29.5.20

Não serás estrela cadente (short stories #218)


Blur, “Charmless Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=p1a_4CN4onA
          Não é preciso muito. Um esforço modesto transfigura-se numa obra singular. Diga-se: não há montanhas insuperáveis; não há mares que não consigam ser sulcados por um navio adestrado. Se revelarmos o negativo, obtemos uma fotografia nítida nas mãos. Um esboço: não interessam os púlpitos onde amestrados figurantes da perfeição jogam numa rivalidade larvar. Orquestram os planos meticulosos, sem saberem que o inesperado pode dissolvê-los num toque destruidor. Não é preciso muito para uma vida se refazer de cima a baixo (na hipótese de ela não esmaecer no seu estertor). São improfícuos os batismos de alma que exibem impudores de grandeza. Se ao menos os candidatos a heróis soubessem que não passam da irrelevância intrínseca à lógica dos números (o que somos, se não uma casa infinitesimal na vasta estatística da espécie?), não se arrogariam tanto prestígio. Não seriam mais tarde acometidos pela dor pungente da decadência. É mais fácil ser uma estrela cadente, dirão, do que repousar a resplandecência perene no firmamento. A menos que o firmamento seja um castelo onde a alma coabita no seu fingimento. Não rimam os prolixos esteios da interior grandeza com os aromas do mundo. Ficam aquém das cores desmaiadas que compõem a paleta dominante. Por mais que tentem ser o arco-íris que empresta vivacidade ao demais, não governam a contingência. São atores menores num palco sobrepovoado. Quem assim se movimenta no imenso palco das intenções acaba a bolçar a ilusão em que se consome. A desafetação podia ser o sucedâneo e abraçar-se aos cometimentos modestos. Chega a mera ignição de um fósforo. O resto do fogo vem das veias abraseadas que forem submetidas ao altar da vontade.  O melhor critério é não aspirar a ser estrela, nem de si poder dizer que é um quinhão no mapa do céu. Esse modo garante que nunca se chega a ser estrela cadente.

28.5.20

Bola de neve


Joy Division, “Dead Souls”, in https://www.youtube.com/watch?v=kTdFsXc7zFg
Não servia, a escada. Por mais que a voz arranhasse os portões do tempo, nada acontecia. A indiferença batia no umbral da voz. Do verbo não sobrava a pele. Podia ser que a memória ajudasse. Um mergulho no pretérito seria a reivindicação da pureza que sabia ser demanda impossível. Mas nunca houve condenação de alguém por tentar o impossível. 
Às vezes, olhava à distância para a paisagem e sentia que se estivesse no sítio observado não faria parte dele. As bainhas que me delimitam são porosas. Vão e vêm no equilíbrio instável de um malabarista. Não digo que seja eu próprio malabar nas empreitadas que meto a peito. Exsudo a lava acumulada durante anos de calmaria, que por vezes mais parece o tempo ungido por um fingimento irrecusável. Fazer de conta que não se é importunado pelas coisas que estorvam pode não ser um estado de alma aconselhável. Não é por contornarmos as coisas espúrias que elas deixam de existir. 
Às minhas mãos vem o cimento da pertença. Contudo, continuo a não ter uma noção clara da pertença. Sei que jogo com a argamassa, estilizo-a em estatuária ser ter noção das figuras de que sou artesão. A maioria tem uma fala que parece inteligível. Talvez a minha fala não seja. E, por maior que seja o esforço meu, não consigo pertencer à pertença afivelada pela maioria – nem a minha semântica se aloja no inventário acessível. Parece que nasci para a dissidência. Procuro saber porquê. Ando às voltas há anos inteiros e ainda não consegui saber do paradeiro da resposta. Já me convenci que não há resposta por encontrar. Já me convenci que a ausência de linhagem não é um contratempo. É a minha pertença. Por exclusão de partes, a pertença a lado nenhum.
Pode ser que um dia me depare com uma bola de neve em plena descensão. E, com a bola de neve no meu caminho, consiga erguer as duas mãos e reverter o seu curso. Pois ninguém é penhor na minha vez. Não espero por alfaias alheias para industriar o plano imperfeito. É tudo o que desejo: um plano e, de preferência, imperfeito. Pois a perfeição é uma praga sem remédio.

27.5.20

Bandeira vermelha (short stories #217)


Patrick Watson, “Fireweed”, in https://www.youtube.com/watch?v=GGRV60jAfL0
          No parapeito da maré-viva, hasteada a bandeira vermelha. O melhor arnês era recusar o mar. O seu tumulto pressagiava a tragédia para os intrépidos que fossem mar adentro. Talvez não voltassem a ter os pés em terra. Esse era o anúncio cautelar da bandeira vermelha. Um escritor (cujo nome a memória não cauciona) dizia, em sua pose senatorial própria da vetusta idade, que a bandeira vermelha estival era uma metáfora da vida. (Ele não tinha a ousadia de reproduzir a bandeira vermelha como a metáfora da vida. Era uma das metáforas.) Às vezes, não se sabe do mapa das vielas onde podemos ser arrancados do sangue primacial. E metemos o corpo ao caminho, sem pressentirmos o labirinto que não tem porta de saída. Outras vezes, é a loucura que nos empurra para um lugar onde, chegados, percebemos que tem como hino a bandeira vermelha. Tarde de mais. A prelúcida metáfora desdobra-se no paradoxo da bandeira vermelha. São poucos os palcos mais arrebatadores do que o mar tumultuoso servido por uma maré-viva. A bandeira vermelha é o chamamento para os que se inebriam com a convulsão da maré desarmadilhada. Mas o chamamento costura-se numa margem de segurança, como se a bandeira vermelha tutelasse o irrecusável cinto de segurança. O mar iracundo não é generoso. Não oferece segundas oportunidades. Não é o melhor teatro para os temerários. Se a maré-viva estiver de mau humor, ou o jogo dos acasos soletrar o nome da morte, os audaciosos pagam com a vida. Os cânones ensinam que há proibições que não se congeminam apenas no secreto prazer de proibir-por-proibir dos mandantes. A maior coragem é a de guardar a vida num cofre com labiríntico código de segurança. A maré-viva não está com mesuras ou mordomias. Se o mar embravecido é um poema vivo à exaltação dos elementos, a bandeira vermelha é a mnemónica da segurança imperativa.

