Pixies, “Bone Machine” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=NdgWYGKU3xo
Os sonhos são como cortinas. Embaciam o olhar com um trovão que se prolonga nos interstícios do tempo. Enquanto o troar da tempestade avançar sobre o paradeiro, os sonhos estendem um labirinto que se tatua na pele. Tudo deixa de fazer sentido: os lugares perdem geografia, as palavras perdem gramática, as pessoas perdem os nomes, o tempo não está em harmonia com a sua medida e as perdas hasteadas pelo porvir ganham pertença.
Os nomes atrás dos sonhos são o seu próprio biombo. É por dentro do sonho que se confirma a ausência de vontade. Os argonautas dos sonhos são seus passageiros. Não sabem onde começou o sonho, não sabem arrolar os lugares por onde o sonho passou nem o tempo onde o sonho vai desaguar. Durante o sonho, vamos atrás dos seus mandamentos. Autómatos, entregues ao sortilégio do sonho. Não somos mandatários do sonho, estamos à sua mercê.
Os nomes vão atrás dos sonhos, confecionando as matérias-primas que os sonhos legam em memória. Não somos seus intérpretes. Não conseguimos fugir de um sonho que nos angariou. Os sonhos não têm nomes, apenas vultos. Os vultos são os mecenas dos sonhos, colonizando a ficção que acontece no avesso das mãos. Não se imaginem personagens por dentro do sonho, que elas são legadas pelo sonho. Podem ser apenas rostos a quem foi arrancada a identidade, para que os rostos não correspondam a nomes. Esta é a condição de validade de um sonho. Se não for composto por personagens anónimas, o sonho foi adulterado por contaminação do agente que está à mercê do sonho. Passa a ser matéria híbrida, meio sonho, meio matéria palpável.
Os nomes não se podem locupletar com a matéria dos sonhos. O periscópio a que os reféns de um sonho deitam mão tem a lente escurecida. Deixa pressentir um vago crepúsculo, no avesso do qual se pressente o acontecimento das vidas por fora dos sonhos. Às vezes, os sonhos parecem a extensão da vida; não são sonhos genuínos. Outras vezes, os sonhos parecem um compêndio de surrealismo, os nomes abastados na indiferença, os lugares sem pertença, o tempo cindido pelo vulcão de onde dimanam os sonhos. São os sonhos autênticos.
Um dia, um mago aconselhou o rapaz a refugiar-se num sonho, num só. Sabia do que falava. Sem disfarce, o mago desembaraçou os vultos que se arqueavam sobre o futuro do rapaz.
Jungle, “Casio” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=yRaJZnlq8bc
Se os tempos mudam, quem somos nós para resistir à mudança?
(Contudo, não se obste à possibilidade de alguém investir contra a maré dominante, habilitando-se aos pergaminhos do novo velho do Restelo. A modernidade não transfigura a liberdade numa frivolidade.)
Novos imperativos soam com os ventos que sopram dos novos quadrantes. Esses ventos vão assentando, emprestando novos hábitos a que as pessoas são primeiro convidadas e depois, se preciso for, coagidas a aderir. O que ontem era normal, hoje é recusado. Como temos de obedecer às novas bissetrizes determinadas pela sapiência de uma casta, o novo catecismo não compreende apenas o presente e o que vem atrás dele, também tem efeitos retroativos. É como se se impusesse voltar ao passado a reescrevê-lo para ficar coerente com as novas bissetrizes em que devemos assentar.
Personagens da literatura, do cinema, até da banda desenhada, passam pelo crivo dos engenheiros sociais. É preciso tornar as artes compatíveis com o novo compasso que nos orienta. Não importa que o passado ofereça lições sem conta sobre os efeitos nocivos da arquitetura que torce o passado até ele rimar com as preferências do presente. Há personagens que foram sujeitas a uma cura de tabaco, outras que foram convocadas para uma nova orientação sexual, outras que perderam falas por conterem palavras que são heréticas de acordo como os novos censores sociais. Vamos ao passado e trazemo-lo purificado. Ninguém pode contestar a ambição higienista dos novos engenheiros sociais: faz algum mal aspirarmos à perfeição? Sentimo-nos envergonhados com o passado? Mude-se o passado.
Quem pode ficar indiferente a este exercício pueril que desmente a lei da inamovibilidade do passado? Ensine-se aos petizes, desde os bancos da escola, que não se devem conformar com o passado, pois podem-no mudar quando lhes apetecer. Nada pode mais do que o voluntarismo humano, que contém a privação das impossibilidades. A seguir, a palavra “impossibilidade” vai ser banida do léxico comportamental.
Há artistas que ficcionam um pé no futuro, tanto é o mistério que o futuro encerra, tanta a previsível pressa para que se cumpra o futuro (sem darem conta que esgotam o presente depressa de mais). Estes novos homens novos, que nos obrigam a ser da sua cepa sob pena se sermos atirados para um atavismo sem direito a asilo, são o avesso daqueles artistas. Resgatam o passado e devolvem-no num estado perfeito. Para o passado não incomodar o presente, perfeito.
Sault, “Time Is Precious”, in https://www.youtube.com/watch?v=15zieRlxd-4
As desculpas rotas não têm a mesma linhagem dos ovos rotos. Ainda que seja descabida a comparação entre matéria do foro comportamental e gastronomia, a semelhança amacia o despropósito da comparação. Dos ovos rotos se diz ser uma iguaria, porventura o resultado de um incidente do gastrónomo amador. Aposte-se: o cozinheiro não queria confecionar um preparado que, depois, foi cunhado como ovos rotos. Constituiu uma desculpa conveniente para o preparado que nasceu de um incidente na cozinha.
Uma desculpa rota é o que o lugar-comum alcunha desculpa esfarrapada (ou de mau pagador). Uma mentira mal confecionada, as sucessivas camadas de factos sem coerência, ficando patente, aos olhos do destinatário, que a cronologia não quadra com a métrica do tempo ou que o enredo montado saltou sinapses. A própria desculpa está descosida, deixando largas partes de pele à mostra. São essas partes desprotegidas da pele que amadurecem a desculpa rota; um eufemismo para mentira.
Antes de ser descoberta, a mentira passa ao largo do radar dos que possam apurar a sua existência. Antes de ser desmascarado, o mitómano tem igualdade de linhagem com os outros mentirosos que juram que nunca mentem. Uma desculpa rota é a autenticação de um amador. É alguém que nem para mentir serve, tão fraca é a ocultação da mentira.
A desculpa rota desmente a comparação gastronómica. O gourmet reside na mentira consistente que demora na sua revelação, ou que nunca chega a ser revelada. As pessoas que não dão conta da mentira não sabem que ela existe. São capazes de contemplar os mitómanos, de os sagrar como deuses (à espera dos pés de barro, assim seja desfeita a mentira que, todavia, demora a ser consentida pelos que teimam em negar provimento à condição de mitómano e à sua romagem de mentiras). Os intérpretes das desculpas rotas não são tratados com indulgência. Trazem os bolsos descosidos por onde caem os grãos da mentira mal disfarçada.
