18.9.24

O roteiro de um conservador que preza muito os costumes e ambiciona a devolução de Olivença

Mogwai, “God Gets You Back”, in https://www.youtube.com/watch?v=hq30tXF-n5E

(Na primeira pessoa, o conservador)

Vigiar os outros é minha especialidade – e não faço parte dos serviços secretos. É uma canseira. Estou de atalaia, sempre diligente para prevenir que almas tresmalhadas atravessem a fronteira do permitido pelos cânones e comecem a pisar o chão pantanoso da perfídia. Faço-o com sacrifício da vida familiar. Esta incumbência é desgastante, a muitos olhos exteriores é deselegante. A páginas tantas acabo por esquecer que tenho vida própria e uma família para outorgar carinho. 

Já tentei mais de que uma vez o afastamento terapêutico. A generosidade cava cicatrizes fundas. Não são reversíveis. O estado do mundo é cada vez pior, o número de almas errantes que incorrem em múltiplos pecados está sempre a crescer. O hedonismo está quase a tonar-se numa religião. Os bons esforços que ponho no encaminhamento das almas são objeto de sarcasmo (por uns) e de rejeição contundente (por outros). Até ouço, de vez em quando, “vai tratar da tua vida”, como se o sacrifício dela não fosse do meu conhecimento e não soubesse traduzi-lo num ónus que se deita em cima dos meus pesares.

É impressionante como muitas pessoas vivem imersas em sofismas. Com a minha bondade intrínseca, tento chamá-las à razão, à verdade, à luz límpida que só Deus é capaz de nos garantir. Rejeitam tudo. Às vezes, com maus modos. Pergunto se estes hedonistas, estes embaixadores dos vícios e das depravações, estes mastins que mordem na generosidade dos costumes bons em que se acamou a sociedade, não são lídimos representantes do demo. E estão espalhados, com zeloso critério, para difundirem o mal, a frivolidade, a decadência, a degeneração, a entrega aos prazeres superficiais da carne, tudo empanado num véu que esconde o fingimento da liberdade. Não precisamos de liberdade; precisamos de seguir Deus e os seus mandamentos – e dispensamos perguntas sobre o que já sabemos, que inventem a palavra “dogma” e putativas crises existenciais que só servem para nos desamordaçarmos dos costumes. 

Estou cansado. Quando vou à missa, vejo a audiência a enfraquecer, os fieis envelhecidos como presságio da decadência do culto e provavelmente da popularidade do catolicismo. Vejo promiscuidade. Vejo os prazeres fúteis a serem preferidos à espiritualidade. Vejo que Olivença continua a ser ocupada por Espanha (e defendo, sem que me tivessem pedido, que a Catalunha deve continuar a fazer parte de Espanha). Vejo as mulheres a exigirem igualdade (ó heresia!). Vejo homens que amam homens, mulheres que amam mulheres e outros que não sabem bem o que amam – se é que amam. Até vejo que por aí já se escreve “outres”. Vejo mulheres que se metamorfoseiam em homens e homens que passam a ser mulheres. Vejo os partidos de esquerda que ainda são admitidos a eleições. Não vejo grande futuro destinado ao mundo. Estou desiludido: sinto que a minha tarefa, e a dos outros missionários espalhados pelo mundo, foi um logro.

(Em sendo assim, posso-me dedicar aos aspetos subterrâneos, mundanos e inconfessáveis, da minha vida: teimar em grande parte dos pecados de que sou incumbido de contrariar com a pose beata de que fui dotado. Pois enquanto passo a aparência de muito me preocupar com os descaminhos dos outros, finjo que não tenho exatamente os mesmos.)

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