26.5.20

A porta sem forro


The Fall, “Touch Sensitive”, in https://www.youtube.com/watch?v=i90EMCj98es
- Invade-me a melancolia que bolça dos arriscados mapas retirados ao luar.
- É uma invasão contra a vontade?
- São todas. Conheces uma invasão feita no aprumo da maré?
- Eu posso entretecer as condições para que algo de mim se apodere. Se for exterior e me contaminar por dentro, será com o usufruto da vontade.
- Nesse caso não te será autorizado usar o termo “invasão”. A vontade que concorre para que algo do exterior se insinue por dentro de ti não admite uma invasão.
- Não podemos tentar um ponto de equilíbrio?
- Como dizes?
- O que nos é exterior pode passar a ser nossa pertença. A vontade é a caução necessária.
- Não usaste “invasão”.
- É do foro semântico. Não amesquinhemos o palco onde nos movemos. Sobrepujemos a substância ao rigor formal. Dizias no início que a melancolia te invadia. Que descaminhos justificam o açambarcamento da vontade?
- Vejo as múltiplas janelas em meu redor. Vejo-as fechadas. E depois entreabrem-se, avulsas, uma a uma. Não todas. Algumas ficam fechadas. Em algumas janelas assomam vultos, mas não lhes distingo o rosto. É estranho. Se estivesse longe das janelas, o vulto justificava a inoperância de um rosto. Não é o caso. As casas só têm janelas. Durante a noite, interroguei-me se os moradores entravam em casa através das janelas.
-  Notaste se os prédios tinham guardas-noturnos?
- Alguns. Os que aparentavam ser habitados por gente abastada.
- Ouvi dizer que os guardas-noturnos são muito diligentes na atalaia das casas. Previnem extemporâneos extravios das almas às janelas. Os eruditos advertem que as almas podem ser dissolvidas pelo ar exterior. 
- Por exposição aos ventos da melancolia?
- Correm esse risco, sim. Os diligentes curadores da sanidade pública cuidam de evitar o contágio dos ventos. Ainda está por determinar quando os ventos proveem de latitudes que contaminam as almas com o vinco larvar da melancolia. 
- Mas, em todo o caso, não tenho ido à janela e sei que fui usurpado pela melancolia.
- Não será erro de diagnóstico? Não estarás erradamente convencido da melancolia?
- Como poderei saber?
- Há lugares nas cidades que são a prova dos nove. Lugares sem mapa, a localização corre de boca em boca, em segredos cuidadosamente ciciados. Chamam-lhe lugares com as portas sem forro. As pessoas passam pela porta e ficam com a alma desenroupada. Quando a franqueares, saberás se a tua ossatura foi invadida pela melancolia.
- Temo sabê-lo.
- Como?
- E se se confirmar que é melancolia o meu diagnóstico?
- Terás ido ao encontro do tira-teimas.
- Não sei se corro o risco. 
- Preferes lobrigar na dúvida? Sentir a tempo inteiro o pulso madraço da hesitação a adejar sobre o sono?
- Prefiro. Antes ficar sem saber se foi a melancolia que me invadiu do que ter a certeza do diagnóstico. O convencimento da melancolia é um cárcere de que receio não conseguir extração. Antes ficar amordaçado pela dúvida. É menos do que um convencimento. 

25.5.20

Sobre a função biliar e as armadilhas não anunciadas


Idles, “Mr. Motivator”, in https://www.youtube.com/watch?v=YNCopmqsw1Q
Alguém pergunta: não te incomodam as injustiças perpetradas ao arrepio do mínimo de humanidade? Respondo, quase sem pensar: não. Não sou o fautor dessas injustiças e delas não sou presa, intencional ou não. Não posso aplacar as dores sentidas pelos destinatários dessas injustiças. Não as sinto, são intransmissíveis.
Segue-se outra interrogação: e não te move um mínimo de compaixão, um dever geral de solidariedade pelas vítimas dessas injustiças, atrozes ou não? Não se demora a resposta: também não. O palco sórdido que pisamos não tolera lirismos que enfeitam a boa consciência quando ela se limita a pacificar demónios interiores, ou quando se projeta no exterior como um feixe de luzes vazias. Não posso fingir o que não sou. Acusem-me de insensibilidade, de um tremendo egoísmo, de misantropia. É o que aprendi a ser. Vejo que o são quase todos no labirinto monolítico que nos aprisiona à existência possível.
As interrogações não cessam: não te incomoda que te considerem um pária? Do manual dos interiores procedimentos emergiu resposta célere: não. Se não somos todos párias, a estatística não anda longe de o atestar. Esta armadura que vestimos é-nos industriada pela aprendizagem com os outros, com aquilo que tu consagras encomiasticamente como a “convivência social”. É o que nos corrompe. O dominó a que nenhum de nós pode escapar. Por imperativo da armadura, repousamos num princípio geral de desconfiança que dorme lado a lado com o princípio geral da indiferença.
Sem se deter, o interlocutor protesta, desde o reduto onde medra a ingenuidade, denunciando os maus profetas que são o enxame dominante. Estiliza um raciocínio impecável, a pureza em todas as suas formas, desenhando com as sílabas uma utopia que os olhos tratam de desmentir. É a minha vez de retorquir: não te convenço a deixares de lado a maçaneta da ingenuidade, se é agarrado a este preceito que intuis o teu devir. Possivelmente não podemos fazer nada quanto às divergências. E eu digo: ainda bem. Seria soez qualquer tentativa de um de nós convencer o outro a ser diferente. 
Os matizes do mundo, é como são. A impressão de decadência permanente a sobrepor-se a um artificial progresso. Os manuais de instruções educam princípios inatingíveis, porque esbarram nas formulações da pragmática. O único peso da consciência: nenhum de nós se habilita a ser ator de uma metamorfose. De uma metamorfose que nem sequer estamos convencidos de ser desejada. Os olhares não se decantam pela hagiografia do mundo, que não existe.

