Estação de comboio: também permeável à colonização do consumismo, povoada por um punhado de cartazes que selam o triunfo da publicidade.
(Os gurus acreditam que, sem publicidade, o consumo fica aquém do desejado, pois os consumidores têm de ser constantemente alertados da existência dos produtos que, de outro modo, não comprariam. Ou então, é só para os gurus da especialidade convencerem os capitalistas que estão cobertos de razão, um artifício para justificarem o salário e para fazerem prova de vida.)
Uma empresa de eletrodomésticos apossou-se do rosto de um famoso humorista. Dizem que foi pago a peso de ouro.
(Sabendo-se o valor da onça de ouro nos mercados e de uma estimativa de peso do comediante, depressa se chegaria à conclusão de que ele vale mais do que a cotação internacional do ouro. Não quero saber do estipêndio do humorista, nem das acusações de incoerência por o comediante gravitar na órbita da esquerda, já ter votado nos comunistas e, mesmo assim, se inebriar pelo vil metal e não recusar índices exteriores de algum consumo de luxo. Assim como assim, o humorista tem o mesmo direito do comum dos mortais de fazer pela vida. Tem o mesmo direito de todos nós, o de sermos, ou aspirarmos a ser, burgueses.)
O que me impressiona ultrapassa todos esses fait divers. Não consigo ter noção das vezes em que o rosto do comediante aparece de norte a sul, do litoral ao interior, e nas ilhas. Não se pode dizer que um rosto assim seja privado: enquanto figura pública, já perdeu o direito ao anonimato; enquanto figura pública que empresta o rosto a uma campanha de publicidade, o rosto pertence ao espaço público onde essa publicidade acontece. Emancipou-se da pessoa.
Não consigo imaginar os danos que esta vulgarização de um rosto pode causar. Já um rosto público perde a avença da privacidade por rapidamente descoberto pelos transeuntes; pior é o estatuto de um rosto que se desmultiplica dezenas, centenas, milhares – eu lá sei quantas – de vezes em diferentes cartazes publicitários em lugares diversos. A regalia do anonimato já estava perdida; com a vulgarização do rosto em praças, avenidas, estações de comboio e metro, postos de abastecimento de combustível, jornais e televisões, e onde mais o cartaz com o rosto do comediante tenha sido afixado, o seu rosto foi nacionalizado. Já não é mais seu. Habilita-se a reinterpretações que dependem do estado de espírito e da diligência dos candidatos às artes que vierem adulterar o cartaz.
Não deve ser confortável saber que num só dia, o seu rosto é visto — e com a proximidade proporcionada pelo tamanho gigantesco do rosto em sua versão comercial — por milhares ou, talvez, centenas de milhares de pessoas. A menos que o dinheiro embolsado conte mais do que tudo o resto.
Conhecia o frio que revoluciona o sangue hibernado, como se o frio, estando nos antípodas de um vulcão, com ele conspirasse para agitar as moléculas que gravitam na órbita da vida. Conhecia o frémito invulgar que se assenhoreava das veias, como se elas esperassem a adrenalina de quem corre a par do tempo. Conheci os lugares que inventariei na contrafação do inviável.
Queria, desses lugares, uma doação em forma de madurez. Como se eles fossem os procuradores habilitados a estilhaçar o obscurantismo de que pedimos despojamento. Não queria que o espesso crepúsculo se abatesse sobre os olhos, encerrando-os numa cortina baça, indestrutível, atirando-me para uma cratera onde a vida não respira. Preferia deixar de lado as coisas mundanas; inspirar com toda a força as estrofes que o mundo tem para oferecer, banindo os embaraços mentais que crescem no avesso da vontade.
O frio beijava a pele, a pouca pele à sua mercê. Irrigava a carne com os vestígios dos lugares bem-vindos, mesmo quando deles não levamos senão vagas recordações. Se fosse desenhar uma geografia que rima com a existência, seria um mapa trespassado por muitos espaços em branco; seria um mapa retalhado; mas seria uma geografia que legou toda a riqueza dos paradeiros averbados no promontório do sentir. O frio não importava. Era ávido na clareza que devolvia e ensinava o olhar a não se distrair com as banalidades que são presença assídua.
Quando dizia às pessoas que prefiro coabitar as paisagens invernais que estão habituadas à neve, olhavam para mim, umas boquiabertas, sem perceber como alguém prefere habitar paisagens enregeladas; outras, com algum desdém por ajuizarem que ninguém, no seu inteiro juízo, prefere o frio ao calor. Eu insistia sempre. Desafiava os usos instituídos que tomam conta da gramática e fabricam expressões idiomáticas que passam à margem da contestação. Desafiava os embaixadores desses usos, contestando a definição de bom tempo e de mau tempo. Era injusto que o tempo frio e chuvoso, relativamente frio e chuvoso que às vezes se abraça ao outono e ao inverno, tivesse de ser entendido como mau.