Deve-se somar esta injustiça ao imenso rol de injustiças que é agravo do universo. Os menos mentirosos, apanhados no amadorismo das mentiras que se disfarçam de desculpa rota, são atirados para o canto dos hereges. Pelos mesmos que ainda não souberam reconhecer uma mentira válida e insistem em negar ao mitómano essa condição. Os piores é que merecem indulgência. Não trazem ovos rotos, servem comida prescrita que envenena os comensais. E estes aplaudem, em pé. Talvez por dever de solidariedade corporativa.
Indignu, “Urge decifrar o céu”, in https://www.youtube.com/watch?v=8YOoLyS_Pnc
Os esquimós não vomitam estátuas de cera. A manhã é sepulcral e a vastidão da memória entrecruza-se com os algozes, sempre à espera da confirmação de uma desgraça. E, todavia, os pássaros não deixavam de fazer as rotas de migração, desenhando no oráculo desnecessário a provisão das estações (das vindouras e das que emolduraram o passado).
De cada vez que havia marinheiros em terra, não se pressentia a construção naval. Se fosse altura de erguer navios – tarefa morosa, à margem da paciência das pessoas – os marinheiros não vinham de visita a terra; estariam embarcadiços noutras latitudes, ou desempregados. Talvez se habilitassem a inventariar as aves migratórias, se estivessem desempregados. Um passatempo nunca foi matéria pecaminosa, de acordo com os assentos eclesiásticos.
A manhã arqueava-se sobre os restos do nevoeiro herdado da alvorada, como se deixasse de ser preciso um visto para atravessar a fronteira da tarde. As embaixadas eram dispensáveis e aos diplomatas eram conferidas outras funções, por assim dizer, mais dignas de um estatuto cultural ou esotérico, à sua escolha (as duas possibilidades não são sinónimas, são concorrentes). Haveria de chegar o dia da prescrição das fronteiras. Deixava de haver bandeiras e hinos e as pessoas atravessavam os territórios sem serem estorvadas.
Era como se tudo viesse a um estado original; desconhecido, porém, original. Porque nos habilitamos a uma grandiosidade não requerida no esteio de um amplo campo de flores, como se fosse uma arca de Noé da flora inventariada. Uma doca seca de onde somos erguidos, como os navios que são feitos para não se amedrontarem sequer com os mares colossais. Uma doca seca, para depois sermos as marés que ateiam a noite híbrida – a sua própria aurora boreal, a destempo. A matéria imensamente quimérica. Precisada.
Marcamos no mapa o tempo da investida. Não precisamos de espadas. Não precisamos de trunfos, nem de uma bravura à medida dos descamisados que oferecem o peito nu às contrariedades. Vamos à doca seca, o leito filial, e mudamos a voz para metermos medo aos mecenas do medo.
Man Without Hats, “The Safety Dance”, in https://www.youtube.com/watch?v=1p_BvaHsgGg
Estava impressionado com a diferença entre o rosto ao vivo e o rosto que ocupava praças da cidade. O primeiro tinha rugas. O segundo, não. Se a intenção era convencer os cidadãos, como podia a personagem capitalizar simpatia ao colo de uma mentira do seu rosto? Só se fosse uma intrujice intermediada pela vulgata do “o que interessa não é o rosto, é a alma” para afocinhar os cidadãos na projetada indigência. Só um esteta da arrogância pode emitir um certificado que insulta a inteligência dos cidadãos, reduzindo-os a um estatuto de modesta inteligência. Por outro lado, somos instruídos a ter medo do envelhecimento. Os figurões que posam para os programas que costuram a imagem sabem-no. Aproveitam-se da sanha que caiu sobre a velhice: aos velhos reserva-se um lugar na reforma, é vez de eles darem lugar aos menos velhos e aos mais novos. Mas não passam de máscaras. As máscaras só são voluntárias no carnaval. Fora da época, são disfarces. Quem precisa de disfarce é que não confia em si se sua for uma imagem de autenticidade que esbarra na aprovação dos modernos arquitetos de imagens públicas. Nos cartazes, mostram quem não são. São a prova da contrafação certificada. Quem se habitua a vê-los afixados em cartazes invasores, o rosto de um tamanho que faz de todos nós meros habitantes de uma lilupitilândia, não esconde o alvoroço quando é testemunha presencial desses rostos. A quimera da fotografia curada é desmentida pela observação. A pessoa não parece a que aparece retratada. Não é uma credencial que seja repositório de orgulho. Quem vê caras gastas que se escondem na miragem de uma fotografia irrepreensível, debita o descrédito a favor da personalidade. São fotografias vegan, impecavelmente depuradas, como se os laivos de envelhecimento fossem um defeito. São os que menos merecem confiança.
3rd Secret, “Gift From Above”, in https://www.youtube.com/watch?v=PpeNTEVJSpE
Era altura da poda. Os ramos senescentes podiam contaminar o resto. Não se diria: podiam contaminar o mal, que a decadência dos corpos não é doença. Os aldeões queriam adiar a decadência da árvore emblemática. a árvore era mais do que um ornato da paisagem. As gerações que conviviam aprenderam a admirar a árvore. Não foi por acaso que antepassados lúcidos rebatizaram a praça onde todas as ruas do lugar desaguavam. Passou a chamar-se praça do olmo. Agora, uns ramos enrugados sinalizavam a velhice da árvore. Ninguém sabia qual é a esperança de vida de uma árvore destas. Chamados os peritos, começaram por fazer medições da árvore, mediram-lhe – por assim dizer – a temperatura interna e concluíram que a árvore é centenária. Não souberam dizer ao certo que idade devia constar do bilhete de identidade do olmo. O respeito pela idade vetusta tolera uma década para trás ou para a frente. Os peritos aconselharam a poda a alguns dos ramos. Era preciso chamar outros peritos, a ciência da poda não era a sua. Tempos depois, os peritos certos chegaram. Como se fossem detetives da flora, examinaram os ramos com a minúcia que o profissionalismo exige. Era preciso ser cirúrgico – na plena aceção da palavra. Se fossem cortados ramos sem ser preciso, a árvore sentir-se-ia amputada. Até os aldeões podiam sentir o mesmo, tal a intimidade com o olmo centrípeto. Se fossem cortados ramos decadentes a esmo, a árvore podia perder o centro de gravidade. Era preciso saber se as exigências estéticas se jogavam contra a utilidade da poda. O que queriam os mecenas da árvore: conservá-la na sua vetusta idade, nem que fosse preciso sacrificar a estética? Ou deixá-la garbosa, em detrimento da sua saúde? Era a vez do corte meticuloso do diretor do departamento de saúde botânica. Os aldeões confiaram nele.
