Dos tempos em que decidira ensaiar o tirocínio para a advocacia (desses não saudosos tempos): era fundamental espreitar a jurisprudência de casos semelhantes aos que iam a tribunal dentro de dias. O que é a jurisprudência? O conjunto das decisões dos tribunais em casos semelhantes. O seu estudo serve para perceber como os tribunais têm decidido em casos parecidos. E para ter uma noção das probabilidades de êxito, sempre descontando os detalhes que distinguem os casos por mais parecidos que eles sejam. Também havia volumes de jurisprudência anotada, recebendo o contributo de ilustres juristas. Aí se fazia comentário das sentenças – a contragosto de suas excelências os magistrados, convencidos da sua aura de infalibilidade, no lastro do muito respeitinho devido que se convencionou a um “órgão de soberania”, sinalizado através do respeitoso erguer de rabo da cadeira quando suas excelências entram e saem da sala de audiências.
Sem saudades desses tempos de prometido jurista, hoje tomo o papel de jurista (não) arrependido para comentar uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça. Use-se o termo técnico correcto: “acórdão”, não sentença – que a comunidade de juristas é muito zelosa da terminologia técnica. Cheguei a essa sentença através do blogue “cinco dias”. Foi um caso de violação de duas jugoslavas que se aventuraram a pedir boleia na berma de uma estrada algarvia. A coisa foi parar a tribunal e foi subindo, de recurso em recurso, até à decisão final do Supremo Tribunal de Justiça. Que absolveu os garbosos algarvios que tomaram pela força as jovens jugoslavas. Com esta justificação:
A minha reacção imediata foi decompor a palavra “jurisprudência”. Em duas metades: juris mais prudência. Reli o excerto do acórdão e retive a segunda metade da palavra “jurisprudência”. Há alguma prudência nesta “douta” decisão do Supremo Tribunal de Justiça? Li outra vez os fundamentos da decisão: já se percebe onde a decisão se casa com prudência: é que, no fundo, os juízes-conselheiros que assinaram o acórdão subscrevem a marialva teoria do “elas estavam mesmo a pedi-las”. Quem as mandou vir para a berma da estrada de polegar em riste pedir boleia aos automobilistas que passavam? Estava-se mesmo a ver: o que elas queriam não era só uma boleia. Podiam elas ignorar que estavam “em plena coutada do chamado macho ibérico”? Até se pode ir mais longe na efabulação: quem, no seu juízo, não percebe de antemão que as jugoslavas viajaram até ao Algarve por saberem dos especiais dotes copuladores dos “machos ibéricos”?
Há palavras que são o retrato das mentes retorcidas de quem a lavra. Os juízes, homenzarrões feitos e, aposta-se, com um invejável cadastro de conquistas femininas (ou como, senão através da experiência feita, podem confirmar que as "turistas estrangeiras" têm um "comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas"?), não duvidaram em afirmar que nestas terra quentes do sul da Europa as hormonas ficam tão excitadas que, por vezes, a pulsão febril pelo sexo feminino não é “fácil de dominar”. Uma vez mais a prudência a aconselhar recato às turistas que vieram ao escaldante Algarve e provocaram os rapazes que corresponderam aos polegares estendidos na berma da estrada. Sem esforço se percebe a simbologia daqueles polegares estendidos: a via verde para o sexo consentido num desvio da estrada.
Há algo que não bate certo. Se o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, é porque as jugoslavas apresentaram queixa. Portanto, não terá sido sexo consentido. Foi violação. É espantoso como os juízes se substituem ao livre arbítrio das vítimas e inocentam os violadores. Os magistrados sem inteligência suficiente para perceberem que pedir boleia não é uma passadeira estendida para o envolvimento carnal, sobretudo se o caso aparece à frente dos seus olhos?
Já nem sei o que será mais inquietante: acreditar que suas excelências mandariam os violadores para a cadeia caso as vítimas fossem suas filhas, ou desconfiar que, com aquela infausta argumentação do acórdão, os juízes encaixam no perfil do violador potencial.
Boa tarde,penso que num caso desse os juízes foram um tanto insensíveis e tiveram uma péssima decisão.Vale perguntar:E se fossem filhas desses magistrados,como eles interpretariam o caso?
ResponderEliminarGrande abraço.
Luigi.