Não era por interior propensão a habitar lugares despovoados que desafiava as convenções. Já que tanto se fala de linguagem e da sua reinvenção ao gosto dos novos tutores que a combinam com agendas emergentes, podia alguém despontar do marasmo para recusar que o tempo chuvoso, ventoso e frio, e as tempestades em geral, tivessem de arrostar o adjetivo que o tornava pejorativo.
Não é o tempo que é mau; são as pessoas que habitam no interior da maldade.
Carta do pai Natal a um destinatário anónimo e ao acaso:
Querido(a), ou não tanto, destinatário(a) que hás-de ler esta carta. Desta vez é ao contrário: eu é que escrevo uma carta. Eu, que não gosto de escrever e hesitei muito antes de começar a verter umas palavras na folha em branco, sei agora que prefiro escrever uma carta em vez de ler todas as cartas com que os adoradores do Natal, esses esperançosos ingénuos que não cessam de acreditar que o Natal patrocina a redenção, entupem o meu apartado postal.
Tu, que já começaste a ler o primeiro parágrafo desta carta, saberás, por muito ingénuo que sejas, que não é a meta-narrativa das cartas de Natal que me traz à escrita – tanto que, como saberás também, não há conhecimento anterior de cartas remetidas pelo pai Natal (desculpa falar de mim mesmo na terceira pessoa, estou ao corrente tratar-se de uma forma disfarçada de narcisismo, mas qual é o mortal que consegue resistir aos modismos?).
O que me traz a esta missiva é um par de conselhos, ou talvez um pouco mais, que considerei deixar-te em herança do Natal deste ano. Como se fossem presentes que se somam aos que fizeste constar na carta que me dirigiste. As prendas não esperadas são as mais saborosas. É o que ouço dizer, não é por experiência própria que te lo digo, pois não existe a tradição de prebendar o pai Natal. Uma injustiça do tamanho do mundo que seria denunciada se houvesse um sindicato dos pais Natais.
Imagino que estejas cansado da habitual música alusiva à época. Chegam-me relatos de pessoas que odeiam o Natal por causa da insistência com que essas músicas colonizam o éter sempre que dezembro entra em ação. Se não for o caso, se fores daqueles que trauteiam essas musiquetas quase sem dar conta, contribuindo para a sua perenização e para a angústia dos que são diferentes de ti, toma esta carta como uma oferenda a considerar.
Não quero que me vejas como um moralista de terceira categoria que aproveita o Natal para adulterar os usos, enviando uma carta a um destinatário desconhecido. Também acompanho as tribulações do mundo e tenho opiniões próprias. Não fujo dessa responsabilidade. E como pairo acima do comum dos mortais – é o privilégio de quem conduz as parelhas de renas na distribuição de prendas de Natal – não enjeito deixar-te algumas recomendações para que não sejas vítima destes tempos tumultuosos.
É que tumultuosos são estes tempos desde há muito tempo. Não vou teorizar sobre a crise que passa de crise em crise e se embebe nos hábitos e nos comportamentos das pessoas. As pessoas são exageradas durante a maior parte do tempo. Não são diligentes como a prática da esperança, que é intrínseca ao Natal. Se abrem uma exceção à desconfiança metódica e ao oportunismo cabal que lhes corre nas veias, é porque acreditam (ou querem acreditar) que é seu dever fingir que as coisas são diferentes quando dezembra pelo calendário fora.
Por isso, recomendo que continues a ser filho-da-puta como habitualmente és. Assim como assim, já desconfias que os outros são filhos-da-puta como tu, uns piores e outros em vias de te apanharem antes da meta. Quem eu represento não anda a dormir. Não penses que o fingimento com que cobres o comportamento natalício o apanha desprevenido. Ele sabe ler intenções e palavras nas entrelinhas. Se não acreditares que ele existe – ou se contestares o viés de género, reclamando que devemos divinizar uma ela –, considera a minha advertência na mesma. O julgamento final está sempre mais próximo do que julgas. Podes começar a tremer de medo. Mas sossega, essa não é a prenda que te quero anunciar.
Não aproveites a época para te cobrires de uma generosidade artificial. O fingimento não abona em teu favor. Não esperes uma retribuição equivalente à farsa em que te constituis só porque se aproxima o Natal. No jantar da empresa, continua a manifestar o azedume com aqueles a quem destinaste azedume. Abusa da bebida e enche-te de coragem para contar um par de verdades às chefias. Quando chegares a casa, dedica um carinho que vai rareando à pessoa que dizes amar. Ao pequeno-almoço, dedica dois minutos de atenção à descendência (e se eles continuarem a ignorar-te, quero que saibas que a culpa é só tua). Ou então, prolonga a tua filha-da-putice à casa da família. São tão pessoas como os outros, lá fora.