The Last Dinner Party, “Nothing Matters”, in https://www.youtube.com/watch?v=pETz4IMmeDU
O Bento nunca foi mecenas do partido. O partido nunca pediu favores especiais ao Bento no que o Bento pudesse ajudar o partido – o partido também era titular de (avantajadas) contas bancárias e, embora desprezasse as qualidades do capitalismo, não enjeitava um juro mais favorável a remunerar os seus depósitos. O Bento e o partido eram mutuamente dependentes. O partido precisava do Bento: alguém que personalizasse o pior do capitalismo (como se, para o partido, o capitalismo tivesse uma única virtude, com a exceção dos juros dos depósitos bancários). Se o partido não tivesse o capitalismo, e seus testas-de-ferro como o Bento, era menos atrativo para os que desconfiam da conspiração capitalista, perdia capacidade de mobilização. O Bento também precisava do partido. Não era tão ostensivo na oposição ao partido como o partido se manifestava contra os capitalistas como o Bento. Ele precisava do partido para justificar parte do salário. Justificava-o por antinomia, sem ser em públicas formulações: é por causa da sanha persecutória do partido contra aqueles que odeiam que gente como o Bento era necessária. Um precisava do outro para justificar uma parte importante da sua existência. Não davam conta como isso os diminuía. Era uma retórica que assentava na desconstrução do outro. Dependiam um do outro, por mais que não o quisessem admitir. Faziam parte da mesma festa, por mais que jurassem não haver condições para coincidirem no mesmo lugar. Para quem assistia à festa do lado de fora, ficava a impressão que a existência de um legitimava a existência do outro. Tirando uma seita minoritária, devidamente doutrinada, os demais entendiam o pesadelo que seria se o partido fosse o dono do poder. À exceção de um reduto de endinheirados, os demais sentenciavam o despudor do capitalismo suicidário com a legitimidade do partido. Não admitiam, o partido e o Bento, mas frequentavam a mesma festa. A festa oportuna.
The Comet Is Coming, “Summon the Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=G55GspnNkBo
Ainda havia umas pendências. Quase toda a gente estranhou a coligação de contrabando entre o partido e o Bento. Os serviços secretos desconfiavam (é sua função desconfiar de tudo, nem que seja para inventar desconfianças que justifiquem a sua existência). Nos dias seguintes, o comité central não atendia o telefone. Não havia rasto da presença do Bento na sua casa. Nem no trabalho. Depois do contratempo, terá tirado férias – especulava-se. O silêncio do partido parecia comprometedor. Se não havia nada a esconder, por que se tinha escondido no silêncio? A coligação poderá ser uma contrafação, mas há sempre lugar para o inusitado; quem pode reclamar de uma originalidade? Os rumores começaram a correr entre os que habitualmente lhes dão corda. Alguns conheciam o Bento de ginjeira. Outros, o partido. Queriam encontrar uma explicação para o entendimento entre impossíveis. Os que conheciam o Bento sabiam que era anti partido primário. Os que conheciam a vida interna do partido sabiam que o Bento estava entre os primeiros alvos a abater (metaforicamente falando) por ser o testa-de-ferro dos bancos. O rumor ganhou asas: o Bento quis ir à Festa do Avante para ser raptado por uns radicais e assim comprometer o partido. Não foram estes os seus termos quando se entendeu com os embaixadores do comité central. O partido queria sacrificar uns radicais, para dar uma prova de vida dentro da democracia: nada melhor do que salvar o Bento, logo o Bento! As dúvidas ressoaram no mercado dos rumores. Falava-se que o Bento queria ilegalizar o partido ao oferecer-se como vítima de um rapto. Do partido começaram a soar umas vozes sem rosto: o Bento fora, em tempos, um mecenas secreto do partido. No brasido da festa, depois do bilhete postal em que o Bento cumprimentava o patriarca do partido (ambos sorridentes), o Bento e o partido entregavam-se à arte da lavandaria.
Orchestral Manoeuvres in the Dark, “Souvenir”, in https://www.youtube.com/watch?v=XDIYOiQUi2s
Os planos esbarraram nos imponderáveis que os radicais podiam ter sondado. O excesso de voluntarismo traiu-os. Pouco tempo depois, perceberam que tinham sido instrumentalizados pelos camaradas do comité central. Perceberam que os serviços secretos não eram chamados para a ausência de resposta ao SMS. A encenação tinha sido insidiosa, um enredo combinado entre o comité central e o Bento. Os radicais foram as vítimas necessárias – podiam dizer todos: os idiotas úteis. As coligações contrafeitas não acontecem apenas entre os fascistas italianos e os camaradas para tirar aos bancos um quinhão dos lucros excessivos. O Bento, esquecendo-se do que dissera a propósito do assunto, entrou na combinação com o partido. Para o Bento, ficava o benefício da tolerância, ninguém esperava que o Bento frequentasse a Festa do Avante. O partido dissipava as dúvidas sobre o seu situacionismo. Por maiores que fossem as saudades do império soviético, os tempos mudaram. Para afastar de vez as dúvidas sobre as credenciais democráticas, que ainda havia uns abencerragens que situavam o partido no exterior da democracia. O comité central emitiu um comunicado: “o partido demarca-se de comportamentos ilícitos de militantes. O rapto de Vítor Bento não respeita o Estado de direito e foi denunciado pelo comité central às autoridades policiais. Os raptores foram colocados à disposição das autoridades. Muito embora seja alheio ao acontecido, o partido pede desculpa a Vítor Bento”. E o Bento, mártire inesperado com direito a um quase elogio do comité central, apareceu na fotografia com o patriarca. Só faltou dizer que estavam irmanados nos mesmos propósitos (não fossem as querelas sobre os bancos, em particular, e o capitalismo, em geral). Ele há coligações improváveis. Sem se saber como, os radicais saíram do radar da polícia e, consta, estão em parte incerta. (A parte incerta é o eufemismo para Cuba.)
