#1 – Foge sem fingires se a fuga for exílio voluntário, mas irrecusável, do atual estado das coisas.
#2 – Atravessa a maresia que se levanta no zimbório da madrugada, que o tempo a essa hora é feito de ausências.
#3 – Convoca a claridade para o teu olhar, preenche-o com uma página em branco que espera por uma fotografia onde tudo se apura na sua lhaneza, sem os equívocos fabricados por farsantes e a armadilha em que são apanhados os seus antagonistas.
#4 – Nunca saias à rua sem a poesia que fala em teu nome.
#5 – Dá-te à imaginação que se congemina a favor no palco sem espinhos a que sobes sem medo dos caçadores que não se desamparam da estultícia.
#6 – Aprecia as flores que vicejam nos arbustos da montanha, nota como elas compõem a paleta de cores que depõe a favor do arco-íris.
#7 – Desinteressa-te dos que, em pose grave, exercitam os seus oráculos. A atualidade a que viras costas será ainda pior com o desenho dos prefaciadores do porvir.
#8 – Mergulha nas teclas de um piano, por mais que sejas amador.
#9 – Desamarra os medos que sobem pelas costas dos dias e deixa-te estar como embaixador do tempo presente que se esconde da sua medida.
#10 – Sepulta os fantasmas num lugar avulso e ermo e esquece-te do seu paradeiro.
#11 – Consagra-te aos vícios que te apetecer sem receio do olhar acutilante e densamente moralista dos outros. Ensina-lhes que as vidas deles são indiferentes.
#12 – Combina números de memória com as estrofes de um poema arrancado de uma página ao acaso.
#13 – Exalta a música que te isola do resto como um idioma à prova de regras.
#14 – Adormece por dentro dos sonhos de que já não tens inventário, eles sussurram o roteiro magno do dia estilhaçado.
#15 – Comparece na praça deserta, fecha os olhos, e submerge no labirinto que se entretece no tempo furtivo.
#16 – Acorda com o suor pendido na testa, os sonhos ilegítimos proscritos, e uma vontade irreparável de sair sem roteiro, preso pelo peso do acaso, furtivamente à revelia da atualidade.
Viram? O peão avançou uma casa. Se quisesse saltar umas casas pelo caminho, não podia, as regras não deixavam. Já o cavalo move-se três casas, desde que uma seja numa direção e as outras duas noutra direção. Um cavalo vale mais do que um peão.
Ou então desmistifica-se a comparação. É apenas um jogo de xadrez, não é preciso chegar a conclusões impróprias. O xadrez pode ser uma metáfora, mas é só uma metáfora. As metáforas são exercícios estilísticos que podem ajudar a perceber o que se passa à nossa volta, mas não reproduzem o contexto como se fossem um padrão fidedigno. Ou podia-se amortecer a rudeza da comparação – quem é que se lembraria de trazer um cavalo para o palco onde a pessoa quer ser comparada? – lembrando que o cavalo tem uma passada mais comprida do que a pessoa. Por isso, três casas de cada vez.
Se à metáfora se regressar, tanto é possível sugerir que o xadrez é profundamente antidemocrático como desvalorizar o jogo como representação do mundo em que nos movemos. Em abono desta posição, não é legítimo extravasar de um jogo para o mundo, pois um jogo é apenas um jogo. Se se alinhar pela primeira posição, anotam-se as limitações aos movimentos dos peões, compara-se com os movimentos do cavalo, e a tempestade perfeita aterra no horizonte: ao povo não se deixa avançar mais do que ao cavalo. O cavalo tem mais direitos do que o povo.
O xadrez é o selo das desigualdades que continuam a tatuar a pele social. Os bispos podem-se mover na diagonal num número de casas que só depende da sua vontade. As torres – a personificação do exército – movem-se quase como os bispos, só que não podem saltar casas na diagonal. Só a rainha se move quantas casas quiser, na diagonal, na vertical, ou na horizontal. Quem inventou o xadrez era clerical e a favor da monarquia.