Nunca consegui entender esta humanidade. Ela seria despojada de hipocrisia se não aproveitasse o Natal para fingir ser aquilo que não é. Eu sou o primeiro a odiar um Natal quando o Natal é feito desta maneira. Se calhar, já me devia ter reformado. Ou feito greve, em Natais sucessivos, até as pessoas se terem convencido de que têm de ser diferentes. Ou até elas se terem convencido da inutilidade do Natal.
Não o posso confessar em público, ou eu, o pai Natal, estarei condenado à irrelevância. Peço-te segredo. Não contes a ninguém que recebeste esta carta do pai Natal. Prometo ser mais generoso contigo se fores o túmulo que guarda o segredo desta carta.
O tiranete pequenino, acocorado sobre os cotovelos, lê um manuscrito onde verteu a derradeira peça da doutrina obrigatória que os cidadãos pela metade têm de respeitar. O tiranete, acocorado sobre o seu pensamento escaninho, devora o ressentimento por grande parte dos outros lugares não se rever no seu pensamento. A pose sobranceira, os gestos que dão cor às palavras ameaçadoras, o olhar vítreo, de alguém que não se consegue comover com o que quer que seja, enfeitam a personagem daninha que sequestra as liberdades por todo lado.
Os tiranetes, por maior que seja a ambição de se tornarem imperadores, nunca deixam de ser homens pequeninos. Homenzinhos, se os preceitos do rigor forem convocados. Talvez por não saberem conviver com o espelho, que aos seus olhos devolve um nanismo confrangedor, colam-se ao poder da força, à força dos arsenais, e sitiam o resto do mundo com o medo dessa força beligerante. Por saberem que conseguem ter refém o resto do mundo, opera-se um milagre com a intermediação do espelho feito à medida: a imagem devolvida pelo espelho é de um homem grande, corpulento, um homem que tem a batuta do mundo entre os dedos e marca o ritmo da dança dos outros. Um homenzarrão que faz tiritar de medo todos os que não pensam em coro com ele.
Ao deitar, esses homens pequeninos tomam o ansiolítico do poder do mundo que se deita nas suas mãos. É uma droga viciante. Se não se deitassem convencidos do seu poder incomensurável, as insónias devolveriam o estigma da baixa estatura que neles funciona como uma metáfora devastadora. O simplismo do raciocínio pega-se ao comportamento. Tudo se reduz a categorias binárias. Os que não estão do seu lado figuram nas trincheiras do inimigo.
Faz parte do seu nanismo interno condenar aqueles que deles discordam à privação das liberdades, na pior das hipóteses à morte mal encenada em suicídios que não passam de uma farsa. A imagem do tiranete do momento, curvado sobre os cotovelos, fingindo que, na sua condição septuagenária, dispensa óculos para ler o papelinho à sua frente, monocordicamente debitando as suas verdades irrefutáveis, é a imagem de um homenzinho poderoso que se extingue na extremidade do poder de quem mantém sequestrados os que coabitam nos antípodas. É a imagem da maldade na sua descrição perfeita.
Se houvesse outro mundo após a morte, estes homenzinhos seriam condenados ao anonimato, vegetando na indiferença de quem é metaforicamente pequenino e vive sufocado pela inviabilidade de ser alguém na vida. O homenzinho acocorado sobre os cotovelos, fazendo uma corcunda significativa, com o olhar gélido deitado sobre a folha de papel onde está debitada a derradeira peça de propaganda hostil, é a imagem de um grande urso todavia decadente, esperançosamente sem descendência, já que os delfins que se encontram na linha de sucessão são ainda menores do que ele, e por isso encena, com a espetacularidade dos que precisam de um fingimento inteiro, a pose do tiranete soez que só teria descanso se o mundo inteiro se convertesse ao que apregoa.
Vulgo: causar boa impressão. Será para obnubilar outras fragilidades, assim escondidas à mercê dos efeitos espetaculares causados pela boa impressão junto de anónimos? Ajuíze-se a intenção: o reconhecimento externo é imprescindível para a autolegitimação. Para que o sono seja sereno e, no dia seguinte, se acorde com a sensação do dever cumprido. Os outros, tão vilipendiados em circunstâncias diferentes, são a medida da legitimação.
