveitam soezmente de oportunidades geradas pelo combate à pandemia. Mas onde não há exceções a considerar (a começar pelo próprio estado de exceção decretado por quase todos os países)? 
O que temos pela frente não são teorias da conspiração: são interrogações. Interrogações que se alicerçam no conhecimento dos factos até ao presente e na interpretação que deles fazemos. Não há interpretações universais e ungidas pelo placebo da objetividade. Ainda bem que assim é. Percebo – e até perfilho, em alguma medida – as perplexidades de Zizek quanto ao exagero do estado de exceção que pode sobrar como critério para o futuro; como a submissão aos ditames da vigilância digital pode constituir um precedente para o futuro, limitando seriamente as nossas liberdades. Mas isso enquadra uma teoria do fortalecimento do Estado que corresponde a um enfraquecimento do mercado. Usando outro ângulo de análise, pode ser o pretexto para o Estado recuperar as rédeas do processo político, ele que as tinha perdido com a globalização e a interdependência que foram minando a autonomia da decisão política. Poderá ser o pretexto para o Estado vir de novo a cena, já não como o ator envergonhado que sabe, conscientemente, não ser o protagonista que foi no passado. Se alinharmos por esta visão, poderá ser a oportunidade para o Estado se “desaburguesar”.
A ter vencimento este cenário, não configura ele mais Estado e menos mercado, logo, menos espaço para o capitalismo condicionar o processo político como acontecia antes da pandemia? Isto não é profecia, nem teoria da conspiração; é uma interrogação que fica a germinar para o futuro.

13.4.20

Basalto (short stories #206)


Trent Reznor & Atticus Ross, “8 Billion”, in https://www.youtube.com/watch?v=crCEr1mMYM0
          A pedra-pomes estilhaça as cicatrizes. Ruído metálico que adivinha o verso do miradouro enquanto o milhafre descansa em voo de cruzeiro. Diziam: as imperatrizes são vultos silenciosos que escorregam entre as vírgulas do tempo, insinuam-se nos contrafortes das almas e delas fazem alimento. Sabia-se ser assim, mas ninguém obtinha provas que dessem vencimento à prescrição. O vulcão estava cheio de nada. Eram imagens decadentes de tempos faustosos, quando todos dele tinham medo. O vulcão satisfazia-se com a posição centrípeta na paisagem: julgava-se tutor da paisagem. As pedras enrugadas, enegrecidas, que depositara à sua volta, num perímetro imenso, eram o selo do seu outrora império. As pessoas desviam o olhar. Não querem ver a besta imponente que amedrontou os antepassados. Fingem, as pessoas. Escapa-se-lhes a soberba que podiam usar de vingança. Houvesse altivez para escarnecer do vulcão e do dia trariam o expoente máximo da sua grandeza. Mas estão banhadas em humildade, as pessoas. Agradecem a fertilidade do húmus basáltico. É o acerto de contas que as anima. Sabem que o vulcão se arrependeu. Sabem: toda aquela fertilidade que nasce dos interstícios do basalto é a compensação do emudecido vulcão. Das funduras do oceano cavadas pela lava impertinente retiram o ouro vivo que as mantém. E escrevem com os dedos fartos, no pano do céu, os poemas com que sagram o matrimónio com a contemplação interior de um bem sem medida. Olham-se nos olhos e sabem de cor as cores dos olhos outros. Não são pródigas na palavra falada – é como se os vestígios do vulcão dessem cobertura a um persistente existir austero, a recusa da exuberância. Ao longe, as pessoas erguem as mãos e elas deitam-se sobre a encosta do vulcão. Como se o estivessem a domar, num afago vagaroso que vem da medula. Feitas de basalto, as pessoas não são o espelho vivo da recusa. Sabem que amanhã o vulcão acordará no mesmo sítio, vigilante. 