É quando se observam as movimentações do rei que o diagnóstico que a democracia inerente ao xadrez sofre um retrocesso – e um retrocesso destes representa um avanço social. O rei só se movimenta uma casa de cada vez na diagonal, na horizontal, ou na vertical. Ou o rei está obeso e anafado e, cansado de tanto exercício que implica avançar uma casa, senta o abundante corpo na primeira casa à mercê.
Afinal, o xadrez não é antidemocrático. Acolhe um rei sedentário e os peões também sedentários. Quanto à latitude dos movimentos, não há grande diferença entre o rei e os peões. O rei desce do pedestal para celebrar a soberania do reino junto dos anónimos peões. E estes, nem que seja por um dia, convivem com o rei descido às ruas. O xadrez ensina que as peças de um lado do tabuleiro são gregárias e falam umas com as outras. Mas não falam com as peças do outro lado do tabuleiro.
O xadrez pode não ser antidemocrático, mas é um livro aberto onde os beligerantes encontram casa para se guerrearem.
Atribulados tempos os hodiernos, em que a moderação entrou em retração e a razoabilidade está em vias de extinção. A causa radica na radicalização em curso. Acusam-se os populistas de uma certa extração, que passam por cima das lições da História e cuidam de a reinventar quando é conveniente. Segundo a proposta apocalítica dos que se apressam a atribuir esta titularidade ao grotesco desfilar de radicais, é a vingança sobre a História. À sua conta, um discurso que perdeu o pudor de usar certos temas dantes tabu, não hesitando em recorrer a uma retórica excessiva que não é compatível com o debate civilizado.
Do lado contrário, cada vez mais acantonado no singular (dantes era mais fácil observar a pluralidade deste lado da trincheira), situam-se os que sempre hostilizaram esta extração de radicais, os que os repudiam por atentarem contra o código de conduta da convivência democrática, e os que, não se situando em nenhum dos dois sectores anteriores, se demarcam dos radicais com a marcação de um perímetro de segurança. Dantes, eram os primeiros que se socorriam de uma retórica desaforada para resistirem à emergência dos que outrora foram combatidos muitas vezes com o preço de vidas. Os demais assenhoreavam-se da moderação.
O tempo atual reconfigurou a paisagem. A polarização tomou conta do palco onde competem visões concorrentes. Responde-se com discurso grotesco ao discurso grotesco dos radicais. Como o discurso grotesco é todo ele grotesco, não se admita que há o grotesco bom, que se abriga sob a nossa asa, e outro grotesco que deve ser categoricamente denunciado. Sobretudo se a imoderação que tem tomado conta dos que nunca foram radicais derreter a razão que possam ter. Da mesma forma que a violência coalha a razão, e não há razão que se alicerce no bastião da força, responder ao discurso imoderado com reações imoderadas traz os moderados para a casa dos radicais. Para combater os radicais e as ameaças que eles possam representar, há muito quem defenda que deve ser usada metodologia afim.
Só que o radicalismo e a imoderação em que se debate não podem ser a caução de uma imoderação de sinal contrário, porque se trata de imoderação. Quando se objeta ao discurso soez de um radical com palavras também agressivas e em contramão com o código de conduta dos moderados, passamos a não ser diferentes dele. Alguns dirão, em defesa da derrapagem intencional para o discurso extremado, que é por um imperativo de resposta aos radicais a que nos opomos. É a gramática que eles conhecem. Se assim nos comportarmos desde o outro lado da trincheira, começamos a falar a mesma gramática que é característica deles. Começamos a ser parecidos com eles, pelo menos no modo como falamos com eles. Começamos a adulterar a nossa identidade.
Para continuar a haver uma linha de demarcação, não nos podemos sentar à mesa do banquete dos beócios. A convivência contagia-se e, de começarmos a recorrer a uma retórica grotesca, usando os mesmos métodos e figuras de estilo dos radicais, passamos a falar numa gramática igual. Contribuímos para o empobrecimento do debate público quando devolvemos, sem o sangue de aracnídeo que devíamos ter, acusações tão torpes como as que são típicas das provocações encenadas pelos radicais.