Pode-se causar uma boa impressão logo na primeira tentativa. É mais difícil. Exige um apuramento da medida sujeita à impressão nos outros, que ficam estonteados com tamanha qualidade ou com a erudição exibida como prova acessória da qualidade do que se escreve ou do que se fala. Se a primeira impressão não for retumbante, mantém-se o esforço para uma segunda impressão. A qualidade do objeto que os sujeitos são desafiados a avaliar pode até ser a mesma; o que mudou foi o olhar dos que foram convocados para a avaliação, porventura agora mais atento. À primeira impressão, não se causou grande impressão. Mas a segunda satisfez o objetivo.
A impressão pode ser causada por meios acessórios, laterais ao propósito da incumbência. Pode-se, por exemplo, exagerar nas provas de erudição só para impressionar a audiência, que fica boquiaberta com a bagagem cultural de quem se socorre a citações que imortalizaram autores. Convém que a prova de tanta erudição não seja descabida. É obrigatória a ligação entre o contexto e a citação que demonstra erudição. As citações são obtidas com facilidade, agora que tudo está à distância de um computador e do acesso à rede gigantesca que circula a uma velocidade estonteante.
A mensagem podia passar sem o adereço da erudição. Este é o critério de apuramento da utilidade da erudição: sem a citação que prova o estatuto de erudito, a mensagem era diferente? Muitas vezes, impressionar através das credenciais de erudição é um gesto gratuito. A erudição pela erudição, sem utilidade para a mensagem exposta, é um ato ostensivo. É impressionar por impressionar, num gesto vaidoso de quem esfrega credenciais nos rostos dos outros. Passar por erudito não garante que quem o faça seja erudito. A posse de tamanha erudição pode ser um meio de conferir autoridade intelectual a um argumento. Se, em socorro da tese, vier uma citação carregada de autoridade intelectual, é a autoridade intelectual da tese que ganha um reforço. De resto, a ostentação da erudição corre por conta do propósito de impressionar os outros. Se ficarem impressionados, aceitam mais depressa o argumento sem o contestar.
Os que recorrem à erudição para impressionar os demais praticam ativamente o totalitarismo do pensamento. Agarram-se à erudição como expediente que garante autoridade intelectual. É um golpe baixo. Ninguém precisa ser confrontado com a ufana exibição de credenciais eruditas. Fá-lo-á quem estiver inseguro do que escreve ou do que diz.
Começava pelas palavras não ditas. Por que não foram ditas? Seriam palavras malsãs, palavras agressoras, palavras beligerantes, no que a beligerância pode conter de não-violência? Palavras congeladas, outras quase a caminho do esquecimento? Fecundaram silêncios, curtos ou prolongados, permanentes ou entrecortados por outras palavras independentes desses silêncios?
Há silêncios que podem ser gongóricos. A sua complexidade omite-se atrás das cortinas em que o avesso dos silêncios soa como matéria-prima de palavras indesejadas. As palavras condenadas ao silêncio são indesejadas para quem as ouve e para quem as projeta. Às vezes, um silêncio é um ato de bravura. Uma audácia só ao alcance dos que sabem medir as palavras e, pela sua medição, intuem que o silêncio é a palavra de ouro.
Outras vezes, o silêncio é um recurso impiedoso que fere mais do que mil palavras juntas. Um silêncio pode ser violento. O som do nada a ocupar o espaço, dilatando a medida do tempo como se ele durasse mais do que o tempo que sobe à boca de cena. São os silêncios que entram fundo na carne, dilacerando-a como as palavras mais dolorosas não conseguiriam. São silêncios gongóricos. Equivalem aos pesadelos que entram no sono com tanta nitidez que nem o acordar os rompe de imediato. Ardem sem chama, sem deixarem de provocar abrasões.
O ponteiro da bússola hesita entre o silêncio atravessado e as palavras arriscadas. Há palavras que podem não ser anjos, como há silêncios que não se entretecem na aura dos inocentes. Um silêncio pode ser tão culpado como mil palavras acusatórias. O corpo hesita entre o silêncio gongórico e as palavras daninhas. Corre atrás do tempo, consumindo-se entre o abismo e a terraplanagem de todas as arestas vivas. Uma luta interna entre ser demónio dissimulado e demónio avivado.
Ou então, a hábil mobilização da vontade para travar que tudo seja tão excessivamente binário convoque o mediador que viva escondido atrás de todos os disfarces. Traduzindo silêncio em palavras à medida, na sua exata medição para não serem objetos agressores. A História está trespassada de exemplos que provam como o sangue quente trava o curso da sensatez. A moderação fica à mercê de um combate de opostos, entre a aridez do silêncio doloroso e a ossatura das palavras daninhas.
Encomenda uma manhã clara, mesmo que sejam as nuvens a atapetar o céu, assim bisonho. Com a claridade que se aloja dentro de ti, irradia essa luz que se sobrepõe ao crepúsculo disfarçado que cobre o dia de invernia. Não te intimides: o céu não se abate sobre nós, só na aparência é que está quase a roçar as nossas cabeças.