22.5.20

Cara ou coroa (toca do lobo)


The Stranglers, “No More Heroes” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Db0VB_MmeK0
Não era o eclipse esperado. A penumbra corroía a claridade, mas previra-se uma convulsão ansiolítica. Os olhares sintonizados com o céu distraíam-se do demais. Era o nirvana para os ladrões de almas. 
Nem os que foram para as cumeadas viram amnistiado o esforço. O ultimato fora em vão. As pessoas encolhiam os ombros, como se já desconfiassem da desilusão. Não imprecavam o sucedido. As variáveis que se congeminavam estavam fora do seu domínio. Não se arrependiam do tempo gasto. Podia ser que os peritos tivessem feito mal os cálculos. Podia ser que fossem extravagantes, os cálculos (e os peritos), só para os peritos concentrarem as atenções da gente demais. Ou era uma vingança dos peritos, desagradados pelo reconhecimento avulso, pois só eram consultados quando o céu exibia fenómenos aberrantes. (Ou estavam frustrados porque fora da regularidade não tinham serventia.)
Depois, vinha informação conclusiva, a janela aberta para o próximo episódio: “o próximo eclipse com esta dimensão só voltará a acontecer no ano...” (dos jornais). Até lá, as pessoas seguiriam as vidas monótonas. Deslaçando o olhar do céu, pois esse não é o seu território. Os que não temem a morte e alinham pela liturgia das religiões coabitam no significado metafísico do céu. No dia do eclipse, deixaram o monocórdico atributo celestial para reunirem com a ciência. Por um dia, a ciência cuidaria de suspender as religiões. Os racionalistas esfregaram as mãos com a antecipação do lucro.
Os seguidores dos deuses arriscaram a sorte com o eclipse. Se os peritos não tivessem feito cálculos por excesso, e a escuridão no pináculo do dia tivesse vingado, o céu ficaria um vulto. Cuidariam de interrogar se esse era o sobrecenho do céu no dia em que nele fossem acolhidos? Mal maior não sobreviria – antecipariam os crentes, ao mesmo tempo de si cientes: nem a luz no fim do túnel, ou seja, um lampejo de esperança ao serem sentados no trono dos julgados no ermo céu, chegaria para os resgatar do lugar sombrio que habitam na terra e adivinham ser seu inventário no céu. 
O eclipse malogrado salvou-os da improfícua redenção que dizem estar à sua espera. Se a penumbra tivesse prosseguido e a escureza tivesse tomado de assalto o céu, teriam sentido o leve acidular do céu que os espera. Talvez, em vez disso, reconhecessem a toca do lobo. Só não saberiam se o lobo estava esfaimado e se tinha o dente afiado.

21.5.20

Nortada


TV on the Radio (ft. David Bowie), “Province”, in https://www.youtube.com/watch?v=_whZTOiB5to
A pele não se faz ninho das intempéries. Esconde-se no refúgio de uma fazenda e os poros acalmam-se contra a advertência do vento. Diga-se que ninguém na posse de juízo se empresta a uma tempestade. Ninguém se devolve ao avesso da bonança sem que um tumulto interior o percorra. O vento não está para murmúrios. Encosta-se aos fartos decibéis e, baldio, vocifera a sua fúria sobre os lugares expostos. 
Pode-se dizer que estes lugares conservam as marcas do vento rebelde. Se não for o selo da destruição, será o odor indelével de um vento que em palavras traduz a maresia que cicia desde latitudes perdidas. As pessoas esboçam esgares de dissabor por causa da nortada que as agride nos rostos. Não se lembram da última tempestade, como a nortada é um pequeno artefacto que não rivaliza com os ventos que medonhamente açambarcaram a noite da última tempestade.
Há quem diga que a nortada inspira as ibéricas terras expostas ao mar atlântico com vestígios de civilizações viquingues. Não se diga que somos tão diferentes dos nórdicos, se ele é tanto o tempo de um calendário que estamos à mercê dos ventos que dimanam de nórdicas paragens. Nós, os que sabemos de cor as arestas da nortada, temos a pele endurecida pela sua aprendizagem ao penhor da nortada. Os mais rijos e que disso fazem gala, dizem que a rijeza é o fruto colhido da nortada. Ninguém os desconvença que não são dos mais preparados para deitar ferrolho aos contratempos.
Uma vez, um nórdico visitou uma terra consanguínea ao mar mediterrânico. Não se queria convencer que era um mar. Era um espelho inteiro até onde o olhar se abraçava. Chamou-lhe o lago mediterrânico. Um mar – contrapôs ao anfitrião que defendia a linhagem de mar para o mediterrânico – é um levantamento dos sentidos. Uma orquestra de vento que rumoreja em rima com as ondas desordeiras que se desfazem na orla imperturbável. Um mar não é domável. Agiganta-se sob a vigilância dos promontórios que mergulham em precipícios guturais sobre o mar que os recebe. 
Dias depois, o nórdico virou os azimutes do mapa peninsular. Levaram-no a almoçar a uma esplanada sobranceira à praia. Não podia estar em lugar mais deleitoso. Já se notava a nortada que expira a manhã. O mar não era a submissa amostra que lhe fora dado a conhecer dias antes. Reconheceu o sabor do vento: “este é o sal que sela a minha terra”, lembrou, ao sentir as lágrimas depositadas na nortada por sua vez despojada na pele que trazia à mostra. 

20.5.20

A ardósia democrática (onde todos podiam publicar) (short stories #216)


Happy Mondays, “Step On”, in https://www.youtube.com/watch?v=mFBQ0PH5rM4
          Não se sabia de quem tinha sido a ideia. A ardósia foi fixada junto à arvore centenária do jardim. Sobre o parapeito, o giz necessário. As pessoas podiam escrever o que quisessem, sem marcação prévia. Não havia regras, a não ser: ninguém podia passar à frente de quem estivesse em espera; ninguém podia tirar o giz a quem o estivesse a usar; ninguém podia apagar uma frase acabada de escrever; ninguém podia rasurar uma frase. Ao início, as pessoas estavam hesitantes. Olhavam para a ardósia vazia, como se a sua epiderme escura fosse um silêncio pesado a abater-se. Outras passavam pela ardósia com indiferença. Talvez não gostassem de escrever. Talvez reservassem para meios impublicáveis a forma dos seus pensamentos. Alguém inaugurou a ardósia: “Pela manhã, antecipo-me à prodigalidade de um dia que adestro para a grandeza.” Logo abaixo, alguém confessou: “A mortificação do medo é uma razão.” Ao fim do dia, depois de algumas frases já apagadas para darem lugar a novas proclamações, alguém quis desvalorizar a ardósia democrática: “A liberdade de pensar e de escrever está na medida inversamente proporcional ao calibre do pensado e do escrito.” E, todavia, a ardósia continuava aberta aos contributos dos passeantes. Não interessava aferir a linhagem das palavras desenhadas. Intua-se a intenção dos promotores da ardósia (que continuavam anónimos): levantar a pesada cortina que silencia a palavra das pessoas sem nome. Era uma versão modificada do Speakers Corner, em Londres – alguém propôs, observando a mancha carregada de giz que furtava a escuridão à epiderme da ardósia. Um dia, um famoso escritor tomou o giz entre os dedos e fez menção de imortalizar (na medida da efemeridade da ardósia) a fala que enxameava o pensamento. Deteve-se longos minutos à frente da ardósia, enquanto um punhado de pessoas esperava por vez. Esmagado pela ardósia prolixa, sentiu-se cercado pela impotência da palavra. Silêncio, foi tudo o que conseguiu verter para a ardósia. Limitou-se a escrever um ponto final.

