4.6.24

Os fantasmas querem nomes? (Uma visão bondosa da União Europeia)

Pond, “Midnight Mass” and “Man It Feels Space Again” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oRlu6zl8hbw

Devia começar pelo óbvio: as opiniões são livres, uma bendição da democracia e da tolerância com os que têm um pensamento diferente; as perceções sobre entidades políticas, como a União Europeia (UE), podem divergir por partirmos de diferentes pressupostos; como corolário dos dois postulados, este texto, muito embora parta (e se distancie) de dois artigos de opinião recentes, não os quer refutar. O seu propósito é o de, modestamente, expor uma visão da UE que está nos antípodas daqueles artigos.

Os dois artigos de opinião são de Jaime Nogueira Pinto (JNP) (“O que está em jogo”, Observador, 1 de junho) e de Ricardo Pinheiro Alves (RPA) (“O federalismo é uma ameaça para a União Europeia”, Observador, 2 de junho). O federalismo como maldição da UE faz o pleno em ambos os artigos. O de RPA limita-se a mostrar a falácia do federalismo e a vaticinar que, se as elites insistirem em trazer o federalismo para dentro da UE, poderá levar ao seu desabar porque implica “uma intentona para acabar com a legitimidade democrática nacional”.

Na UE, o federalismo é o patinho feio. É frequentemente objeto de interpretações erróneas sobre o que significa. Muitas vezes, o viés dos detratores do federalismo parte de um exercício especulativo: a metamorfose da UE de acordo com um dos modelos conhecidos de federalismo. Ora, a UE é uma organização política diferente dos Estados e das típicas organizações internacionais. Sendo diferente de um Estado, e não se concebendo, com o conhecimento atual, que ambicione evoluir para os “Estados Unidos da Europa” que tanto amedrontam os opositores do federalismo, o exercício comparativo não passa de contrabando ideológico. Uma âncora imaginada para arregimentar lealdades contra a ideia de Europa.

Outra fonte da tresleitura do federalismo é partir do conceito como se fosse homogéneo. Mas não existe federalismo; há federalismos diversos, com características diferentes. Há federalismos centralizadores e federalismos que promovem a descentralização. Se os adversários do federalismo na UE insistem em esbracejar este fantasma é porque o entendem como uma ameaça existencial ao Estado-nação. JNP adverte que “(a) nação independente e soberana continua a ser a comunidade ideal para proteger direitos, liberdades e garantias, coletivos ou individuais. É importante que a União Europeia não continue a cair na tentação de querer ser mais do que uma comunidade de Nações.” Situar o problema do federalismo nestes termos ignora o federalismo descentralizado, que se inspira no princípio da subsidiariedade (a UE também se alicerça nele, convém recordar). E traz consigo uma insinuação de índole conspirativa, de base dicotómica: ou a UE recusa o federalismo, ou é a sobrevivência do Estado-nação que está em causa. 

Resgatar a História da integração europeia é um exercício pedagógico. Os pensadores na vanguarda da integração europeia podem ter preconizado soluções ambiciosas para a federalização da UE, mas a perna das decisões políticas, a que esculpiu a prática da UE, esteve sempre muitos passos atrás dessa cobiça. Os oponentes do federalismo receiam que o futuro seja madrasto para a integridade do Estado-nação. Talvez desconfiem que os futuros eurocratas, com o consentimento distraído dos políticos nacionais, sejam os fautores de uma Europa federal que enquista os poderes dos Estados na irrelevância. Não passa de um exercício especulativo, que não tem como se esconder do anátema da conspiração que é instrumental a esta posição.

O indevido entendimento do processo de integração europeia alimenta um rosário de erros. RPA alerta que os deputados eleitos para o Parlamento Europeu (PE) representam os países que os elegem e não “(...) qualquer utopia difusa chamada ‘interesse da UE’”. Admito que essa seja a sua visão pessoal que, todavia, esbarra no preceituado pelos tratados europeus. RPA esvazia a existência de “interesse europeu”, argumentando que se subsume na constelação de interesses nacionais. A ontologia da integração europeia (para além da paz, seu valor primário) funda-se na existência de problemas comuns aos Estados membros, que aceitam tratá-los em conjunto, no quadro das instituições da UE. Se não fosse hostilizar as ideias do autor, diria que esta lógica quadra com a metáfora do condomínio como fundamento de uma solução federal.

A partir do momento em que as (então) Comunidades Europeias foram criadas e dotadas de alguma autonomia, personificada num sistema institucional próprio que usufrui de autonomia em relação às autoridades nacionais, essa autonomia deve ser reconhecida à UE. Se os países cuidam dos bens públicos comuns através das instituições da UE usando recursos partilhados, como negar a existência de interesses europeus? As lições da História oferecem outro contributo inestimável: as Comunidades Europeias não nasceram à revelia dos países fundadores, nem a UE evolui em segredo, às escondidas dos Estados membros. 

JNP oferece o seu ceticismo ideológico sobre a UE. Parte da defesa dos partidos nacionalistas (é esta a sua cunhagem) para o leitor entender a posição acataléptica, ou mesmo a oposição à UE, desses partidos. Parte da sua mundivisão, influenciada pelo nativismo, para recusar o multiculturalismo e limitar a entrada de migrantes e de refugiados, pois estes comprometem “(...) a identidade a longo prazo e a segurança a curto prazo das comunidades de acolhimento (...)”. E serve-se do determinismo histórico, que a História aconselha a tratar com reserva, ao perfilhar “valores de orientação permanente (como a pátria e as pátrias, as famílias, uma ética de inspiração cristã, a liberdade)” para recusar “mais Europa” que se oponha à “Europa das nações”. 

JNP não dá conta que o derradeiro valor (que estranhamente afasta da custódia da UE) é contraditado pela formulação que o antecede. Como  advogar a liberdade partindo do pressuposto que há “valores de orientação permanente” que cerceiam a liberdade de valores alternativos?

É esta Liberdade (a maiúscula não é acidental) que habilita diferentes perceções sobre a UE. O leitor já deve ter compreendido que sou “euro-otimista”. Não diligencio a conversão dos que desconfiam da UE, pois corresponderia à violação da sua liberdade. Para defesa da minha posição concorre o pessimismo antropológico associado ao determinismo histórico do Estado-nação (esse viveiro de guerras mortíferas) e o reconhecimento de que a Europa unida, que medrou nas diversidades (o lema da UE  é “unidade na diversidade”), baniu as guerras do seu território por 79 anos (até ver). Este  é um devir comum, europeu, em antinomia com uma “Europa das nações” que é geneticamente confrontacional e propensa à beligerância.

Se o preço dos nos entendermos ao nível europeu é a paz, que esse preço seja entendido como um investimento existencial.

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