Robert Wyatt, “Just As You Are”, in https://www.youtube.com/watch?v=OwwrpGrxFpM
Afinal, os camaradas, sabendo da presença do Bento, deram-lhe caça. Não eram uns camaradas quaisquer: eram radicais. A linha oficial do partido, por mais que abençoasse os radicais, não podia admiti-lo em público. Em nome das aparências, para desfazer as dúvidas, que todavia eles não tinham, sobre a sua linhagem democrática. Consta-se que os patriarcas consentiram a caçada, não sem advertirem que o negariam a pés juntos se a imprensa fizesse perguntas. Não demoraram a encontrar o Bento. A reluzente calvície era como um GPS. E o Bento tresanda aos pútridos capitalistas, sendo apetecível para o faro dos algozes. O Bento manteve-se impassível. Os algozes descativaram as injúrias que tinham arquivadas – “é para saberes que não se brinca com o sofrimento do povo”. Capturado o Bento, os caçadores divergiram sobre o capítulo seguinte: deviam sová-lo, mostrando às câmaras da televisão a tortura como paga pelas constantes injúrias dos bancos? Deviam fazê-lo refém, só o libertando quando os bancos jurassem taxas de juro zero nos empréstimos usados para comprar casas e perdoassem a dívida passada das famílias asfixiadas pela dívida impossível de pagar? Pediram aconselhamento ao comité central, mas a mensagem do telemóvel ficou sem resposta. Equacionaram a hipótese de os telemóveis já estarem sob escuta e com acesso restrito – o Estado, confirma-se, está a soldo do grande capital. O Bento manteve-se calado, aparentemente sem medo. Talvez o Bento confiassem que o partido estava dentro do sistema, não era uma superestrutura terrorista. O Bento não sabia que há fações dentro do partido, algumas quase clandestinas e radicais (afinal, a tese do centralismo democrático era um mito). O Bento foi mostrado no horário nobre. A sua integridade física estava como dantes. Os bancos tinham vinte e quatro horas para corresponder aos algozes. Ou o Bento seria exilado para parte incerta.
Royal Blood, “Out of the Black”, in https://www.youtube.com/watch?v=bSdtvfBQd6c
O Bento comprou um EP para a Festa do Avante. Os camaradas mais assíduos no noticiário nacional deram conta da presença do Bento. Ficaram atónitos, tão surpreendidos como o Bento ficou quando a parte dele que não conseguia controlar quis ditar uma surpresa interior. Do Bento não se pode dizer que seja limítrofe da ideologia consagrada na Festa do Avante. Não há registo de que o Bento seja assinante do jornal. Ele tem feito a pública defesa dos bancos, mesmo quando os bancos são apontados a dedo por quase toda a gente (menos os banqueiros) nesta época de inflação sacrificial e eles, os bancos, alambazados com lucros como não há memória. O Bento é o porta-voz dos bancos. Dele se pode afirmar que é uma voz lídima dos donos que lhe pagam o salário. Há dias, quando os “fascistas” do governo italiano anunciaram a subida do imposto sobre os lucros dos bancos – e os camaradas estarrecidos por não imaginarem andar de braço dado com os “fascistas” italianos... –, o Bento disse, sem corar de vergonha, que os bancos por cá já pagam impostos a mais. Para aumentar o capital de inverosimilhança dos camaradas, o Bento fez check-in para trocar o bilhete em papel pela pulseira da EP. Nenhum dos camaradas chamou nomes ao Bento – ou, o que seria expediente radical, devolveu o dinheiro da EP ao Bento, invocando a reserva de direito de admissão por o Bento, o porta-voz dos bancos, não ser bem-vindo na festa. O Bento andou na festa, de concerto em concerto, visitando as bancas dos partidos irmãos, ouvindo aqui e ali um discreto impropério vociferado por um camarada exaltado que deu pela sua presença. Saiu da festa sem um arranhão (até na autoestima). Os camaradas são civilizados, para surpresa do Bento.
Prefab Sprout, “When Love Breaks Down”, in https://www.youtube.com/watch?v=QeZkLV3ZjeI
Jogada arriscada: não se deixam à margem os proveitos que podem ser recolhidos na safra do dia. Juram-se muitas oportunidades, que ficam desertas. Muitos são peritos em travar a consagração da teoria, como se uma fortaleza sitiasse a passagem à prática, só para desaprovar a teoria. Ou, talvez, porque a truculência gongórica está na moda e as vozes erguem-se numa maré sumptuosa que depois esmaece assim que aspira derrotar o areal. Estes, timoratos, são as marés aparatosas que se traduzem em ninharias. Os logros que militam na esgrima do desencanto. Se fossem traduzidos em vinho, seriam aqueles vinhos correntes, mal-amados, ou apenas amados pelos inveterados consumidores de estabelecimentos de má linhagem. Se ao menos o cânone mudasse; se não fossemos educados a agarrar o braço das maiorias para delas sermos peões; se não deixássemos amadurecer a letargia que se confunde com obediência, por nos dizerem que de outro modo somos párias: se tudo isto for consagrado, somos mecenas de uma região demarcada. As vozes são instruídas a falar pela sua própria cabeça. Ostentamos os selos de autenticidade que atestam a confiança. Não se adiam os amanhãs na região demarcada. Não se fingem galas onde campeia a frivolidade, as vozes gastas em falas de vacuidade. Um espetáculo decadente, a escrutinar os oráculos que não desmentem um porvir que rima com decadência. Não são precisos degraus planos a desmentir as janelas sobre o amanhã. É preciso investir contra a rotina contundentemente enraizada pelos procuradores da normalidade. A região demarcada é um manifesto contra a normalidade. Contra os procuradores dessa normalidade, viciados na infantilização de quem lhes obedece. A região demarcada não transige com o rapto da identidade. Ela é a própria identidade, vacinada contra as vontades avulsas que se coreografam num mar estreito, sem sal, sem marés, com futuro hipotecado.
Death in Vegas, “Hands Around My Throat” (live at Benicassim), in https://www.youtube.com/watch?v=u9Uyh26pdws
Mote: Vamos acreditar que a semente foi lançada por estes dias e que a esperança da conversão irá atingir todos e cada um dos que estiveram presentes e participaram na JMJ. Crentes e não crentes. Esse seria o primeiro milagre da vinda do Papa Francisco. Francisco Mota Ferreira, in Jornal de Negócios, 09.08.23
No rescaldo do conclave mundial dos jovens católicos, os católicos andam nas nuvens (é uma imagem, apenas). Estão exultantes por causa do sucesso da iniciativa. Como se a igreja precisasse deste contar de armas (é uma metáfora) para arregimentar as hostes. Não vem grande mal ao mundo: num mundo feito de crises que se entrelaçam umas nas outras, como se vivêssemos em crise contínua, a igreja também tem atravessado a sua crise privativa. As imagens das multidões no conclave dos jovens católicos, o exalçamento coletivo de quem participou no evento, o banho de fé dos fieis, o atirar à cara dos ateus que este é um país estruturalmente católico (apesar da laicidade constitucional) – tudo compõe um húmus a que ninguém, crentes e ateus, pode ficar indiferente.
Só que a euforia é contraproducente. Não se dá bem com a lucidez. A frase que serve de mote a este texto é todo um programa de euforia inenarrável. Uma manifestação de fantasia. Como correu tudo muito bem e sentiu-se um clamor de fé entre os participantes (e até há notícias que dão conta dos habituais milagres creditados a deus ou uma santa), a seguir virão as conversões. De acordo com o articulista, ainda embriagado pela sua visão do acontecimento, até os ateus (e, possivelmente, os de outros credos) não podem ficar indiferentes ao chamamento da fé. Será um chamamento irrecusável. Ora, quem anda embriagado não pode reivindicar a seu favor um módico de lucidez. Parece o caso.