10.4.20

Lançar os dados


Viagra Boys, “Common Sense”, in https://www.youtube.com/watch?v=xka8lz0UMes
Os dados dançam dentro da cova das mãos. Esperam pela sua vez. O lançador dos dados espera, por sua vez, que os dados diligentemente atirados lavrem o seu fado. É uma injustiça para os dados. Mal sabem que seu é esse papel, o de esculpir o logro que é o das pessoas que acreditam em sortilégios destes. 
Demoram-se, os dados, na contingência da dança repetida dentro da cova das mãos. Quem detém os dados prolonga a indecisão. Talvez o meticuloso agitar dos dados seja a caução de um fado melhor e os dados apreciem a demorada massagem, tornando-se generosos. Ou pode ser que a pessoa que detém os dados esteja inquieta, um laivo de medo assomando ao rosto enquanto pressente as várias hipóteses configuradas pelos dados que estão quase a ser lançados. É uma aritmética estreita. As combinações dos dados são limitadas. Ele há pessoas que se incomodam com os teares da complexidade e fazem o que for preciso para estreitarem as hipóteses, reduzindo-as (e a si mesmos, de caminho) a um punhado de possibilidades para as quais já sabem as respostas. A riqueza do mundo é-lhes um contratempo.
Os dados continuam a dançar. Aquele que será o seu atirador continua preso à hesitação. Agora que os dados estão encerrados no casulo que é composto pelas suas mãos encaixadas uma na outra, sabe que não pode recuar. Mesmo que não lançasse os dados, quando eles saíssem das mãos seriam um somatório. Seria como se tivesse lançado os dados mesmo que jurasse que essa não fora a intenção. Já não podia dizer que o somatório não contava. 
A respiração acelera. Os batimentos do coração também. Faz lembrar o guarda-redes deixado à sua solidão nos breves, mas longos, instantes que precedem o penalti (como no livro de Peter Handke). Num impulso, lança os dados e, sem conseguir reprimir, os olhos fecham-se. É o medo que sussurra fundo ao ouvido, entrando no pensamento como punhal que trespassa a carne. Pensa: nada disto faz sentido; oxalá não tivesse sido desapoderado do senso comum. Oxalá não tivesse desertado das coisas como elas são e em vez disso não tivesse encontrado refúgio na máscara dos dados. Parecia que tinha medo do que havia à sua volta. Medo do ser em que se tornara – ou do ser que sempre fora: noutros tempos, fora a dependência do biorritmo (quando vinha nos jornais) e noutros tempos depois, a dependência da astrologia. Nunca fora a sua legítima vontade. Não sabia do seu paradeiro.
Parecia que demitira a vontade própria. Uma fragilidade a que não conseguia escapar. Como fingimento de si mesmo e das coisas lá fora, passava o tempo em elucubrações que se seguiam à dança dos dados. Não era um passatempo. Era um modo de vida. A estreiteza dos corredores por onde vagueava. Ao menos, estava consciente do défice de senso comum – logo ele, que tinha uns poucos conhecidos que se lamentavam do excesso de senso comum.

9.4.20

O vírus é vingativo ou generoso? (Sobre o maniqueísmo)