Resgata ao sol a luz timorata que ficou presa nas teias em que se tecem nas nuvens plúmbeas. Ganha o nome desse sol, teu por irrecusável devir, para seres o filantropo que arregaça os espaços entre as nuvens por onde há de entrar a luz manancial. Os fingimentos que sobem à cena são isso mesmo, fingimentos que se descobrem no mais epidérmico tatear. Serás tu a tutelar o desembaraço das almas, saídas do recobro, ainda fragilizadas pela letargia.
A manhã clara – para que não se contestem as linhas estrénuas que açambarcam a angústia e a devolvem ao paradeiro sempre incerto. O idioma tartamudeia nas entrelinhas, naufraga nas águas impetuosas que se alimentam na vontade não sujeita a sufrágio. Os soberanos são humildemente silenciados, deixando que os úberes abundantes jorrem o alimento que os audazes precisam para desarrumar o azedume das manhãs que começam devagar. Não são os sacrifícios que contam; são os passos desacertados, errantes que sejam, que desenham a impressão digital entre hoje e o futuro que, à distância deste passado, não pode deixar de ser perfeito.
Desmatados os medos, derrotados os ignóbeis que nunca desistem de terçar as armas puídas, sobra uma tarde desembaraçada, um novembro fortuito que ganha lugar no mapa de abril, ou um festim alucinante em que todos se desempoeiram de preconceitos e dançam as danças virtuosas que dispensam coreografias-alfaiate.
O tempo precisa de ser despejado, como se fosse o inquilino intruso que desbasta a lucidez povoada. Os olhos fecham-se sobre si mesmos. Sobre eles passam as imagens de sonhos tingidos que nunca hão de ser pesadelos. As armas enjeitadas exorcizam-se, tutelares dos medos silenciados no verbo alto da manhã clara. Amanhã acertas as contas com o tempo derruído. Até lá, toma o sonho de cernelha e bebe toda a água aromatizada pelo tempo na sua madrugada festiva.
“I’ve seen the nights filled with bloodsport and pain.”
Amigos da onça são os que pesam mais no bornal da angústia. Não deviam. A ingratidão arrosta os juros do oblívio. Massacres de carácter por quem era depositário de confiança não dão direito a menos do que a indiferença.
Conceda-se, porém, que fique a adejar uma dor funda pelo equívoco da escolha e pela confiança imerecida. Não será o sabor da traição do amigo da onça a dourar o reflexo condicionado que o condena ao esquecimento. Parece que é todo um passado que não tem direito a ser esquecido. Um passado que não se extingue pela condenação a amigo da onça.
(Não sei, não cheguei a perguntar às ajudas disponíveis por que está convencionado chamar estes amigos pretéritos “amigos da onça”. Se a onça é o felino que se encontra em habitats sul-americanos, por que mistério quem for amigo da onça é considerado um amigo renegado despromovido à condição inferior de não-amigo (ou ex-amigo)? Não sei se os filólogos, ou o povo que contribuiu para o uso social que levou à vulgarização da expressão, queriam diminuir a importância de amigos destes através do pouco peso – uma onça é o equivalente a umas vinte e oito gramas arredondadas – que traduz a irrelevância a que foram votados.)
O amigo da onça, pelo sentido assumido pelo idioma corrente, é aquele que deixou de ser por ter perdido a confiança. A indeterminação dos tempos correntes, que não titubeia perante os esforços dos sistemáticos que querem saber das convenções semânticas exatas, é outra complicação. Um amigo da onça que deixou de ser amigo pode ser reabilitado. Por perdão, que o sentimento cristão às vezes espreita pela escotilha; ou por se concluir que a condenação à condição de amigo da onça foi determinada por um erro de julgamento, baseado em mal-entendidos.
Um amigo da onça que voltou a ser amigo é um ex-amigo da onça que dantes fora amigo-só e que, tendo sido perdoado ou reabilitado, volta a gravitar na órbita do amigo que o tinha condenado àquela condição. Quando o ex-amigo da onça é reabilitado, a amizade jamais será igual. Ficam feridas abertas, lugares para suspeitas, a impaciência que não transige com o menor deslize, a incapacidade para ao amigo tolerar o que nos outros não é tolerado. Do ex-amigo da onça é difícil esquecer que já foi amigo da onça. A longanimidade tem limites. A deferência pelo estigma da deslealdade, também. Os limites variam de pessoa para pessoa, com a vontade de cada um reabilitar (se esse for o caso) um amigo da onça para a condição de amigo-de-novo.
Isto não é sobre a luta de classes, nem sobre os malefícios do capitalismo que embusteiam as pessoas e, ato contínuo, as empenham numa embriaguez consumista.