Não é por a igreja ter na cúpula um relações públicas, contrariando a imagem vetusta e hermética dos Papas anteriores, que a fé, ou a ausência dela, muda de lugar. Deste lugar em que um ateu se situa, o ateísmo não se vira do avesso porque a igreja católica tem um Papa que sabe comunicar sem ser apenas para dentro das sacristias. Sempre ouvi dizer, no tempo em que os Papas eram ornamentos atávicos que incomodavam até alguns crentes não ortodoxos, que a igreja é muito mais do que um Papa. O postulado tem de ser mantido.
A profissão de fé do sr. Ferreira é uma contradição de termos. A igreja – ouviu-se e leu-se por estes dias, até à exaustão – está bem e recomenda-se, tamanha a afluência de crentes ao evento e a exaltação coletiva de fé que puderam partilhar. Se as conversões estão em próxima linha de espera, é porque a igreja precisa ainda de mais crentes. Se precisa de mais gente, é porque a gente que a igreja consegue reunir não é suficiente. Isto prova a fragilidade da igreja católica. Só algo que é frágil precisa de reforçar as hostes para superar essa fragilidade.
Há uma interpretação alternativa da excitação do articulista: a igreja não esconde a pretensão monopolista. Lá vão anos de esforços ecuménicos, traídos pela cláusula de euforia beatífica do sr. Ferreira, que pressente a ocorrência de conversões a rodos. Uns, provenientes de outras confissões, incapazes de dizer não ao apelo da conversão depois de terem sido ungidos pela superioridade do catolicismo. Outros, ateus e agnósticos, não podem ser indiferentes ao chamamento da fé – está escrito nas estrelas. Uma igreja que viesse a ser assim, dominante sobre as outras, acantonando os (possivelmente poucos, de acordo com o oráculo do sr. Ferreira) ateus sobrantes na categoria de hereges, seria uma igreja totalitária. A História ensina que são elevados os custos quando lidamos com totalitarismos da mais variada cepa.
Eis a cruzada sonhada pela euforia do sr. Ferreira. Para bem dos demais, o Sr. Ferreira fala em nome próprio, sem mandato da hierarquia eclesiástica.
The Murder Capital, “Ethel” (live from Lafayette), in https://www.youtube.com/watch?v=-EUp8tVie_8
Descoberta a bainha do luar, as pessoas paravam, encantadas, quando o entardecer se recolhia no seu olhar. A claridade demorava a desmaiar, como se o dia fosse narcísico e temesse que a noite pudesse amedrontar as pessoas. Temia que a noite viesse embutida no medo dos espectros que a dominam. Uma estória passava de boca em boca: as pessoas que ficavam extáticas com a noite acabavam por ser tatuadas por um vulto. A pele assoreada não era a mesma. As pessoas acreditavam que a tatuagem era uma maldição. A tatuagem não tinha sido encomendada, fora feita à revelia. Era contra o império da vontade. Estranhamente, não disfarçavam a sua apatia perante outras manifestações de dependência. O remorso da tatuagem era tangível. Era um contrafação, a violação do princípio sagrado da vontade. Consideravam-na a má tatuagem. Podia contaminar o sangue, ao desconfiarem que o sangue era contíguo à pele onde fora deposta a tatuagem pelos vultos erráticos da noite. Também estavam erradas: não há contiguidade entre a pele e o sangue, podiam estar descansadas e deixar que o sono reparasse os medos consumíveis. Configurava-se uma conspiração medonha: seria pela noite, quando as pessoas se dedicavam à boémia, ou quando tinham Morfeu como testemunha, que o vulto procurador da noite assestava a tatuagem. Símbolos ininteligíveis, todavia belos. Reconheciam a estética sublime das tatuagens, mas continuavam a acusá-las de serem más tatuagens. Temiam que a tatuagem fosse um esconderijo para uma das modernas conjurações que sancionam o conhecimento de todos os aspetos da vida das pessoas. A tatuagem era má porque conteria um dispositivo que desnudava toda a vida de quem assim fosse escrutinado. Mas a tatuagem não era nada disso. Não era, sequer, a má tatuagem. Era só uma tatuagem, a colonização da pele por um símbolo discreto e enigmático. Os medos podiam ser esconjurados.
Sigur Rós, “Gold”, in https://www.youtube.com/watch?v=S9aMeRDxSKo
Não será ultraje se a humildade mandar dizer que não fomos mandatados para salvar o mundo. É de vultuosa proporção, o mundo, e nós, admirados pela pequenez que não nos acossa, não estamos à escala das exigências. Salvar o mundo não é desafio que pertença ao nosso apartado. Devíamos dar um passo atrás para inquirir se o mundo precisa de salvação. Teríamos de admitir que o mundo está pelas horas da morte e que carece de salvação, para não cair nas malhas irremediáveis da decadência. Por mais que sejamos empossados embaixadores do pessimismo metodológico, outro passo atrás devia ser empreendido para perguntar se o mundo, em seu estado comatoso, quer salvação. Os observadores dividir-se-iam. Uns, na posse de uma candeia fosforescente que irradia o porvir, dirão ser dever nosso não perder as baias do futuro. A desesperança não quadra com a natureza tempestuosamente especulativa, que é a nossa. Outros, em plena capitulação, assinam o prefácio do estado irreparavelmente puído do mundo. Não nos interessa esta estéril peleja, todos distraídos do que devia importar: admitir que somos ilhas minúsculas, sem latitude de ação, à mercê do mundo que está de costas para nós, e nós, afogueados pelo tempo insincero, não estamos destinados a ter escondido nas mãos o segredo heurístico do mundo. Dirão: nós também somos um pedaço do mundo – também somos mundo em edificação, a menos que desistamos de ser o ser. Dizemos que não desistimos. Dizemos que as dores do mundo nos doem por dentro, cauterizam as veias fundentes da alma, assim suprimindo a sua quimera. Não podemos nada contra a força majestosa do mundo. Somos as margens onde o mundo ora vem levemente beijar, ora atear a angústia. Somos as margens que emprestam um módico de fertilidade ao mundo, um módico irrisório, distante. Se o mundo não nos acautela, por que deveríamos ter a pretensão de o salvar?