19.5.20

Princípio geral da precaução


Margaret Glaspy, “So Wrong It’s Right”, in https://www.youtube.com/watch?v=7rtqUUjxKJQ
(Um certo aroma do tempo)
Às piruetas, diremos o quê? Do ontem sobra a transpiração da distopia. O mundo ia acabar – e alguns profetas continuam a jurar que acabou, o mundo como o conhecíamos, pelo menos. Um leve alívio da procela é a tábua de salvação. A distopia foi anunciada antes do tempo. Temos autorização para respirar. A respiração a pulmões fartos, apanhando as porosidades todas que o ar fresco granjear. O ar dentro de casa estava mais saturado do que o sítio com a pior poluição atmosférica. Parece que as casas foram feitas para dormir, e pouco mais.
O princípio geral da precaução, ainda há pouco tempo tão glosado, está a caminho do olvido. Mas parece depressa de mais. Afinal, não somos aqueles dos brandos e moderados costumes. Somos paradigma dos excessos. Os últimos dias foram cobertos pela extravagância que percorre os rostos famintos por se verem desembaraçados de um teto. O tempo a favor, primaveril, ajudou à emancipação da hibernação forçada. Os intendentes convocam a “responsabilidade pessoal”. Não sabem – ou fingem que não sabem – que a “responsabilidade pessoal” não é critério. A “responsabilidade pessoal” é variável, pois as pessoas diferem muito umas das outras. 
Poderão os protetores de conspirativas teorias argumentar que é tática intencional dos intendentes. Se correr mal, a culpa terá sido dos reduzidos padrões de “responsabilidade pessoal”, usando-o como pretexto para aferrar a trela sobre os súbditos. Um sonho que se entreabriu, com visíveis manifestações, aos que detêm o poder e o confundem com ostentação de autoridade. Se correr bem, os intendentes hão de perfilar outra vez na passerelle onde se compara a diligência para domar o inimigo sem rosto. Os cidadãos serão aplaudidos e estes hão de aplaudir os mandantes pela manifestação de confiança. A teoria do milagre nacional será sublinhada até à exaustão, outra vez. Bendito inimigo sem rosto, o cimento da portugalidade resgatado à epiderme sombria do passado.
Parece que o princípio geral da precaução ainda não foi banido. As costuras da imagem cuidam do resto. Os que dão o rosto pelo poder instituído não se cansam de se exibir como exemplo. As pessoas têm de sair. Têm de começar a trabalhar. Têm de começar a ir a restaurantes. Têm de tomar o pequeno-almoço no café do costume. Os seus filhos têm de ir à escola. Tudo tem de funcionar, se não a fatura começa a ter um peso insuportável. 
Afinal, o princípio geral da precaução ainda tem microfone acessível. Em nome das minudências da governação, mais do que em homenagem a quem ainda pode falecer vítima do inimigo sem rosto.  

18.5.20

Posto de vigia


Tindersticks, “A Night In”, in https://www.youtube.com/watch?v=o_Y_c4f6WdE
A atalaia servia-se em fatias de generoso bolo marmoreado. Não era menor, a incumbência: do lugar cimeiro, em pose sobranceira sobre os demais, cumpriria a demanda da verificação dos costumes. Os tempos árduos pareciam ter desatado a loucura e havia cada vez mais gente tresmalhada a viciar as regras do jogo. Os curadores do regime trataram de ceifar o mal pela raiz. Antes que se desse a razia dos cânones, era preciso cortar a eito no hedonismo irresponsável. 
Ele fora nomeado para a função. Avisaram-no, antes de assinar o termo de responsabilidade, que não seria uma empreitada cómoda. O que não disseram foi o motivo certo da ingrata demanda. Quando esperava que o advertissem que não é fácil espiolhar a vida dos outros, foi-lhe explicado que a tarefa é ingrata porque era preciso estar sessenta segundos por minuto atento aos cada vez mais numerosos que faziam tábua-rasa das convenções. E as convenções não admitiam desvios. Não seria tolerada qualquer transigência. Os mandantes depositavam confiança na sua capacidade inspetiva.
No mais alto miradouro, com acesso à imagem de todos os coabitantes, era como se fosse o imperador máximo. Mais imperador do que os mandantes de que era procurador. Estava inebriado. A atalaia indiscriminada fizera dele o mais poderoso. Tinha de começar a função com intransigência. Não haveria comiseração por atos tresloucados que fossem invocados como reação desabrida às erróneas circunstâncias que sobressaltam o lugar. Não haveria contemporização com o menor desvio. Dele se esperava que fosse tutor dos comportamentos irrepreensíveis. Teria de atacar ferozmente os que perturbassem o código de conduta.
Uma noite, ao chegar a casa depois de uma jornada em que cominou um número recorde de infratores, ficou embaraçado com a heresia da consorte. Assistia a um “filme com cenas que perscrutavam a intimidade” – seria o eufemismo que empregaria para “filme pornográfico” caso estivesse a preencher o auto de condenação da consorte enquanto infratora. Indignada com o protesto audível do censor, ela lembrou que o sexo não estava proibido pelos costumes. Ao que ele retorquiu, “ainda não. Ainda não.”
Na noite seguinte, quando chegou de outra jornada extenuante, a casa estava sozinha. Um bilhete em cima da mesa da cozinha selava o adeus da consorte: “não consigo viver com o cúmplice da esterilização da sociedade.” Ele não perdeu o sono. Abraçara tão fortemente a missão que o resto era desimportante. 
Havia quem lhe chamasse a mais insublime das cegueiras.