Ainda faltam dezanove dias. Mas já é como se o Natal fosse amanhã. As iluminações de rua selam o convite indispensável para as pessoas se lembrarem de que o Natal é consumismo. Há dias, um jornal noticiava o “desespero” (as aspas não são por acaso) dos comerciantes de uma certa localidade porque as autoridades municipais demoravam a ligar as iluminações natalícias. Os comerciantes lá saberão, eles é que estão por dentro do ramo. Mas este “desespero” dos comerciantes soa a um exagero psicológico, ou então faz parte da sua própria campanha de sedução dos clientes, como se eles se esquecessem de que, dentro de dias, chega o Natal e as pessoas trocam as indispensáveis lembranças entre si. Oxalá houvesse cientistas prontos a demonstrar, com o auxílio de métodos contrafactuais, que o consumo natalício não encolhe na ausência das iluminações típicas da época.
As crianças andam excitadas, nota-se. Felizes delas, que ainda vivem a ilusão do Natal segundo os cânones bem industriados das empresas que sobem as vendas à boleia do Natal. Felizes delas, ou não: os que evocam a pureza do Natal, na sua simbologia religiosa, lamentam que até as crianças sejam sacrificadas na pira onde a vertigem consumista é ateada desde tenra idade. As crianças estão de olho nos artefactos prometidos pelos pais, avós, tios, padrinhos e demais familiares. Deve ser tão grande a deceção do dia vinte e cinco, depois de desembrulhadas todas as prendas, e a utilidade das prendas vai-se esgotando à mesma velocidade estonteante com que, já na idade adulta, essas crianças então grandes hão de viver as vidas. A vertigem do Natal é o bilhete ilustrado do que serão as suas vidas adultas.
Às vezes, penso sobre a organização do Natal, sobre os usos e costumes estabelecidos, a sua simbologia. Não são só os mais novos que vivem anestesiados pela profusão de luzes coloridas que avalizam o feitiço da época especial. Não são os mais novos os únicos a cair no logro do Natal. Os mais velhos também fingem. Amortecem divergências porque está consagrado que o Natal é a festa da família. Têm de conviver em família mesmo quando é uma imensa fonte de desprazer. Fingem, portanto. Em harmonia com o significado mais profundo do Natal, em que tudo é fingimento, em que, por uns dias, tudo à volta se enfeita de disfarces que talvez ajudem a suspender os tempos normais, já de si tumultuosos demais para serem suportados nos outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano. O resultado é um paradoxo ao maximizar as dores de viver de acordo com as pautas estabelecidas.
Os que se propuserem a dissidir são encaixados na categoria de pária. São reprovados pelos que preferem a desarte do fingimento. Ai de quem fuja dos costumes instituídos, dos indeclináveis deveres da celebração em família, que sobre eles se abate todo o opróbrio do mundo. Serão os que estão no topo da misantropia por adesão sazonal.
Enquanto escrevo, sentado a beber um café, passa sem cessar um medley de músicas típicas de Natal. Ainda tenho vontade de ser mais dissidente do Natal do que antes. Este texto teria existido na mesma se o medley de músicas de Natal não tivesse invadido o café.
Temos vergonha da nossa própria vergonha? A vergonha em si já é matéria suficiente para desatar a vergonha. O contrário também é certo: não nos assiste a vergonha se à vergonha não nos dermos como pasto fértil. O que não é acertado é carregarmos a vergonha com a vergonha que é ter vergonha da vergonha – como se a vergonha fosse elevada a uma potência que a amplia num excesso de vergonha que a torna insuportável.
Podemos ter vergonha de incidentes que não foram causados pela nossa ação, mas dos quais acabamos por ser vítimas por nos exporem ao ridículo. Uma vez, estava no coração da cidade, numa das ruas mais movimentadas, ao ir apressadamente para o trabalho, apessoado no fato e gravata, levei com a matéria fecal de uma pomba transeunte em cima do meu ombro e da cabeça, sob os auspícios da multidão que se cruzava comigo. Nem tive tempo de ficar aflito, pois um diligente funcionário de um talho, que fumava à porta do estabelecimento, levou-me logo para dentro do local, onde ele e dois colegas trataram de desembaraçar o casaco das excreções deixadas pela ave. Não cheguei a ter tempo de corar de vergonha.
A vergonha que sentimos quando a causa da vergonha é independente da nossa ação é uma vergonha infundada. Não é daquelas vergonhas que acontecem porque somos naturalmente desastrados e as nossas ações concorrem amiúde para pequenos cataclismos na esfera pessoal, expondo-nos ao ridículo em público. Essas são as vergonhas que causam legítimo embaraço. Como aconteceu num café, ao tentar ser tão simpático que me substituí na função de empregada de mesa e, ao levar o café para a mesa, o pé direito tropeçou no pé esquerdo, fazendo com que o café se derramasse no chão juntamente comigo.