Ouçam (uma carta imaginada do Covid-19 para os humanos), in https://www.youtube.com/watch?v=LiWO3m48HV0
“Assim como a saúde de uma árvore, de um rio, do céu vos mostra a qualidade da vossa própria saúde, o que poderá a qualidade da vossa saúde mostrar da saúde dos rios, das árvores, do céu e de todos nós que partilhamos este planeta convosco?”
Kristin Flyntz, “Uma carta imaginada do Covid-19 para os humanos”
A meio da excecionalidade presente, um manifesto tocante como porta-voz do vírus catastrófico. Mas o vírus, falando na primeira pessoa, não se apresenta com a medonha face, como é lugar-comum. O vírus é a personificação do meio ambiente que tem sido estragado por gerações sucessivas de homens e mulheres estultos. 
O vírus é a paga para a nossa desatenção com o ambiente. Um desafio, para repensarmos estilos de vida penhorados por doses excessivas de consumo, por sua vez predispondo crimes ambientais aos quais somos insensíveis, porque seus fautores primeiros. E um apelo para não sermos reféns do consumo, numa introspeção imperativa que convoca ao estilhaçar do materialismo. Não parámos a tempo e o mundo transborda, ameaça transbordar, para além dos seus limites. Não parámos a tempo e agora o vírus obrigou-nos a parar. O vírus, vingativo, dama de honor do ambiente maltratado. Ou o vírus em forma de emboscada em nome do ambiente, contra quem o tem destratado. Vingança, em estado puro.
O vírus forçou-nos a sentir que podemos viver nos antípodas do que fazíamos. Sem pressa. Sem pressão do tempo e de outras empreitadas. Sem precisarmos se não do frugal. Sem indiferença pelo outro, pois somos instados a ir “(...) para além das nossas preocupações individuais e [a considerarmos] as de todos.” Já não é tempo de sermos meros átomos de um todo; temos de perceber que somos meras partes do todo. O vírus promove o nosso reposicionamento. O vírus, bem-entendido, limita-se a proporcionar a oportunidade. Se aprendermos a sua lição (irrecusável, pois quem quer apanhar o vírus?), não há outro remédio se não o nosso reposicionamento. Do desprendimento dos bens materiais, na sua venal utilidade, num regresso à natureza – num regresso à nossa essência humana, não industriada pela conspiração do consumo. Agora que a natureza, por ação do parêntesis congeminado pelo vírus, ficou mais límpida, mais apetecível, obrigatoriamente visitável. Um mergulho na natureza que nos desvia das tentações do consumo, para deixarmos de ser meros peões às mãos do capitalismo. Um regresso à natureza em abono da nossa saúde, para não voltarmos a contemplar a ameaça do vírus como catástrofe coletiva. Somos desafiados a contemplar a natureza, para podermos responder a estas interrogações: “quanto precisam que [ela] seja saudável para que vocês também sejam saudáveis? Como a sua saúde contribui para a saúde da árvore, que contribui para a saúde do céu, para que vocês também sejam saudáveis?”.
O vírus ordena que paremos. Que interiorizemos o medo, que o medo é uma reação natural, legítima. Paremos: sejamos cultores da essencialidade humana, monástica no desprendimento. Desaproveitemos os cânones da desumanização a que fomos levados, sem percebermos esse estatuto. Não, o vírus não é, ele mesmo, o notário da desumanização em curso, com o estado de sítio que de nós faz entes com saudade das liberdades. Isso não é desumanização. Assim o proclama, categoricamente, o vírus. Porque o vírus autoanuncia-se generoso, vingativo e ao mesmo tempo generoso:
“[a]pesar do que possam pensar ou sentir, nós não somos o inimigo. Nós somos mensageiro. Nós somos aliado. Nós somos uma força de equilíbrio. E estamos a pedir-vos...que parem, que fiquem quietos. (...) Nós vamos ajudar-vos. Se ouvirem.”
A fórmula comovente tem o condão de despertar muitas consciências. Logo agora que as consciências fervilham de arrependimento e têm tempo para pensar, adormecidas na hibernação caseira. O que não é de gesta aceitável é um maniqueísmo que traduz o vírus na personificação do ambiente por tanto tempo lesado pela humanidade. Nem o maniqueísmo que se embebe nas mensagens subliminares, um programa inteiro de pedagogia ideológica. Como se o vírus fosse a vingança do ambiente a arquear-se sobre a má consciência das pessoas. Como se o vírus fosse, ao mesmo tempo, uma entidade caritativa que se constituiu momento heurístico para nos repensarmos como espécie.