15.5.20

A outra margem


The Sound, “Skeletons” (live at Peel Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=OKdeLTRhjqA
Do miradouro mais alto da cidade. O rio encomenda a fertilidade às aluviões na outra margem. É um lugar insólito, esta cidade. Só escolheu uma margem, deixou a outra margem deserta. Dizem que a outra margem tem o chão mais fértil do país. As edificações sobre chão tão precioso seriam um crime sem perdão.
As luzes noturnas tremem com o ciciar do nevoeiro que se ergue desde o rio. Não se vê a outra margem. À noite, nunca se vê a outra margem. A planície onde só há campos de vegetais e de cereais estende-se como se o infinito existisse. Em dias de canícula, as pessoas juram que conseguem ver o fio do horizonte fundido nas espigas que esperam por um módico de vento. Vou ao mapa. As montanhas estão a mais de cem quilómetros em linha reta. Dizem os conhecedores que esta área pertence às culturas que nidificam na fertilidade singular dos solos. O “celeiro do país” – não se cansam de apregoar, orgulhosos, os habitantes da cidade.
Digo, em jeito de provocação: mas vocês pertencem a esta margem, não têm ligação com a outra margem. Continuo, em tom insolente: a outra margem é a outra margem. Um território estrangeiro dentro das fronteiras do país. Só a habitam os operários que cuidam das culturas. A outra margem está mais longe que as montanhas que distam cem quilómetros deste lado do rio. Não, o rio não une as duas margens, como se o rio não contasse e as duas margens se fundissem num chão único. A outra margem não é vossa pertença. São estrangeiros no campo de visão da outra margem. 
Alguém contrapõe que um forasteiro não pode perjurar a boa hospedagem. A provocação encerra um ultraje, pois os habitantes são orgulhosos da cidade e consideram a outra margem o prolongamento da cidade. Orgulham-se: não há lugar outro no mundo em que a cidade esteja comarcada a uma margem. Lugar nenhum no mundo – repetem, sílaba a sílaba. As pessoas consideram a pertença à cidade e têm uma dedicação quase religiosa ao rio que foi pródigo com a outra margem. Um forasteiro não devia importunar a idiossincrasia do lugar que visita.
Pergunto se os habitantes da cidade não estão reféns de uma fantasia – a da outra margem como lugar prometido para remediar arrependimentos. Como se fosse um lugar de peregrinação, sem as pessoas saírem da cidade, bastando estenderem o olhar que se projeta sobre o estuário até aportar na outra margem. Um pouco como uma miragem ao alcance do olhar. 
Fico sem resposta. Talvez esteja a ser petulante. Um demorado silêncio avança pelos olhares cautelares dos interlocutores, inertes no miradouro a contemplarem o palco a seus pés. Fiquei sem perceber se contemplavam o estuário, a sua forma original, como um trapézio diligentemente desenhado entre a embocadura da cidade e a planura da outra margem. Ou se dirigiam o olhar para a outra margem, descendo a um santuário onde nunca teriam ido.

14.5.20

Mapas que são mãos (short stories #215)


Explosions in the Sky, “The Only Moment We Were Alone” (live at NPR Music Front Row), in https://www.youtube.com/watch?v=KLtNOY6DN-I
          Rasgo o vento que morde o corpo. É como se fosse um vesúvio, espalhando partes de mim em soleiras ao acaso, sem perder a unidade. Um vesúvio, adulterando marés e ventos e luares e todo o almanaque hesterno. Sei que há estradas ajuramentadas. Outras, desenviuvadas de logros malsãos. Sei que os deuses declararam a sua inexistência, convencendo uns e outros. Na implausível surdina dos medos, escuto os versos que se jogam avulsamente. Tomo os versos em mãos. Sei que transformam as mãos em mapas. E para que servem os mapas de que sou meticuloso vigilante? Recado da gente que não é nada sem um mapa por perto: os mapas deviam valer o preço do mais valioso dos metais. Temo os versos sem mãos. A freguesia assobia diligentemente o refrão, como se os mapas se desembaraçassem dos vincos pelo simples sibilo. Os mapas fundem-se nas mãos e já não se distingue os mapas das mãos. Os mapas vêm às mãos e habilitam-nas a serem navegadoras exemplares. Ninguém se perde. Ninguém se abandona ao ilícito pesar próprio das almas trespassadas. Se houver o fundo de um poço, não serão os vultos que o habitam que impedem os mapas de se acenderem como fuga. Não serão os intempestivos sons guturais que amedrontam as paredes do medo a desabitar o lugar. Sobram sempre mapas, ou mãos, encerradas no açambarcar do verbo. Não se jogam os acasos. Não se jogam os corpos ao acaso. Assim se lembrem das mãos, de como foram caldeadas com os mapas imperadores. Agora, as mãos ascenderam à tutela do império. Não sei que nome tem o império. Não sei até que ermo lugar estende o seu domínio. Não interessa. Se quiser saber, estendo as mãos em cima de um estirador e delas tiro as extremas. Não saberei de mais nada enquanto não souber que os mapas são a transfiguração das mãos. 

13.5.20

Ramal (short stories #214)


LCD Soundsystem, “Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=53yEyj0mjfo
          Do caminho centrípeto, procedem os ramais. Não é embaraço, a escolha. Só os timoratos ficam trespassados pela ataraxia omitida. Os desembaraçados não se emprestam à tergiversação. Escolhem um ramal. Ao acaso. Como podem tirar as medidas a um ramal que exige escolha se não sabem como é a sua ossatura? O ramal é a sua própria revelação. A escolha não é uma fatalidade. No ramal não há sentido único. Nas costas do viandante não há um sinal proibido a pear a inversão de sentido. E em cada ramal há outros ramais por onde seguir, uma densa árvore desenhada numa conjetura de braços estendidos na pradaria onde a cartografia se delimita. Se ao menos conseguissem ter uma vista de pássaro dessa cartografia. Mas são peões que se entregam ao sortilégio de um ramal, de vários ramais. Fazem o inventário dos ramais viandados. Esconjuram os ramais que, souberam com o benefício da lente da posteridade, não seriam demarcados na escolha. Pois há ramais que terminam em precipício. Sem aviso pressentido. Não há manual de instruções que precate os sobressaltos. Nem os incidentes inesperados, as entorses que se esperam numa avulsa esquina do tempo. Não digam que o volume de páginas do inventário é o retrato fiel dos ramais demandados. Pois há ramais sem história. Podem ser uma longa reta, a travessia de uma planície de paisagem igual. E ramais curtos de uma beleza exuberante, com uma variedade de detalhes concentrados por quilómetro quadrado que exigem depuração atenta. E não digam que há uma medida certa para atestar os ramais. Alguns preferem os ramais languidamente estendidos na paisagem, sem curvas sinuosas e alcantilados. Outros escolhem ramais acidentados que percorrem uma diversidade de paisagens num pequeno trecho de caminho. E ninguém sabe se um ramal é sempre o último ramal. O que desafia o apetite por ramais mais que possam vir ao bornal do conhecimento. 