As vergonhas podem explicar-se pela aptidão para sermos o elefante na loja de porcelanas, mesmo que, por prevenção, não frequentemos lojas repletas de porcelanas finas. Acabamos por descobrir uma loja de porcelanas fora das lojas de porcelanas, um sintoma indicativo de que, às vezes, o espaço em que nos movemos, por maior que seja, é sempre exíguo para albergar a propensão para o disparate (e o tamanho descomunal do disparate). Temos de passar pela vergonha dessas vergonhas? Não: a vergonha em si é matéria bastante para o embaraço interior.
Já as vergonhas que nos são atribuídas pelas vozes dos outros são de tratamento mais leve. Na maior parte dos casos, são diagnósticos exagerados. Imputam-nos uma vergonha por divergência insuperável ou por uma inveja que não deixam de alimentar. Se não reconhecemos o vencimento da causa, não acusamos a imputação da vergonha. Devolvemo-la à procedência. Essas são as vergonhas que não deveriam ter sido atiradas pelo seu proponente. Melhor é que sejam chocadas na origem.
O tempo que queriam privatizar era o tempo cronológico. As coisas mudavam de feição, assim sendo. A efemeridade do tempo pesa sobre as costas, da mesma forma que cada segundo descontado à finitude do tempo exacerba a angústia quando se confirma que a perenidade é uma ilusão. O tempo é escasso – e não há pior lugar-comum para tirar a fotografia da apoplexia que se abate sobre quem vive cercado pela sensação de que o tempo rareia para tantas empreitadas que na vida ficarão por saldar.
O tempo foi, desde sempre, um mal nacionalizado – e aqui “mal” aparece como antónimo de “bem”, figurando o “bem” no sentido que os economistas costumam empregar. Como mal nacionalizado, o tempo não só é a circunstância que toma conta de nós, como também é a contingência que nos acondiciona a uma passividade irremediável. O tempo corre por sua conta, indiferente a todos que dele dependemos. Um tempo assim congeminado é das piores tiranias que se impõem às pessoas.
Que avance, pois, o abaixo-assinado pela privatização do tempo. Uma utopia acabada, com os contornos de um sonho que entra na geografia da fantasia. A cada momento, ser-nos-ia destinado cuidar do tempo. Algumas vezes, poderíamos acelerá-lo. Outras vezes, abrandaríamos a sua impertinente cavalgada, quando a efemeridade do tempo, que se consome num instante, esgotasse os prazeres a que podemos meter as mãos. Como se a cada um estivesse destinado um relógio pessoal (e não estará?) e esse relógio não fosse comandado pelo tempo tirano, o tempo que manda em si mesmo e no relógio que o mede, mas por cada pessoa que passaria a tutelá-lo.
O tempo privatizado seria a maior oferta de liberdade individual. Dir-se-ia, a consumação quase plena da liberdade. Andaríamos todos sob os auspícios de relógios diferentes. Provavelmente, haveria meses mais demorados para uns, anos encurtados para outros, e até muitos a quem a privatização do tempo seria indiferente e, portanto, continuariam afinados pelas convenções oficiais do tempo. Privatizar o tempo seria acabar com uma das piores tiranias que compõem a História da humanidade.
Contem comigo para a petição a reivindicar a privatização do tempo. Contem comigo para comícios apaixonados que mobilizem os apaniguados da privatização do tempo. Contem comigo para tudo o que ditar a emancipação de algemas, reais ou imaginadas, que limitam a autonomia do ser. Contem comigo para estilhaçar a mordaça do tempo, pois há sempre tanta vida que fica por viver e a culpa é sempre da efemeridade do tempo. E o tempo só é efémero porque foi nacionalizado desde o úbere da humanidade.
Contem comigo para contar o tempo pela minha medida.
Corrias por tua conta. Colhias no orvalho invernal a fonte que ajudava a matar a sede do tempo incógnito. Corrias por tua conta e não querias que mais ninguém corresse por ti. Amanhecias no sopro de dezembro, sentias aquele frio que se embebe nos ossos e, todavia, consagra o inverno precoce. Não figuras entre o numeroso exército que é capaz de organizar preces para apressar o inverno.
Um dia soubeste que queriam privatizar o tempo. Nem quiseste saber de outros pormenores. Mesmo a tua objeção metódica à posse pública das coisas (eras conhecido por defender em público a privatização de muitas coisas detidas pelo Estado) não foi suficiente para dares a mão aos promotores de uma ideia tão desconchavada. Temias que a voz dominante, aquela que se insurge contra o outono e o inverno e colonizou o idioma e os usos por fazerem corresponder o tempo dominante ao “mau tempo”, fosse capaz de reduzir o tempo outonal e a invernia a estações minimalistas. Temias que os que queriam privatizar o tempo tivessem encomendado de latitudes tropicais o tempo quente e húmido que dispensa a existência de estações. Só de pensares na hipótese já estavas a suar, mesmo que lá fora estivesse um frio pré-invernal.