O argumento válido não é o da palavra imperativa para desmontar o radical ameaçador, se essa palavra nos nivela pela sua estatura. O argumento válido é deixá-lo a falar sozinho, enredado na puída língua de trapos em que articula o primitivo pensamento, deixando por sua exclusiva conta a procissão de mentiras, de ideias perigosas, de insultos gratuitos, de boçalidade que trespassa os seus corpos. O argumento deixa de ser válido se descemos ao seu nível, pois legitimamos a sua retórica, o seu modo de estar, a hostilização contínua. Não queremos ser como ele, mas agimos como se fossemos um deles.
Esta é uma das possibilidades mais aviltantes da polarização, a que parte da radicalização de uns e termina com a radicalização dos outros como reação aos primeiros: o nivelamento é feito por baixo. Ao ódio não se responde com ódio, porque é ódio na mesma. Responde-se com indiferença. Que é o prémio merecido dos radicais que ateiam o fogo da acrimónia constante.
É cedo. O horário de trabalho pode esperar. O torpor arrasta-se pelas ruas, diante da luz inaugural. Um homem passeia o cão no jardim. Outro corre pelas ruas da cidade (e como é possível alguém correr àquela hora?). Se chegar atrasado quinze minutos, não acontece nada. E se o atraso for de meia hora? Nunca se sabe o estado de humor do chefe. Como se diz, “é de luas”. No escritório, especula-se com o estado de humor do chefe de acordo com uma linguagem cifrada, para ele não entender. E depois especula-se sobre o que poderá ter motivado um humor lunar ou um estado pré-depressivo. Nunca tem humores moderados, o chefe.
Na carruagem do metro, alguns dos rostos habituais. A maioria dos rostos são anónimos – ele há muita gente a habitar a cidade grande. Há quem dormite, aproveitando os solavancos do metro para embalar o derradeiro sono (ou o sono que ficou por dormir), apesar da estridência das rodas ao friccionarem os carris. Uma rapariga lê literatura de cordel, um daqueles autores consagrados sem ser pela qualidade literária (autores da moda, portanto). Outra vai imersa nos auriculares, esboçando uma coreografia agitada só com a cabeça e a perna direita. Passa um cego a mendigar, tateando com a bengala para abrir caminho entre os passageiros que não arranjaram lugar sentado. A voz feminina e radiofónica anuncia a próxima estação, em versão bilingue: “Braço de Prata”.
Quem teria tido um braço de prata, que prótese rara teria sido entranhada no seu braço decepado? Sabe: o braço de prata é um lugar, não é sobre uma pessoa. É aquele lugar do estuário que se alarga, como se o rio se desdobrasse num braço longo que fica à mercê do sol e ganha a forma de um espelho prateado quando o vento faz tréguas e o caudal fica açudado. Para passar o tempo e obliterar dos sentidos os solavancos da carruagem, não faz mal fantasiar. Ninguém pode ser acusado de delírios criativos.
Por ser segunda-feira, a vontade de ir para o escritório é menor. Seria assim se trabalhasse noutro lugar? E se mudasse de ramo e não trabalhasse num escritório, para passar a jornada de trabalho como se fosse um nómada? A especulação ajuda a matar o tempo (que expressão mal inventada!). Ajuda a fingir que o tempo fugiu entre os dedos, só para ter um pretexto para os quinze minutos de atraso que nunca são contados como tal.
Os passos arrastados estão por conta do arranque cambaleante da semana. Na rádio, logo pela manhã, o locutor tecia o habitual lamento quando inaugura a semana (“temos uma longa semana pela frente”), mas lembrou, para o caso de a alguém ficar esquecido, que a meio da semana havia um feriado. “Assim custa menos a semana”, vaticinou, com o habitual desdém pelo trabalho.