12.5.20

Porto de águas fundas


Fontaines D.C., “A Hero’s Death”, in https://www.youtube.com/watch?v=jLNt8aMNbvY
Mudança de território. O palco estava gasto. As vozes interiores não cessavam de murmurar a craveira do exílio – se a exílio se podia chamar o vinco nómada que coloria a pele exangue.
Sentia um tremendo lastro, como se fossem os seus pertences imateriais. Pela primeira vez. Ao início, não sabia encontrar a origem. Se bem se lembrava, não estava habituado a de si ter uma imagem prodigiosa, bem pelo contrário. Desta vez, as suturas saíam do avesso. Sentia que carregava séculos às costas. Era um porto de águas fundas, onde tinham cabimento os navios de largo porte. Já não se intimidava com as demandas incomuns que eram alvorada frequente. Esse era o seu traço próprio, a cor de uma identidade singular.
Porto de águas fundas, sim: as dragagens de outrora deram corpo à fundura e os navios de grande calado podiam ter repouso entre duas navegações. Tão porto de águas fundas que mesmo nos dias de tempestade o mar continuava subordinado, uma horizontalidade que era antítese do tumulto medonho das ondas sobrepostas que se aplacavam no paredão-muralha. Sentia-se porto de águas fundas, casa de repouso para os que andassem errantes na demanda de um lugar. 
 E ele, encimando o miradouro sobranceiro, media o corpo da tempestade e do seu lugar capitão protegia a cidadela limítrofe. Nunca procurou ser juiz em causa alheia. Nunca soube ter estatura para albergar em seu domínio uma multidão (significado de acima de três). Este era o epílogo do encadeamento de sonhos. Era como se os sonhos fossem diferentes capítulos de um livro e tivessem sequência, sonho após sonho, meticulosamente. Limitar-se-ia a ser intérprete dos sonhos, dando-lhes abrigo com as mãos operárias. Não podia recusar o encargo. 
Nem assim convocou estatuto superior. Sentia que o sublime exigia a moderação. Não tinha autorização para fermentar o deslumbramento. Era o contrário: o encargo era a cartografia de uma exigência acima da capacidade do simples mortal. Se desse conta do recado, se soubesse ser porto de águas fundas, seria o lugar de salvação de uns quantos naufrágios. Não era de somenos importância. Mas não era de importância que se tratava. Nem de exaltar a utilidade à marinha mercante. Modestamente, limitava-se a cumprir a demanda dos sonhos consecutivos. 
O encargo era estritamente interior. Por isso o aceitou. 

11.5.20

Tridente


Einstürzende Neubauten, “Alles in Allem”, in https://www.youtube.com/watch?v=0Nz9t_4XLcc
Um quarto de hotel é apenas um quarto de hotel. Não era cunhada tanta indiferença desde que alguém se insurgiu contra a irrelevância a que fora destinado depois de uma aparição catastrófica na televisão. Como as pessoas gostam de visibilidade. De popularidade. Que doença pueril! 
Lá fora, um trabalhador rural adestra as terras. Saberá da febre que se insinua no complexo labirinto em que a cidade se tece? Saberá dos votos promíscuos que se exibem à noite, os corpos não passando de uma procuração de personagens esvaziadas? O homem colhe as laranjas gordas que, não tarda, apodrecem agarradas aos ramos. Imerso na sua lhaneza, os dedos adivinham quando a decadência se inscreve nas páginas do tempo. Não se dirá o mesmo dos espasmódicos vultos que se esgueiram entre as sombras da noite, penhores de um hedonismo reprovável para os ascetas da boa moral. Se perguntasse ao trabalhador rural, saberia distinguir a boa moral da má moral? Não diria, apascentando a simplicidade, que a moral é um farol de cada um? 
Não convencido, insisto nas comparações desassisadas: à hora que o agricultor se levanta, há muitos boémios que vão a meio da noite. E sei que se perguntasse ao homem ele encolheria os ombros, indiferente à consumição da demanda. Diria que só dorme o seu sono e que o sono dos outros não o sobressalta. Sem paciência para a densidade das demandas (ou para a sua irrelevância), o homem virava as costas, que tinha empreitadas mais importantes para cuidar. E seguia até às próximas árvores de fruto, não desdizendo a vida singela que era a sua.
No rio passa um barco imponente. No convés, três raparigas em fato-de-banho ostentam-se ao sol pródigo. Um homem grisalho assoma à superfície, espreita pela escotilha. Balbucia algo e as raparigas não respondem. O marinheiro vira o leme e inverte a rota. Fica parado por uns momentos na confluência do rio menor com o rio protagonista. Encara o agricultor na sua faina. O homem curvado sobre a enxada, preparando o chão para a fertilidade. Deixa escapar um lamento, o marinheiro grisalho. A abastança não é notária da juventude que outrora teve o seu lugar. As raparigas em trajes menores não lhe dão atenção. Não será por acaso. O marinheiro deita-se num jogo de adivinhas. Acerta com os interiores corredores do pensamento que o agricultor é homem possante, apesar das cicatrizes da faina tão dura que leva, escritas indelevelmente nas mãos e no rosto. Não há dinheiro que consiga pagar as veleidades perdidas. Para a próxima – jurou o marinheiro apoderado pela nostalgia – navegará sem companhia, já que esta companhia não lhe faz companhia.
E o trabalhador rural prosseguia a jornada, indiferente ao demais. Sem se saber protagonista da atenção de outros.

8.5.20

Fazíamos de conta que não sabíamos das farsas (um vitral da contemporaneidade)


New Order, “The Age of Consent” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=cYx8yW3POcg
Um véu perene abate-se sobre a lucidez. O retrato fidedigno do palco em que somos todos atores. Uns fingem não o ser. Outros sabem que o são, mas assobiam para o alto, colocando-se a par dos primeiros. Outros incarnam o papel de protagonistas, detêm em suas mãos o leme que habilita o tempo e o modo no espaço da sua jurisdição.
Em cena, farsas imorredoiras. Disfarçadas de proezas dignas de odes epopeicas. A volúvel liquidez que se açambarca dos planos sólidos, adulterando a forma como os olhares decifram os fenómenos à sua volta. Desde os bancos da escola. E continuando pela existência fora, com a exposição à normalidade castradora que tem na imprensa aliado de primeira instância – quase a casa indeclinável onde bebemos na fonte os rudimentos do que interessa saber para escorar o estado geral de fingimento. As farsas nunca são apresentadas como farsas. Os farsantes têm um séquito arregimentado para preparar as loas e as genuflexões devidas, autênticos mestres da retórica da falácia, vogando de fingimento em fingimento pela mão estrepitosa da mitomania.
E nós, atores em palco sem o sabermos, ou atores com consciência da sua posição, mas sem vagar para escrutinar os meandros do teatro de que somos pares, fazemos de conta que fingimos. Uma dupla farsa. Fingimento, por nos sabermos enganados pelos eventos e pelos atores que os manobram. E fingimento, por querermos fingir que não sabemos do fingimento. Para sossego dos mandantes, que preferem suseranos amestrados, desprovidos de sentido crítico. Fingimos e somos culpados por nos deitarmos no pântano do fingimento. Culpados por admitirmos a palco uma casta de fingidores.
É tanto o medo das castas superiores, que o menor laivo de crítica é abjurado sem demora, devolvendo a injúria maior com a ajuda do ataque pessoal, misturando o gérmen da desonestidade intelectual para amesquinhar os oponentes e os apoucar por não serem agentes da “consensualização”. Um lugar onde a dissidência é apostrofada com desembaraço é um convite à perpetuação da farsa.
O método é a teimosia. Nos dois sentidos. Os cultores do sistema enraizado teimam na fiscalização dos detratores. Se um dissidente cai na apertada malha do radar, é desmembrado sem piedade. Mas a teimosia tem de funcionar no sentido contrário. Os poucos que se furtam ao lugar sitiado pelo fingimento não podem capitular. Pode-lhes valer dissabores vários, o aquartelamento na trincheira onde são arrumados os que ousam tresmalhar, a perda de regalias, o isolamento, provavelmente uma soez orquestração para os diminuir resgatando ao património pessoal uns podres que serão a prova da sua desqualificação. Mas não podem desistir. Para não se juntarem ao numeroso exército acautelatório do fingimento.
O método é o pior dos sintomas do fingimento em curso. Expõe a mesquinhez dos artesãos das farsas da contemporaneidade. Não se defendem das críticas; atacam a personalidade de quem as tece. São a imagem da pequenez que adeja com o odor pérfido da tutela das almas insubmissas.