Bill Callahan, “Last One at the Party”, in https://www.youtube.com/watch?v=yAtaQy-exak
Traduz: o musgo que avança pelo cais não desaprova o sortilégio dos marinheiros que o pisaram em tempos. O cais não é demarcação exclusiva dos marinheiros e dos pescadores que ganham a vida ao cometerem atentados ao ambiente. Não interessa. Não podemos ser todos consciências habilitadas. Ao invés: quantos marinheiros que pisaram o cais a ele não voltaram? Alguns usaram o cais como partida e dele não voltaram a não ter conhecimento. Outros, foram náufragos. Quantos seriam inventariados em cada categoria? Tradução: o musgo que coloniza o lajeado do cais é a metáfora dos marinheiros que não voltaram a ver terra firme depois de o terem usado como casa da partida. Se for medida a medida do musgo que se encavalita no cais, temos seiscentos e quinze centímetros, neste dia em que escrevo. Terão sido seiscentos e quinze marinheiros perecidos, as suas sepulturas desconhecidas num ermo que não tem paradeiro a não ser o mar. Ninguém terá encomendado as suas almas. Ninguém se lembra da vida dos marinheiros, continuamente no precipício. As tempestades desavisadas, os ventos que cortam a pele, a pele que ganha rugas precoces, a má vida quando matam as saudades de terra firme, as distrações que não têm direito a existir, os maus modos que são o código de conduta dos embarcadiços, a constante faca aguçada do imponderável a pressionar a jugular, os sonhos que são invadidos por pesadelos. Quantos filhos teriam dado à estampa se não fossem cadáveres no fundo do mar? Quantos portos outros teriam demandado se as suas vidas não fossem interrompidas antes do tempo? Mede-se o tamanho do musgo: seiscentos e quinze, centímetros. E o cais, quantos metros tem? Seiscentos e quinze. Alguém devia desmentir os apóstolos da cabalística: as coincidências existem e não são sufragadas por uma gramática.
Spiritualized, “Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space” (NPR Music Live), in https://www.youtube.com/watch?v=A7FEENQd6UI
No circo, os trapezistas estavam sempre confiantes. Por mais ousadas que as acrobacias fossem, não se intimidavam. Talvez em antecipação das modernas técnicas de relações públicas (quem aparece perante o público deve exibir boa disposição perene e sorriso de orelha a orelha), os trapezistas desafiavam a lei da gravidade com um sorriso descomplexado. O leigo, que não percebe nada de arneses, collants e camisolas cintadas e se assusta com os malabarismos encenados pelos trapezistas, diria que eles são dementes: quem arrisca a vida com cambalhotas que, correndo mal a função, se saldam com o despenhamento no chão de certeza duro? Como era possível arriscar a vida todos os dias e exibir um sorriso congelado? Os trapezistas sabiam que tinham uma rede de segurança. Um dia, uma criança (talvez sobredotada – ou apenas sem ser atraiçoada pela distração das acrobacias) confidenciou aos pais que tinha a certeza que os acrobatas não seriam tão confiantes se não houvesse rede de segurança. A função era um embuste. O rapaz – talvez não um prodígio, mas apenas a expressão da genética nacional que se extasia com tragédias decoradas a sangue vivo – saiu insatisfeito. Queria ver se os acrobatas seriam intrépidos se a rede de segurança fosse retirada. Não lhe interessava as condições de segurança dos artistas. Não lhe interessava a indignidade de ter um público a assistir, em primeira fila, ao despenhamento de um acrobata se ele desse um passo em falso. Precocemente, bolçou “assim também eu”, como se algum dia conseguisse coreografar as acrobacias. O rapaz foi aprendendo que não é o sangue derramado em tragédias que conta para ilustrar a condição humana. É dar segurança, o abono da vida que se quer prolongada. Foi aprendendo que há armadilhas a rodos, mas que a humanidade soube conquistar a pulso as muitas escapatórias que dissolvem as armadilhas.
Entre Aspas, “Gin”, in https://www.youtube.com/watch?v=k8uxDxFTcIM
Maltrata-se a esperança. É desta têmpera que somos, a arma sucessiva que dispara no pé próprio. De outro modo, seríamos retratos efémeros, as silhuetas cintilantes que medram numa constelação de néones a despropósito. De propósito, assentamos num chão puído que se disfarça de carnaval. Antes fosse uma cortina de espelhos a mandar na clepsidra militante. Antes fosse outra a pauta diligente e nós, obedientes, recusávamos uma melancolia sem proveito. Se os dias pedem meças à lucidez, talvez estejamos anestesiados por uma imagem fictícia que nos desamedronta. Se é para fingir que não temos medo, dizemos: não temos medo. Pode ser que as palavras sejam um sortilégio e afastem os espectros que invadem o perímetro da lucidez. Ou então, deitamos sementes à memória para esquecer o futuro. O custo necessário da hibernação, devolvendo o passado que começa a perder significado nas cortinas que começam a ficar baças. Não entregamos a chave do labirinto. Não sabemos do seu paradeiro. Sabemos: ao menos, que já não voltamos a ser reféns do labirinto que nos amordaçava no pavoroso estigma de um subterrâneo sem luz e sem mapa para seguir. Evoquem-se as proezas para memória futura, à falta de outras herdadas do passado, se tão importantes forem para a diligência de alguém que quer saber quem é. Os olhos cicerones não capitulam perante o crepúsculo que os toma por mentecaptos. São meticulosos, persistentes, sabem que o sono adiado cativa a vaidade sem paradeiro. Sabem que há sempre a página à espera que deixa a página teimosa à medida da prescrição. Os espíritos sem mordaças são severos (a começar por eles). Não transigem com a falácia das facilidades. Não se hipnotizam com as frívolas ascensões, meteóricas ou não, que medram no deslumbramento. Dizemos: de outro modo – e ao dizê-lo, dizemos que não nos conformamos.
Sault, “Glory”, in https://www.youtube.com/watch?v=UNrlZiXjVGc
Um périplo pela ausência. Talvez, um dicionário de multidões, sem haver conhecimento de uma única alma. Os objetos transitam entre os dias ajuizados, oferecem-se aos leigos. Atingia um estado de invasão para o exterior: um narcisismo virado do avesso, às fundações resgatada uma euforia com paradeiro.
Era preciso era um dicionário da euforia. Para aferir se a euforia não era excedentária. Se esses forem os preparos da euforia, adivinha-se um amplo precipício. Os escultores da prudência aconselhavam – isso mesmo – prudência (ou dela não fossem exímios artesãos). A euforia devia ser limitada para que não fosse desmontada. Se em vez de deceção soasse o zimbório do legitimamente possível, o precipício mudaria de lugar: seria um pequeno precipício, a sua queda controlada e não dolorosa.
Mas a euforia parecia não desafinar. Em volta, tudo parecia surpreendentemente belo (não estava habituado: o olhar limítrofe costumava esbarrar nas inestéticas aparas deixadas pelos que bolçavam). Quando levantava o véu do porvir, pedindo a licença dos oráculos atentos, o pressentimento não se gorava: nunca fizera tanto sentido prefaciar o adágio segundo o qual dias melhores estão prometidos nos ditos oráculos.