Nunca entendeu estes comprimidos de iodo que uns tomam para só saberem trabalhar e outros tomam como vacina do sacrifício que é ir para o trabalho. Ele só queria ter direito a meia hora de atraso aceitável sem ter de aturar os humores variáveis do chefe. Sempre considerou que se satisfaz com pouco.
O segredo é deixar alguém a falar sozinho quando se pressente que o contrário agride a lisura mental. Há pendências que devem ficar desertas, por falta de comparência. A demissão de falar não é uma capitulação.
Invoca-se um risco de assim proceder: a soez voz monopolista ocupa todo o espaço, sem contraditório que possa desmontar essa voz ruidosa. Quando alguém monopoliza com a sua voz, a audiência não tem como escolher; a escolha está feita à partida, por falta de comparência ou omissão intencional das vozes que podiam quebrar as pernas à voz monopolista.
A infantilização da audiência é exagerada. É preciso confiança na diligência das pessoas, não as atrair para um canto onde são tratadas como se não pudessem forcejar a sua própria autonomia. A falta de comparência não é um desencorajamento interior colhido do medo de falar com o outro. É um critério de sanidade: se o outro é sócio da desonestidade intelectual e enxameia o discurso com truques de retórica rasteiros, e se perpassa a leve desconfiança que a discussão será invadida por golpes baixos e pela lama onde gravita o outro, o melhor é não lhe dar o palco que ambiciona. Ou, o que é pior, e sem ele conseguir perceber que é, que lhe seja dado o palco em regime de monopólio, para que mais ninguém suba a cena enquanto estiver em palco.
A falta de comparência é em proveito de quem falta e de todos os outros. O faltoso não tem de lidar com o canhestro. Não cai no logro de quem defende que é imperativo contrariar o canhestro, correndo o risco de dele ser a única voz que chega aos destinatários. A audiência que pensa pela sua cabeça não tem de assistir a uma discussão em que participa apenas um, por falta de comparência dos outros.
Há ocasiões em que a falta de comparência é a prova de sensatez.
A meio do assunto, perdem as rédeas. A distração subiu ao sangue e ficaram enredados numa pendência. Sitiados por uma teia onde se emaranha o pensamento, confuso. São vítimas das múltiplas solicitações que fermentam a distração e os desviam de um assunto. Às vezes, com grande perda para esse assunto, que não é retomado.
É como se os ventos tivessem influência em nós. Os ventos que passam pelo nosso lugar já estiveram noutros lugares, já foram respirados por outras pessoas. Esses são ventos que trazem a respiração das pessoas que foram por eles atravessados num momento anterior. São ventos que reúnem uma constelação de influências ao sabor das muitas pessoas que os inspiraram e que, com a sua expiração, serviram a conduta do vento. Não é de estranhar que seja adestrada a distração como inspiração máxima da sucessão de assuntos que passam pelo crivo das pessoas. Ainda bem. A rotina é das piores condenações que se pode conceber.
Os metódicos, que odeiam ser desviados dos assuntos que têm entre mãos, recusam a desorganização mental. Ficam desorientados se uma revoada de temas desfilar sem organização, suplantando a sua vontade – colonizando a sua vontade. Querem ordem no pensamento. É o pensamento que alinha a ordem dos assuntos. Admitem suspender temporariamente um assunto para se dedicarem a outro que de repente exige atenção, mas mantêm o assunto suspenso numa mnemónica que organiza a ordem interior sem a qual se sentem errantes. Os metódicos são os que mais sacrificam a sua liberdade interior. Têm perna curta na disciplina do pensamento.
Quem anda ao sabor do vento, saltitando de assunto em assunto, quase sempre deixando coisas por terminar, é o perna longa que alcança muito mais mundo. Não se atém à mordaça da disciplina interior que alinha tudo criteriosamente num ensaio de perfeição que, todavia, fica sempre por cumprir. Só os perna longa têm ossatura para abrir os braços e contemplar uma miríade de assuntos. Podem soçobrar ao caos interior que os habita. Mas não os podem acusar de monotonia.