7.5.20

“Noves fora nada” (short stories #213)


Ólafur Arnalds, “ypsilon” (Live in Leicester), in https://www.youtube.com/watch?v=lECcf7478Kw
          Guardo as lágrimas da neve quando se derrete à mercê do degelo. As pessoas vão metidas em seus sobretudos, mostram um esgar de desprazer contra o frio glacial. Guardo as cicatrizes que foram mapa na minha pele. Verto as cinzas de um vulcão hibernado. Verto-as, como quem despeja as suas próprias cinzas no imenso cemitério que é o mar. As cinzas aliviam as cicatrizes que abraseiam. O sangue em polvorosa ascende pelos tuneis de que são feitas as veias. Se havia um torpor, foi sepultado. Espreito pela larga avenida que desce em direção ao rio. Alguns carros desafiam a invernia. Não se intimidam com a neve despojada. Há mais carros do que pessoas. Desço a avenida. Desembainho a espada da teimosia para afrontar o vento que parece situar-me no polo norte. Antes fosse noite, para não saber das feridas abertas. Antes fosse noite, para ser só eu o procurador do vento que cicia no palco da solidão. Vejo nas árvores a personalidade da invernia: gotículas de gelo espessas, pairando na desembocadura dos galhos, desafiam a gravidade. E por que não hei de ser mais tonitruante do que vento glaciar que corta a carne até ao osso? Insisto: vou atravessar a avenida toda, sem hesitações ou adiamentos. Quero ver de que é feito o rio quando o inverno toma conta dele. Não quero saber das lágrimas retesadas das árvores, do punhal caldeado com o vento que enfraquece o sangue tresmalhado. Serei testemunha de mim mesmo. À espera que o entardecer não se demova. Se ainda conservar forças ao chegar ao rio, avançarei para o caudal gelado e, com as mãos descarnadas, farei a prova dos nove no chão gelado. Na manhã seguinte, a tatuagem do caudal estará no mesmo sítio, insensível ao vento que despenteia o gelo sem hipotecar a prova dos nove. E exclamarei, a plenos pulmões, antes de subir a avenida: “noves fora nada!”

6.5.20

Rosas (short stories #212)


dEUS, “Roses”, in https://www.youtube.com/watch?v=8Gj2MCf2G80
          Ouvimos violinos. E de que cor são as notas alardeadas pelos violinos? São da mesma cor das rosas aos nossos pés. Nós, soberanos na embocadura do miradouro, olhamos para o resto do mundo. Não somos suas figuras tutelares. Somos como um botão de rosa que se costura no rosto do mundo. E de rosas perfumadas trajamos quando ao palco subimos. De rosas mestiças somos cartão de visita. Emprestamos sentimento à melodia dos violinos. Deitamo-nos em forma de sementeira nos campos onde fruem as rosas. Não irrompemos, intempestivos e em câmara supersónica, como se uns breves segundos resgatassem a evolução das figuras larvares até ao seu estado terminal. Somos como as rosas, no seu vagaroso medrar. As pétalas que se servem ao apetite do mundo. Pétalas cientes do cisma do ar que as abraça, sabedoras da imunidade contra os elementos exteriores. À noite, deitamo-nos numa cama de rosas. Somos o seu odor, a quimera feita da coreografia dos nossos corpos. Se houvesse metáfora no exterior das metáforas, o vestígio dos nossos passos seria um tapete de rosas várias, multiformes, um arco-íris de perfumes legados ao mundo. E sabemos que o mundo somos nós. Sabemo-lo, porque lemos a estrofe vertida em tinta ténue numa pétala despojada: “o valor facial desta rosa é o uníssono dos dois amantes, de seu nome:”. Não queremos saber das atrocidades da vida. Não queremos ser aval dos contratempos sem mesura. Ungimo-nos com uma vestimenta de pétalas e desfilamos no espaço exíguo em que somos uma imensa constelação de estrelas, dizendo que não sabemos desenhar as fronteiras do que somos. Assinamos por baixo, com o sangue feito das rosas carmim que se congraçam nas mãos. Depois, deixamos que as folhas do calendário se desprendam das ameias. Até que se faça o hoje que nos prometemos com a matéria atuarial do presente.