A minimização das desilusões convocava o temperar da euforia. Não seria ilegítimo temperar o avanço do futuro. Em vez de uma ambição sem medida, o rogo da modéstia (sem ser de falsa jaez). Desde o grande observatório do mundo, alguns observadores preferiam limitar as esperanças. Podia um contratempo destruir as bases do pensamento, adulterando os pressentimentos hasteados. A moderação constituía uma prevenção à prova de possíveis dissabores. Nunca se dê por garantido um pressentimento, que o futuro, tornado presente, pode desmenti-lo.
Temperar a euforia era uma carta a favor da euforia. Se as marés não estivessem a favor, a euforia seria injustificada. Ilegítima e contraditória. Com a agravante de ter fermentado férteis vulcões de euforia que não teriam tradução, deixados desertos pelo dicionário da euforia. Devia haver peritos em euforia. Para serem os seus tradutores, não deixando os eufóricos à mercê da euforia mendaz.
Pulp, “Underwear” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=2Mue1YWDzMc
Uma lacuna importante do currículo: nunca fui a uma manifestação. Talvez por as manifestações organizadas não estarem alinhadas com a minha mundivisão (ou o inverso, tanto faz), talvez por causa da irreprimível misantropia, nunca inscrevi o meu nome numa manifestação. Não as desvalorizo. Através das manifestações, é dada existência à voz de protesto que, de outro modo, fosse ela silenciada, maior seria a asfixia que limita os nossos passos, o nosso sentir, o nosso estar na comunidade. Por mais que não me identifique com a bitola habitual das manifestações, pior seria se elas fossem proscritas.
É no quadro desta inexperiência que há dias, enquanto assistia pela televisão a imagens de uma manifestação, me deu para formular perguntas epistemológicas sobre as manifestações. Haverá um manual de estilo, ou as manifestações obedecem à improvisação? Haverá uma certificação profissional de organizador de manifestações? (Não estou a pensar na tramitação legal que obriga a pedir licença às autoridades para a realização da manifestação.) Haverá uma organização por detrás da organização de uma manifestação, com animadores dotados para mobilizar as massas, ditando o ritmo das palavras de ordem? De quem é a autoria dos cartazes empunhados numa manifestação: é centralizada nos organizadores, ou é dada liberdade a quem quiser participar na manifestação? Quem pode participar numa manifestação: a admissão é reservada (a militantes, ou membros), ou qualquer um pode participar? Existe um paradigma de manifestação, ou as manifestações não correspondem a modelo formatados?
Assistia às imagens da manifestação e perguntei-me: quem tem a palavra para desmobilizar a manifestação? Não estou a insinuar uma ordem policial, correspondendo a uma determinação do governo, para pôr fim à manifestação – seria uma intolerável restrição ao direito de manifestação. A pergunta tem outro contexto: quando a manifestação se encaminha para o final (porque nenhuma manifestação é eterna), quem tem a voz de comando para informar os manifestantes que a manifestação terminou? Como se proclama o fim da manifestação?
Será “camaradas: acabou a manifestação, vamos todos para casa”? Ou “pessoal: chegámos ao fim da manifestação, obrigado pela vossa participação”? Ou a manifestação termina espontaneamente, sem ordens dos organizadores, os manifestantes tomando consciência que o propósito da manifestação se esgotou e, ato contínuo, começam a desmobilizar?
Calibro 35, “Gun powder” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=VO9YMjoYuiA
Expiam as culpas sem que ninguém tenha perguntado por elas. Os legados que se abatem à revelia da vontade desfazem as ilusões sobre a autonomia: somos minúsculos grãos numa empreitada de que nem sabemos ao certo o tamanho, a vontade de cada um não tem apelido nem apeadeiro onde estar.
Se ao menos deixassem que a vontade de cada um tivesse toponímia própria, não era preciso a condescendência dos outros com o beneplácito de entidades que se situam um patamar acima de nós para selarem o perdão. Não andamos à procura de perdão. Não andamos à procura de arrependimento. Queremos chamar a responsabilidade pelo nome próprio, sem partirmos em demanda da aprovação exterior. Deixamo-los a contas com os seus atos, as suas vontades, a responsabilidade que não deve sair das fronteiras do ser. A coletivização da vontade é dispensável. A coletivização do perdão e a intermediação de entidades que se investem da capacidade de caucionar o arrependimento não têm lugar no palco a que subimos. Não somos rebanho.
Podia-se perguntar: onde está o arnês? Seria a pergunta axial, a pergunta suficiente. Ser-nos-ia atribuída a diligência de encontrar um arnês e de o trazer vestido como se fosse o seguro perene contra as contrariedades que se jogam contra a vontade, tornando-a um erro à procura de indulgência. Mas a não colocação do arnês não seria sujeita a punição; a tutela da responsabilidade seria a voz distintiva.
A indulgência coloniza-nos. A lógica da sindicância paternalista impõe-se sobre o espelho da consciência. A consciência deixa de ser privativa, fica permeável ao escrutínio de fora para dentro. Sobre ela impõe-se um dever de socialização. Contrariando a sua natureza, a consciência torna-se coletiva. O arnês deixa de ser preciso.
Que não fiquemos sitiados pela ilusão: a dispensa do arnês e o convite para a consciência partilhada não é código de conduta. É preferível não dispensar o arnês e recusar a transfiguração da responsabilidade em património comum. Não devia ser permitido sermos tutores recíprocos das consciências. Não é digno metermos no peito as consumições interiores dos outros. Nem devia ser padrão suplicar aos outros que perfilhem as nossas dores de consciência.
The Chemical Brothers (feat. Halo Maud), “Live Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=pqU4g5iJk2Y
Quando se sentem acossados, os comunistas reagem acusando quem os maltrata de serem anticomunistas primários. É uma estratégia que compensa. A vitimização desvia do assunto, porque o assunto incomoda e pode lesar a causa. Quem se coloca na posição de vítima, denunciando ataques infundamentados, granjeia simpatia e desloca a discussão para quem se lhe opõe, acusando-os de serem oponentes primários para os desqualificar – como se fosse proibido ser-se opositor de alguém. Pelo caminho, perde-se o fio à meada do assunto que deu origem à discussão.
Alguns católicos perfilham o mesmo método. Perante posições que se opõem à reunião magna dos jovens católicos sob o alto patrocínio do Papa, os católicos mais acirrados acusam os críticos de anticlericalismo primário. Outra vez: em vez de se discutir o assunto essencial, atira-se o opróbrio para cima dos antagonistas, desqualificando-os por serem “primários” e obrigando-os a arrostar o seu anticlericalismo. Como se não fosse permitido a um ateu ser anticlerical (mesmo que nem todos o sejam). Há quem tenha dificuldades em conviver com a liberdade de expressão e com o direito à diferença.