8.4.20

Uns olhos tresmalhados


Einstürzende Neubauten, “Ten Grand Goldie”, in https://www.youtube.com/watch?v=4S_2Ki6F-iE
Não é espelho recomendável e os olhos não ficam reféns dos rendilhados das convenções. Não querendo ser como os boçais que deitam os cotovelos no amesendar, os olhos revelam-se tresmalhados, insubmissos. Não evitam o espelho pária. Não sabem a geografia que se desembacia através da teimosia do olhar; não capitulam no vago domínio da incerteza, uma incógnita imersa que podia caucionar um recuo ditado pela mão do medo.
Aos olhos tresmalhados, a geografia inaugurada depois das montanhas escaladas pode ser um corpo estranho. Um choque de costumes, dir-se-ia. Abalo sísmico. Esses são os efeitos levados ao olhar quando uma levada de água desconhecida e álgida se abate sobre o corpo inteiro, um choque térmico inesperado. O corpo estremece, um pouco de medo a jogar-se no trapézio das emoções inacabadas. Parece que um precipício habita por dentro do corpo. E o corpo constantemente no ermo, a debater-se com o precipício, sem medo que o precipício o emudeça. É o mesmo princípio básico de um olhar tresmalhado que prefere o alinhavo da originalidade.
As abóbadas do costume não ganham dimensão no olhar tresmalhado. O longo bocejo da habitualidade congemina um fogo áspero, os braços remexendo entre a lotaria inverosímil: é como se tudo fosse inacabado e o tempo fosse um sortilégio em demanda de um permanente descobrimento. O olhar tresmalhado não se intimida com as fronteiras inacessíveis. Coabita com a derrota do impossível e encomenda a superação. Não hão de ser os vetustos zeladores da habitualidade a desenhar o mapa por onde segue o olhar tresmalhado.
Os remorsos só convencem os que estão habituados a estar habituados. Não se fala de redenção. Não se fala de cura. Não há arrependimento emaciado, nem as maleitas povoam a geografia do olhar tresmalhado. A voz prolonga-se em ecos sucessivos, como se a cadeia de montanhas fosse aplanada no dorso da vontade irrecusável. O olhar tresmalhado foi ao outro lado da cadeia montanhosa e está em condições de descrever o que achou. Outro tanto não se diga do olhar féretro, o olhar contingente de si mesmo, os passos freados no simulacro da ausente ousadia, o olhar sem identidade.
Não é mister do olhar tresmalhado perfumar o lugar que habita com um paradigma. Não se lhe ajustam as dores de alma exteriores. Ao olhar tresmalhado importam as cercas levantadas, as fortalezas estilhaçadas, os verbos que deixaram de ser interditos, as palavras que deixaram de ser interlúdios, o rosto não vago das descobertas que no punho do dia se soerguem, ininterruptas.  

7.4.20

O horror tem um fim (polissemia)


