1.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 6)

Spain, “Nobody Has to Know” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=gM25OK5-6wE

   O senhor Robertson é dono de uma empresa gráfica na Samolândia profunda. Sempre votou no partido por que foi eleito o presidente da Samolândia. Também contribuiu para a sua vitória eleitoral. Alguém o ouviu rejubilar na noite das eleições: “agora sim, o partido tem um líder que representa a Samolândia profunda.” Robertson devia saber que a febre das “tarifas” anunciadas pelo presidente não foi uma cartada inesperada; já constava do programa eleitoral. Para os que não se deram ao trabalho de ler o programa, o candidato do partido não escondeu ao que ia: “as ‘tarifas’ são das coisas mais belas do mundo”, disparou a meio de uma conferência de imprensa, naquele seu jeito imensamente pueril.

        A empresa do senhor Robertson só vendia cartazes para o mercado da Samolândia. Estava confiante que o presidente aplicasse “tarifas” às empresas concorrentes do país vizinho, que ultimamente andavam a roubar quota de mercado na Samolândia. A meio da febre “tarifária”, o senhor Robertson tomou consciência das suas proporções. Não foi só o país vizinho a ser afetado pela hemorragia “tarifária”; outros foram levados na maré. Por momentos, o senhor Robertson esfregou as mãos e não era por estar frio (era Primavera adiantada). Os concorrentes do país vizinho deixavam de conseguir entrar no mercado da Samolândia. “Bendito presidente, se não fosses tu não voltaria a ter o mercado do país só para mim.”

           O senhor Robertson exultou a destempo. Afogueado pela febre “tarifária” e convencido, pela fraca ciência do líder (e dos seus conselheiros), que as empresas do país voltariam a dominar o mercado nacional depois de serem impostas as “tarifas”, Robertson esqueceu-se de virar a folha do avesso. Era lá que estava escrito que a sua empresa também ia ser contaminada pelo vírus destrutivo das “tarifas” que tinham sido pensadas para tornar a Samolândia grande outra vez. 

       O senhor Robertson esqueceu-se que as tintas, uma das principais matérias-primas para produzir cartazes, eram importadas da Sinolândia. Era o lugar onde as tintas eram mais baratas sem se comprometer a qualidade dos cartazes (em segredo para si mesmo, admitiu: comprometia-se um pouco da qualidade – mas os lucros aumentaram depois disso e jurou não dizer nada a ninguém). Quando o presidente da Samolândia anunciou, em desastrada sessão pública, a aplicação de “tarifas” e os países visados, as tintas compradas a empresas da Sinolândia estavam entre os sectores atingidos. 

          O senhor Robertson fez as contas: as tintas encareceram 75%. Como as tintas representam mais de metade dos custos de produção dos cartazes, descobriu que os cartazes ficavam 40% mais caros. Teve suores frios: podiam ter avisado, as autoridades, que esta onda de choque das “tarifas” também prejudica a economia do país. Robertson tinha lido umas poucas páginas sobre globalização, mas a escrita e o assunto pareceram-lhe esotéricos. Antes tivesse levado as leituras até ao fim, para ter dotes de interpretação dos efeitos sísmicos das “tarifas” para as empresas da Samolândia. Nem era preciso os outros países retaliarem; como num ricochete, a punição das “tarifas”, que se supunha ser orientada para os produtos dos outros países habituados a entrar no mercado da Samolândia, atingia as empresas da Samolândia. Afinal, o senhor Robertson não ia reconquistar quota de mercado. 

       O sentido de patriotismo e a lealdade ao presidente omitiram durante algum tempo o desagrado do senhor Robertson. Ao fim de umas semanas, a acumulação de perdas assustou-o. Estava ainda pior do que antes da febre “tarifária”. Robertson começou por confidenciar as dificuldades a empresários de outros ramos de atividade. Estavam a sentir embaraços semelhantes. Não era um exclusivo das gráficas. Ao cabo de algumas conferências restritas, os empresários que tiveram de comportar estes custos inesperados começaram a esboçar protestos (ao início) sibilinos. Quando as vozes começaram a ser audíveis e o incómodo bateu à porta do palácio presidencial, um perito avivou a memória aos manifestantes: “não se vitimizem com o desconhecimento destes efeitos, quando me perguntaram adverti que eles tinham elevada probabilidade de acontecer; não se queixem, este rombo nas vossas carteiras não foi inesperado.”

       O cortejo de descontentes era encabeçado pelo senhor Robertson. Suplicavam a sua excelência que retrocedesse e fosse cirúrgico na seleção dos países e dos produtos atingidos. Em vão. O líder não podia meter marcha-atrás, que é modalidade desconhecida de um varão autêntico. 

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