Por mais que doa a muitos católicos, há perguntas que não podem ficar órfãs. Elas não têm a ver com os custos da operação e se é aceitável o investimento do Estado. Num Estado laico, com a laicidade registada na Constituição, há um chefe de Estado que não disfarça o catolicismo militante e deixa o exercício da função contaminado pelo seu catolicismo militante. Não está em causa o catolicismo de sua excelência, que todo o cidadão, a começar nele, tem o direito a manifestar a fé ou a ausência dela. Não consigo entender como um chefe de Estado, um constitucionalista exímio, não consegue separar a fé do exercício do cargo.
Será um conforto para os católicos, que precisam deste arregimentar presidencial para se salvarem da crise de fé que tem diminuído a militância católica, mas a laicidade do Estado sofre uma amputação. Para um não crente – e, imagino, para um crente institucionalista – a militância de sacristia de sua excelência é lesiva da laicidade do Estado. Se é para sermos um Estado laico só para fazer de conta, não é preciso fingir a laicidade que está escrita na Constituição.
Podem os católicos invocar que o catolicismo é a religião dominante e que os seus direitos de manifestação de fé devem ser defendidos. Não estão em causa. Acredito que nem o “anticlerical primário” defenderá o encerramento de locais de culto e a perseguição de católicos (a menos que gravitem na órbita de supressão das liberdades, que os há). Os privilégios que a igreja continua a ter não batem certo com a Constituição, deixando-a num patamar superior em relação a outras confissões religiosas. O laicismo do Estado não é respeitado e os privilégios dos católicos violam a igualdade entre as confissões religiosas. Esse é um dever de um Estado laico: sem haver religião oficial, todas as confissões religiosas têm (ou deviam ter) os mesmos direitos. Sem inventariar os fieis para aplicar leis de proporcionalidade que não são reconhecidas pela Constituição.
Somos um Estado laico no verbo constitucional, mas não na prática. É perturbador ver cerimónias de inauguração de obras públicas com o alto patrocínio de representantes do Estado sujeitas à bênção do bispo da diocese. Não se pode invocar o “costume”, porque a deslaicização do Estado teria fraturado os ossos desse costume. A menos que seja apenas por superstição (abençoar a obra para lhe emprestar sorte divina) e entramos no domínio do paganismo. É intrigante ver jornalistas muito excitados com o conclave da juventude católica a entrevistarem um membro do clero ou uma jovem peregrina, parecendo que os plumitivos saíram diretamente de um convento para a redação do canal televisivo. É inaceitável que um presidente da república não tenha conseguido despir a sotaina metafórica depois de ter sido eleito, parecendo que representa a hierarquia eclesiástica antes de representar quase onze milhões de cidadãos.
Não se pode tolher a liberdade de credo e, portanto, não se pode impedir que um católico se despeça dizendo “se deus quiser”. Pela mesma medida, pode alguém ficar indisposto se um ateu (talvez imediatamente abjurado como anticlerical primário) ripostar no avesso da moeda, declarando “até amanhã, sem o dedo de deus”? Pode um ateu formular todas estas interrogações sem que os católicos o encostem a um canto, acusando-o de reconhecer deus pela simples negação da sua existência? Pode um ateu não levar com o camartelo do anticlericalismo (e primário, se for para o menoscabar) ao sentir-se invadido pela excitação decretada pela comunicação social quando noticia os preparativos para o conclave da juventude católica? (Como se a manifestação dissesse respeito a uma maioria de cidadãos, não sendo esse o caso, a atestar pelos estudos recentes que identificam um retrocesso do catolicismo e o emagrecimento da hoste dos católicos.)
Pode um ateu propor uma subscrição pública para ser devolvida à república portuguesa a laicidade constitucional sem ser atirado para o anticlericalismo primário?
The Smile, “Speech Bubbles”, in https://www.youtube.com/watch?v=GWiWIN9TKBs
O tubo de escape troava, rouco, para todos saberem que o boxeur também are adepto do tunning. “As pessouas fazem-se anunciar”, ruminava em silêncio, caso tivesse de se autoconvencer da fibra de ostentação. Um cidadão distraído encostou-se ao seu automóvel, não travou a tempo do semáforo vermelho. Alarmado pelo som metálico, o boxeur saiu do carro para inspecionar os danos. Foi mais o ruído do que o prejuízo. Ainda assim, a amolgadela era visível. Tinham de chegar a um acordo e quem bate por trás assume a culpa – manda o código da estrada.
O cidadão – bem-apessoado – desfez-se em desculpas. Não deixou de reparar no ar contrariado do boxeur. “Não fique maldisposto. A culpa é minha. Vamos assinar os papéis.” O boxeur sentiu a mostarda a chegar ao nariz – como diria o povo, especialmente o que tirou pós-graduação em lugares-comuns e adágios populares –, o boxeur fervia em pouca água. Das palavras levadas à boca pelo cidadão, uma parte (“não fique maldisposto”) fez com que o boxeur ficasse virado do avesso: “mas quenhe é bociê para me diziêre se dievo ficare madispuosto, home?”
“Não se exalte”, procurou o cidadão acalmar o boxeur, vendo as coisas malparadas perante o arcaboiço do boxeur, que nem as tatuagens profusas conseguiam disfarçar. “Não se exalte, já lhe disse que sou culpado”, enquanto o boxeur mudava de cor, as veias do pescoço quase a explodirem e os olhos prestes a saírem da orbita, enquanto crescia para o indefeso cidadão. “Mas bociê é duoido, ou num perciebe a ciena?”, exibindo os músculos fermentados para assustar o cada vez mais indefeso cidadão.
Só que o medo do cidadão bem-apessoado era encenado. O cidadão estar bem-apessoado era um disfarce. “Tenha calma, tenha calma, meu amigo” e esgueirou-se para dentro do automóvel, na direção do porta-luvas, talvez para ir buscar a declaração amigável para sanar o diferendo. “Mieu amigo, mieu amigo?! Mén, tu estás aqui estás a axantrar, fuogo, que cruomo, meu!”
Já o boxeur investia na direção do cidadão indefeso e este, num ápice, virou o jogo do avesso ao sair do automóvel com um revolver em punho, que encostou à cabeça do boxeur. “Tiveste a possibilidade de resolver isto a bem, ó cromo. Agora vais meter o rabo entre as pernas, vai lá para o teu bólide azeiteiro e desaparece da minha vista.”
Meses depois, esquecido o episódio e apagados os danos pela algibeira de cada um sem intervenção das companhias de seguros, o boxeur deu de caras com o cidadão bem-apessoado (que continuava bem-apessoado, pese embora fosse domingo – para o boxeur, domingo não era dia dos bem-apessoados se apessoarem bem). Era uma cerimónia pública de apresentação de um torneio de boxe. O cidadão bem-apessoado foi apresentado como ministro do desporto e da cultura (por esta ordem).
Estava explicado por que era bem-apessoado e, todavia, tinha uma arma de fogo escondida no porta-luvas do automóvel. Cego pela memória mal digerida, o boxeur não tinha percebido.