Antony and the Johnsons, “The Horror Has Gone”, in https://www.youtube.com/watch?v=z4PNQ-6uNqs
*
O horror tem um fim: o casamento idílico entre malvadez e os seus autores. Não se precipita o horror sem uma particular conceção da sua maldade. Quem acredita no horror gratuito? Quem acredita no horror cominado sem intencionalidade? São patologias da alma, que dela fazem um campo não frequentável. Até pelos que o habitam. 
Esta maldade desatilhada não se justifica em si mesma. Não encontra, em seus meandros, uma estrutura mental justificativa. Por mais que os seus fautores vão às profundezas das grutas mentais e encontrem argumentos arrevessados que procurem uma razão para o horror cometido. Não deixam de ser autojustificações que se esgotam na insensibilidade dos argumentos, numa certa implausibilidade de quem se desobriga da responsabilidade dos horrores de que são responsáveis.
O horror tem sempre um fim. Não é um acaso. Não é um acidente não previsto na cartografia das intenções. O horror tem sempre um algoz e mártires. Amplifica-se para além dos limites orquestrados com a candura dos inocentes. O horror não pode ser um acontecimento em cascata; não pode ser a enxurrada que apanha alguém, levando-a a passar de vítima para algoz como reação à posição de vítima. O horror devia ter um fim na pessoa da sua vítima. Não devia ser possível o endosso de horrores, na interminável carantonha de horrores que desfeia toda a gente: quem os comete, quem deles é vítima e as testemunhas, aprisionadas pela impotência.
*
         O horror tem um fim. Chega ao fim. Não é imorredoiro. Essa é a melhor notícia sempre que um horror atravessa as fronteiras da lucidez. A História dita-o para os compêndios. Por mais que sejam excruciantes as dores de um horror, as vítimas esbracejam entre a espuma fétida do horror, espreitam pelo periscópio que deixa à mostra, no rescaldo do horror findo, a alvorada resplandecente. O método exige a paciência, um certo estoicismo criterioso.
Às vezes, as vítimas de um horror não vivem a tempo de o circuncisar. O horror precede-os na finitude. Perecem, exangues, derrotadas pelo horror que ainda não estava aprazado para a extinção. Num derradeiro suspiro, os senescentes adormecem com a grata certeza de que os sobreviventes hão de prolongar-se para além do horror. É uma questão de espera. Pelo ocaso do horror. Pois não há horror que se perenize.  
*
         Por onde começar: pelo fim, ou pelo começo?

6.4.20

Miopia


Davendra Bahnart (feat. Vashti Bunyan), “Will I See You Tonight?”, in https://www.youtube.com/watch?v=TtGBLOUt5jY

(Paciente – Senhor doutor: toco no rosto e dói-me; toco no braço e dói-me; toco no peito e dói-me. O que tenho?
Médico – Tem um dedo partido.)
Arnaldo está convencido do que disse. Está convencido da sua opinião, pois é a sua opinião e, por inerência, não é a opinião pensada através de outra cabeça. Até pode ter inspiração no pensamento de outros, mas ufana-se de ser guarda-freio do seu próprio pensamento. Gaba-se de ser um ser pensante. Não tem opiniões levianas. Atribui-lhes credibilidade porque as sabe estruturadas. Se há algo que o irrita é o comportamento das pessoas que têm uma ideia sem saberem porquê, aquelas pessoas que se prontificam a dizer “sim, porque sim”.
Mas Arnaldo não tem lucidez para entender que está acorrentado no interior de si, não sendo capaz de se ver por fora de si. É uma capacidade difícil de se obter, a de sair de si mesmo e do exterior fazer um auto de introspeção para apurar o que seria passível de mudança. 
(Se a mudança é um imperativo, pois a sede de perfeição é anómala.) 
Arnaldo sabe que não é perfeito. O lugar-comum é património adquirido da espécie. Mesmo que considerasse o contrário, ao arrepio das convenções, não seria aceitável pelos outros. Seria a emasculação de um narcisismo que muitos cometem em segredo, reservados ao íntimo onde às suas perguntas são eles mesmos intérpretes das respostas.
A Arnaldo falta o despojamento de si mesmo, como se conseguisse levitar sobre o seu ser para saber como é ser o seu ser. Mesmo que pondere as opiniões que afirma e as ideias que compulsa para o catálogo do pensamento, Arnaldo não admite que essas palavras, essas ideias, estejam fundamentalmente erradas. Não pode admitir. Se admitisse o lugar ao erro no que fala e no pensa, esvaziar-se-iam fala e pensamento. Ficaria refém de um intrigante nada, e o nada é um lugar que Arnaldo tem medo de habitar. 
Arnaldo é contumaz no exercício heurístico das interrogações. Muito embora considere que sopesa os argumentos antes de dar autoria a uma opinião ou de cimentar um pensamento, não tergiversa depois de selar a opinião ou o pensamento. Deixa de haver lugar às interrogações. Arnaldo tem medo de estar errado. O medo do erro faz esquecer as interrogações, como se tivessem sido dissolvidas e a verdade consequente fosse eterna. Como se estar errado fosse um ato doloso, a barbárie que o retira da tertúlia dos razoáveis. Arnaldo não contempla a hipótese de dar o flanco depois de alguém o questionar sobre uma fala ou um pensamento falado. O erro está na casa de partida, em quem hipoteca a raiz do pensamento e a fala que sobe à boca de Arnaldo. 
A Arnaldo falta a capacidade para se questionar desde o seu âmago. Falta a intrepidez de duvidar do pensamento. De o pôr constantemente à prova, não fechando a janela à possibilidade de estar errado, mesmo que a admissão do erro tenha o efeito equivalente do método tresmalhado que o conduziu à morada desse pensamento. Arnaldo vive obcecado com a verdade. Procura emoldurar a verdade – a verdade que considera como tal – no dorso de que faz página para as suas palavras, a constelação de um pensamento. Arnaldo não devia ter essa obsessão. Muitas vezes não é o peito, nem o braço, nem o rosto que doem; é o dedo que neles toca que contém a fratura.
Se ao menos alguém contasse a Arnaldo que não existe a verdade.