5.5.20

Para ler entre as linhas


Tindersticks, “For the Beauty”, in https://www.youtube.com/watch?v=P82ZvSiuc7s
Os espaços escondidos entre as linhas são os esconderijos das palavras. Se formos leitores apressados, temos por certo que certas palavras se nos escapam (e o sentido inteiro do texto, talvez). Não estamos à altura das palavras, porque se nos escapam as palavras entre as linhas. 
O que dizer dos esconderijos onde as palavras ciciam o seu magma? O vagar devia ser critério para a anamnese das palavras escritas. Devia soar um alarme de cada vez que fôssemos apanhados na contrafação de um texto por sermos presas das malhas estreitas da distração. Outro tanto não se dirá da pleura onde, sibilinas, se acomodam as palavras no sortilégio do espaço entre as linhas. Não se revelam ao olhar do leitor desacautelado. Ele é que tem a perder. Perde a riqueza das palavras que hibernam entre as linhas. Fica à margem da polissemia do texto. Em débito com a constelação de hipóteses em que o mundo se enovela.  
E o que dizer das palavras ditas? Habilitam-se com a mesma diligência à candeia dos espaços preenchidos entre as linhas? As palavras ditas têm outra moldura. Não é como as palavras escritas, um espaço que fica para memória futura, a menos que sejam destruídas. As palavras ditas estão limitadas ao espaço da memória. De quem as disse e de quem as ouviu. As linhas intervaladas, as que aprecem insinuadas nos silêncios que entrecortam palavras e frases. Como se fossem uma pontuação muito própria. Silêncios assim soletrados deixam as bocas em penhora do que ficou por dizer, ou do mais que se quis dizer com as palavras proferidas. 
É preciso saber ler entre as linhas nas palavras faladas. Não é tão ágil, a empreitada. As palavras ditas trazem o lacre do efémero. Ficam à guarda da memória. A memória de quem as tutela e de quem as escuta é contingente, permeável a fendas que não deixam certificar que as palavras ditas tiveram certas linhas a entrecortá-las. Para ler entre as linhas das palavras faladas, é devido respeito à honestidade. E deve o exercício ser precedido por um tirocínio mínimo na leitura de palavras escritas que se exilam entre as linhas.

4.5.20

Praça Moderna


Mão Morta, “Istambul”, in https://www.youtube.com/watch?v=PoPQyGcBWUw
O vento engasga-se. Ao longe, o minarete vocifera a laudatória ladainha contra os hereges. Não sabe mal ser herege. Pela noite, quando as sombras se enfeitam com a silhueta das luzes, nada fica ao acaso: os lugares-tenentes da dissidia envolvem-se na neblina e combinam conspirações corpóreas que consomem a gente comum. Ali à frente é a Praça Moderna. Não é o que parece: os atavismos não foram proscritos.
Uma mulher parece perdida. Talvez embriagada, ou drogada. Cambaleia, encostada às paredes carcomidas pela vida austera da cidade. Um sacerdote cruza-se com ela, a más horas (os sacerdotes não andam na rua a más horas). Ignora-a. Se soubesse as prescrições da Praça Moderna cuidaria de salvar a alma errante. O hábito da cabeça aos pés explica o diletantismo do sacerdote. Impede a lucidez.
No jardim sobranceiro à Praça Moderna, só os patos que habitam o lago testemunham a noite ordeira. Dizem: a noite ordeira – e não estão enganados. Tirando uns apóstatas que se refugiam na frugalidade da noite, a noite é desabitada. 
Um tumulto assalta uma viela adjacente da Praça Moderna. A meio da tarde, entre a poeira que sobe às bocas com o basalto do calor, uma correria demencial perturba o bazar. Polícias correm atrás de jovens meliantes. Soube-se depois, no procedimento da identificação, os rapazes haviam fugido do asilo. Não queriam roubar. Queriam ver como se portavam os transeuntes quando a gritaria e a correria fossem espalhadas na viela e os comerciantes, com medo do prejuízo, se juntassem ao tumulto.
 Numa das entradas da Praça Moderna há uma casa de chá. O chá é típico na cidade que alberga a Praça Moderna. O enólogo finge-se interessado pelas tisanas e pela explicação da lojista em mau inglês. A parceira do enólogo está ao corrente do fingimento. Sabe que ele era alérgico a chá. No fio do crepúsculo habilitado pelo entardecer, ela assiste, inebriada, à encenação da mentira: o enólogo encomendou umas dezenas de embalagens de chá. Não lhe ocorre outra explicação se não o deferimento de um seu prazer, generosamente satisfeito pelo enólogo, seu amante. Os cânticos do minarete, que então se faziam ouvir, não são contra o amor (pois não)?
A Praça Moderna é o desenho de uma cidade ancestral. O paradoxo que se consome por dentro de si. Os anciãos sentados num banco, protegidos do calor asfixiante pela sombra de árvores caritativas, enrolavam e desenrolavam as contas nos dedos e ensurdeciam a praça com o silêncio enquanto jogavam um jogo típico. Os comerciantes de rua fustigavam a praça com os pregões insistentes, incansavelmente tentando resgatar os turistas do torpor de quem habita um lugar desconhecido. No ar, a fusão do calor com a incandescência da multidão. Sem fronteiras, que os comerciantes parecem diligentes no manuseamento de idiomas mil.
Afinal, a Praça Moderna é que alojava a cidade imensa.

1.5.20

O ringue onde as cabeças colidem e dão alimento à grandeza do mundo (short stories #211)


Pond, “Whatever Happened to the Million Head Collide” (live 2017 the Weather Tour), in https://www.youtube.com/watch?v=li7xQF9Xpyg
          As cabeças perfiladas, à espera de vez, à espera de serem o fermento de um desfile de ideias e de argumentos e de réplicas e de contra-argumentos. À espera de vez para falarem na sua vez, sem os atropelos dos impacientes que querem adulterar as desregras a seu favor. O ringue tem o chão coberto com o suor derramado pelas ideias em maiêutico digladiar. Estas deviam ser as únicas armas admitidas a concurso no mundo sem arestas. Os concursantes, libertos das algemas da superioridade, coibidos da sobranceria dos que querem colher uma coroa de louros que não lhes assenta, vão ao ringue num braço-de-ferro das ideias. São todos cavalheiros (sem os maneirismos proto-aristocráticos do Professor Espada). Oferecem argumentos. Eis a sua abnegação: oferecem argumentos aos rivais que coincidem no ringue. Os rivais têm de ouvir os argumentos uns dos outros, pelos outros oferecidos. E ainda que não fiquem convencidos, encorpam os argumentos servidos no ringue. Não se diga dos concursantes que vivem reduzidos à estreiteza das ideias de que são testas-de-ferro. Eis porque não é sangue o que sobra no ringue depois de encerrado o pleito. E até os mais experimentados nas lides, os que travaram conhecimento com ideias outras sem precisarem da longanimidade de outros concursantes, não saldam a sua participam com o véu da ignorância descido sobre o rosto. Lá fora, um mundo inteiro espera. À espera de ser maior depois da transfusão de ideias e de argumentos que inundou o ringue. Não deseja este mundo se não o apuramento dos feixes que se contrapõem; um mecenas que faça a síntese das ideias e dos argumentos levados a ringue para deles o mundo se inteirar e com eles deixar de estar confinado à pueril adolescência. E o mundo lá fora, à espera dos intrépidos gladiadores, espera com a paciência dos que estão apaixonadamente comprometidos com o saber.