Vai grande o rebuliço com a falta de quórum na Assembleia da República, quando mais de metade dos parlamentares decidiram antecipar o fim-de-semana alargado pascal. Há por aí muitas virgens ofendidas na censura dos deputados faltosos, sobretudo daqueles que se deram ao luxo de entrar no hemiciclo, assinar o livro de ponto e alar para paragens mais agradáveis. Francamente, não vejo onde esteja a surpresa. Haveria pasmo, outrossim, acaso no deve e haver se registasse um reduzido abstencionismo laboral entre a classe dos deputados.
Ser deputado é tarefa ingrata. Os olhos estão todos deitados sobre as eminências pardas. Qualquer passo em falso e têm a comunicação social à perna, uma comunicação social sedenta de escândalos que vendem papel. Quando o sangue é derramado por deputados, tanto melhor. Porque o exemplo deve vir de cima, aos deputados é exigido recato, decoro, competência, labor, uma entrega que personifique bitola acima da média. E ainda que dois terços dos deputados sejam anónimas figuras – porque os holofotes mediáticos apenas repousam em meia dúzia, os artistas da companhia – é frequente sabermos que fulano ou sicrana ocupam um lugar no parlamento quando se destacam pelas piores razões.
Dizer que as funções parlamentares perderam importância – aqui como em todos os lugares que se dizem democracias parlamentares – é lugar comum já estudado. Cada vez mais os parlamentos ocupam um lugar simbólico. Se legislam, na maior parte das vezes limitam-se a plebiscitar iniciativas legislativas entregues pelo governo. Nos casos em que existe maioria de um partido no parlamento, este serve de correia de transmissão do governo. Os deputados têm consciência que não passam de verbos de encher. Se algum deles aprendeu a importância do parlamento nos clássicos manuais, depressa se desengana. A teoria está divorciada da realidade.
A sinecura dá-lhes mordomias que o desempenho não justifica. Há quem defenda que os titulares de cargos públicos com tanta solenidade deviam receber remunerações bem mais elevadas. Seria a forma de atrair os melhores ao exercício de funções públicas, o truque para melhorar a performance dos eleitos. Ao mesmo tempo, a passadeira para a mediocridade ser vassourada do parlamento.
Não duvido da bondade da ideia, mas tenho reservas quanto à sua eficácia. O problema não é de quem acampou no parlamento, sem se perceber os critérios que franqueiam as portas a medíocres personagens escolhidas pelo método esconso da constituição das listas partidárias. O problema está na desvalorização do parlamento, cá como lá fora. Está documentado: as decisões com implicações no bem-estar das pessoas passam ao lado dos governos, mesmo dos países poderosos. São os mercados, a globalização vituperada por tantos, que determinam a marcha da carruagem. Se nem os governos, sozinhos, conseguem influenciar essa marcha, que dizer dos parlamentos, actores pequeninos neste cenário?
Pelo caminho, continuamos a perder tempo com as diatribes dos deputados. Podem-me dizer: eles são bem pagos, muito acima do salário médio, pagos com os impostos que todos somos obrigados a entregar nos braços do Estado. E que será indigno de um representante de um órgão de soberania receber o pecúlio do seu salário quando produz pouco e falta amiúde. Compreendo a indignação pela discriminação positiva que favorece os deputados. O comum dos mortais não se pode dar ao luxo de faltar tanto ao trabalho, arriscando a receber um salário amputado no final do mês. (Descontemos os funcionários públicos, com mil e um expedientes para faltar hoje e amanhã sem que o salário seja beliscado.) Honestamente, não acho que sejam tão fortes as razões para a indignação: se são peças decorativas, se é de escassa importância a função, tanto me dá que tenham elevada ou reduzida assiduidade. A solução é óbvia: em vez de lhes aumentar o salário, o contrário.
Tarefa ingrata, a de ser deputado. Alvos de todas as atenções, sem espaço para a mínima escorregadela; algumas benesses levadas no vento (já nem podem viajar em classe executiva nos aviões…); e, adivinho, a suprema frustração de se sentiram peças decorativas, apanhados no meio de jogos florais da pequena política partidária, apanhados na revoada da globalização que diminui o seu protagonismo. Não seria sinecura para mim.
2 comentários:
Solução? Acabar com o parlamento?
Entregar isto ao parlamento europeu?
Aceito que o nosso parlamento tenha perdido aquele decisivo peso que teria num país não pertencente, por exemplo, à Comunidade Europeia... mas daí até ser uma mera figura decorativa, acho que não.
O que eles são, por muito que nos custe, são o reflexo da população média deste país. Quando ouço alguém que foi deputado muitos anos defender que não se deviam marcar votações em dias de jogos como o "Benfica-Barcelona", está tudo dito. Se a moda pega, fecham-se as empresas nesses dias, as lojas e, porque não(?), os hospitais - afinal, joga o Benfica! Este português médio que só trabalha quando tem o patrão ao seu lado. Em Portugal, o patrão Estado já morreu (e não sabe)...
estamos entregues a nós próprios... e isso é tramado!
Ponte Vasco da Gama
A solução não é entregar as chaves ao Parlamento Europeu. Seriam um sinal de centralização excessiva. A perda de protagonismo dos parlamentos só será um problema porque representa uma conquista de poder pelos governos. Ora os parlamentos é que são os lugares de eleição da representatividade popular (não os governos, que o são apenas indirectamente). O que se passa por cá é uma réplica do que sucede nas democracias ocidentais. É o preço a pagar pela crescente especialização da decisão, que escapa cada vez mais à intervenção dos parlamentos. No fundo, a perda de importância dos parlamentos não é dramática: com o baixo calibre dos parlamentares, pouco há para lamentar (quando asneiram). Por isso é que sou da opinião que estão a receber salários excessivos para a importância do que fazem.
Paulo
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