3.4.20

Praça das rosas perenes (short stories #205)


Nine Inch Nails, “Together”, in https://www.youtube.com/watch?v=ehNXOIpRr6c
          Diziam dos dias cercados que eram sonhos órfãos. Mortalhas à espera de corpos, mas de corpos vívidos, resplandecentes, respirando toda a vida que neles se continha. Corpos-vulcões, contra a consternação dos dias repetidamente sequestrados. Diziam que lá fora o silêncio estrutural fora substituído pelo banal rumor da cidade. As pessoas redescobriam as ruas. Redescobriam-se. Sentia-se que o sedentarismo não era o seu fado. Queriam sentir a epiderme das casas, mas por fora. Queriam voltar a cobrar o odor das rosas, naquela praça escondida num recanto só para conhecedores. Das rosas haveriam de beber um cálice de vida. Saberiam dizer como se entoava o perene. As pessoas resgatadas do exílio sabiam que não eram perenes; eram-no as rosas daquela praça, talvez mais do que a própria praça. As rosas estavam admiráveis como o estavam antes do sonho órfão que aprisionou as pessoas. Ganharam vivacidade. A sua cor era nítida como nunca se havia visto. Os olhos das pessoas eram generosos, ou as rosas estavam com saudades das pessoas. Elas demoravam-se, extasiadas, à frente dos canteiros onde as rosas se ordenavam, espigadas e extrovertidas. As rosas pareciam contemplar as pessoas que se extasiavam a olhá-las. Ninguém ousava colher uma rosa, como outrora acontecia avulso. As pessoas madrugavam para emoldurarem na memória o deslumbramento do orvalho a desprender-se das pétalas amanhecidas. Era como se respirassem através das rosas, numa invulgar fotossíntese humana. A praça fazia jus ao nome que as pessoas cunharam depois de se emanciparem do sonho sitiador. Ninguém dizia que tinha sido a última vez. As contingências são irreparáveis. Mas as pessoas queriam prometer que as rosas eram perenes. Não transigiam com agressões que vilipendiassem a lição aprendida. A praça era das rosas, não o contrário. As rosas, eram a caução da lucidez. E as pessoas, ao contrário de antigamente, não tinham inveja que as rosas fossem imorredoiras. 

2.4.20

Os mandatários do céu de chumbo


Siouxsie and the Banshees, “Kiss Them for Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=HpcNaqkrPm8
Os encartados regedores estavam em pulgas. Tempos destes, esta maré de exceção, o terreno fértil para lograrem o que de outro modo lhes estaria vedado. O complexo de farda, impertinente devaneio da autoridade, tinha a cobertura da lei e o consentimento dos súbditos (da sua maioria).
Não podiam dar parte de fraco, os regedores. Teriam sempre de lacrimejar o luto pelos tantos mortos que eram a caução do céu de chumbo persistente, o céu de chumbo que não parecia querer desapossar-se do palco à vista. Os lamentos anestesiavam a mão-de-ferro e acomodavam a anuência dos súbditos. Ficava sempre bem o pranto coletivo, sob o mote dos mandatários do céu de chumbo: “é com grande pesar e consternação que tomei conhecimento do falecimento do senhor...” Se não fosse pela hipocrisia, os mandantes do céu de chumbo não teriam tempo para se lembrarem sequer de uma das vítimas diárias, quanto mais para derramarem um pranto em homenagem a cada vítima. Mas a retórica sobrepõe-se ao demais. Ainda mais.
Pior do que a consagração dos mandatários do céu de chumbo era o numeroso exército de súbditos que protestavam. Não protestavam contra a mão-de-ferro que se abatia sobre os lenientes. Protestavam porque a mão era ainda mansa, apesar de já ser de ferro. Estas abencerragens de uns tempos idos saíam do armário e deleitavam-se com o céu de chumbo de que eram mandantes os meros regedores sem perspetiva além disso. Deleitavam-se com a imagem de uma mão ainda mais férrea e de um céu tremendamente pesado sobre as cabeças dos súbditos, de tal modo que ficariam silenciados por um ar tão pesado.
Com tanta apoplexia vertida nos seus cálices atentos, os súbditos não pressentiam a reinvenção das alfândegas que se julgavam arquivadas. Os lugares voltaram a ser uma sedentária expressão de melancolia, as pessoas impedidas de irem de um lugar ao outro. Os lugares, abraçados pelo silêncio da solidão. O cerco apertava-se enquanto as nuvens grisalhas se acastelavam e roubavam horizonte aos olhares descomprometidos. Para gáudio dos regedores que enfim chegaram à sua autêntica função. Para gáudio dos súbditos anestesiados pelo pânico, que eram doces cordeiros apascentados na imperativa obediência – ou eles próprios regedores abortados, em êxtase com simulações em que deles seria o mandato do céu de chumbo.
Faltava saber, ainda antes do tempo, que cicatrizes sobrariam para memória futura. Que cicatrizes da tanta apatia que fazia rima com o músculo adónico dos mandatários do céu de chumbo. Oxalá não fosse um ensaio do futuro em sua antecipação, o tempo virado do avesso e as entranhas das pessoas em seu absoluto descarnar.

1.4.20

O ringue onde as cabeças colidem e dão alimento à grandeza do mundo (short stories #211)


Pond, “Whatever Happened to the Million Head Collide” (live the 2017 Weather Tour), in https://www.youtube.com/watch?v=li7xQF9Xpyg
          As cabeças perfiladas, à espera de vez, à espera de serem o fermento de um desfile de ideias e de argumentos e de réplicas e de contra-argumentos. À espera de vez para falarem na sua vez, sem os atropelos dos impacientes que querem adulterar as desregras a seu favor. O ringue tem o chão coberto com o suor derramado pelas ideias em maiêutico digladiar. Estas deviam ser as únicas armas admitidas a concurso no mundo sem arestas. Os concursantes, libertos das algemas da superioridade, coibidos da sobranceria dos que querem colher uma coroa de louros que não lhes assenta, vão ao ringue num braço-de-ferro das ideias. São todos cavalheiros (sem os maneirismos proto-aristocráticos do Professor Espada). Oferecem argumentos. Eis a sua abnegação: oferecem argumentos aos rivais que coincidem no ringue. Os rivais têm de ouvir os argumentos uns dos outros, pelos outros oferecidos. E ainda que não fiquem convencidos, encorpam os argumentos servidos no ringue. Não se diga dos concursantes que vivem reduzidos à estreiteza das ideias de que são testas-de-ferro. Eis porque não é sangue o que sobra no ringue depois de encerrado o pleito. E até os mais experimentados nas lides, os que travaram conhecimento com ideias outras sem precisarem da longanimidade de outros concursantes, não saldam a sua participam com o véu da ignorância descido sobre o rosto. Lá fora, um mundo inteiro espera. À espera de ser maior depois da transfusão de ideias e de argumentos que inundou o ringue. Não deseja este mundo se não o apuramento dos feixes que se contrapõem; um mecenas que faça a síntese das ideias e dos argumentos levados a ringue para deles o mundo se inteirar e com eles deixar de estar confinado à pueril adolescência. E o mundo lá fora, à espera dos intrépidos gladiadores, espera com a paciência dos que estão apaixonadamente comprometidos com o saber.

O homem que não gostava de caviar


Grand Sun, “She Wants You”, in https://www.youtube.com/watch?v=vI5OZRCi1BE
Vernissage. Passam os canapés. E o – dizem – escol, o retrato de uma certa elite que despreza as convenções e que, no entanto, não dispensa tratos de polé, convivendo com os que cultivam a frivolidade da socialização dos altos estratos. 
Este homem tem de estar na vernissage. Contrariado. Está em representação de quem tem lugar cativo na celebração. Este homem está como peixe fora do lugar. Corpo estranho. Entretém-se com os canapés e a passar em revista o desfile de eminências pardas, os salvos-condutos de uma certa intelectualidade que, a espaços, se entrelaça com uns abencerragens do soi-disant pináculo social. Detestam-se; reformulando: os que frequentam tertúlias da intelectualidade escrevem páginas e páginas escorrendo o seu marxismo irreprimível, na negação absoluta do estrelato social dos outros com quem convivem naquele lugar; estes, desprovidos das mesmas capacidades de intelecto, aproveitam a oportunidade para o desfile de passarela, com a vantagem de virem na companhia dos intelectuais do lugar. Esperam que a inteligência seja por contágio.
Os canapés. Este homem não consegue descobrir os ingredientes de alguns dos canapés. A páginas tantas, o caviar. Este homem é alérgico a caviar. Não na literal aceção de alergia; não aprova o sabor do caviar, que lhe causou, no par de vezes que ensaiou a degustação, náuseas. É a hora do caviar. Os comensais despertam da conversa de ocasião, dos gestos fingidos, do sorriso forçado em reação à desajeitada graçola de outrem, porque a etiqueta exige a sociabilidade – é para isso, também, que inventaram as vernissages. O caviar desaparece num instante. Este homem ficou a um canto. Se não se engana, foi o único a ficar a um canto, recusando ao caviar. Os herdeiros do marxismo e os polidores da feérica visibilidade social convergiram no caviar. 
Depois do caviar, veio a função que trouxera a heterogénea fusão de gente à vernissage. O bardo que tinha um pé na intelectualidade e outro no púlpito social apresentava um livro. O bardo, em pose socialistamente aristocrata, não cabia dentro do seu ufanar à medida que o letrado convidado se desfazia em genuflexões e ditirambos sobre a obra e o seu autor (não necessariamente por esta ordem). Ainda se notavam uns grânulos de caviar nos interstícios dos dentes do letrado. Este homem que não gosta de caviar era capaz de jurar que, a certa altura, em extática glorificação do bardo, um perdigoto contendo um grânulo de caviar foi cuspido, aterrando no decote abundante de uma senhora da alta sociedade, que nem deu conta. Os despojos do caviar ali jazeram, na véspera dos seus fartos peitos, e só este homem que não gosta de caviar o conseguiu apreciar, à distância.
O homem que não gostava de caviar não aguentou até ao fim da função. O odor a caviar tartamudeava na sala, apoderando-se dela. Ninguém notou a sua ausência prematura. Ainda bem. À saída do lugar, resgatou a sua identidade.