Planeaste um movimento de sentido contrário. Tu, que odeias os conservadores de pacotilha que têm medo de qualquer mudança, serias ponta de lança de um movimento contra a privatização do tempo. Farias campanha a favor da perenidade das estações tal como as conhecemos. Irias mais longe: como parte integrante da contracampanha, farias circular um abaixo-assinado para rever o significado de “mau tempo”. Para se extinguir a correspondência entre a chuva e o vento e as tempestades e “mau tempo”. Os meteorologistas seriam os primeiros a serem instruídos. Estariam proibidos de pronunciar a expressão “mau tempo”.
Já mobilizavas a ausente militância de coisas públicas quando te chegou ao conhecimento que a intenção de privatizar o tempo não tinha a ver com o tempo meteorológico. Queriam privatizar o tempo, mas era o tempo cronológico. Desmontaste toda a pré-campanha que te varria o pensamento de ideias fulgurantes e começaste a pensar como haverias de reagir à ideia de que o tempo, o tempo contado pelos relógios, poderia ser sujeito a privatização.
Titus Andronicus chega triunfante a Roma. Triunfante e cansado. Já foram muitas as guerras que o general travou e viu cair em combate vinte e um dos vinte e quatro filhos, que não tem força para ser imperador. Nomeia Saturnino, que não esconde a acrimónia perante Titus antes de ser acalmado como imperador. Como seu primeiro ato, Saturnino desposa Tamora, rainha dos godos, que Titus tinha acabado de desfeitear e trazia perante os romanos como relíquia arrebatada na guerra.
Mal foi nomeado, Saturnino quis vingar-se de Titus. A rainha, que acabara de ser deposta pela guerra e reempossada pela arte do calculismo humano, teceu um enredo que iria de vingança em vingança até que as mortes de todos os vingados se acumulassem numa pira de desonra. Ela própria, um filho seu, um filho de Titus, Saturnino e até Titus perecem no apocalíptico ato final em que todas as vinganças se consumam no imenso vazio que se cola à posteridade.
A peça “Titus”, adaptação de Cátia Pinheiro, Hugo van der Ding e José Nunes de “Titus Andronicus”, de Shakespeare (em cena no Teatro Carlos Alberto), aproveita um clássico intemporal do teatro. Como intemporal que é, os encenadores quiseram mostrar que a trama explica as guerras que têm sancionado a humanidade ao longo dos séculos. O orgulho que irradia com fulgor, o prazer pérfido de impor a vingança ao inimigo, fazendo-o vergar diante de uma humilhante derrota, serve de combustível para vinganças futuras ainda mais dolorosas e humilhantes – eis o retrato que um pessimista antropológico subscreveria sem hesitar. Num esforço de adaptação ainda mais contemporânea, a peça mostra o grande vencedor da trama de intermináveis conspirações que fervilharam no desejo de vingança irreparável: o negro e mouro, escravizado no passado, que se libertou das amarras dos poderosos e conspirou nos interstícios para aproveitar a sucessão de vinganças que tiveram o seu epílogo no colapso apocalíptico dos protagonistas que ainda estavam vivos.
“Titus”, na sua aplicação moderna, também legou ensinamentos sobre o discurso de ódio. Este é um discurso motivado pelo ressentimento. Os que são acometidos pelo ressentimento medram no úbere da vingança. Querem vingar-se do passado que não foi generoso. Querem repor um passado que se julgava sepultado. Querem vingar-se daqueles que, durante muito tempo, foram as forças vivas da sociedade que instruíram a delimitação face aos proscritos. Querem vingar-se contra as bandeiras hasteadas na evisceração do conservadorismo de se constituíram procuradores. Arregimentam lealdades com base num discurso de ódio que ateia a intolerância e não quer saber dos meios desde que os fins sejam atingidos. Perante um discurso de ódio que fermenta a acrimónia e levanta pontes para a arrogância ilimitada, que reação devem ter os que não se revêem nesse discurso?
A melhor reação é condenar o discurso de ódio à surdez. Os seus fautores devem ficar a falar sozinhos, ignorando as ramificações do que é dito em público, tecendo uma censura construtiva que consiste em não dar ouvidos a manifestações que exsudem discurso de ódio. Ao contrário dos empenhados militantes que reavivam o fantasma do fascismo que se levanta da sepultura, que decretam a imperatividade de combater, com armas idênticas, os radicais que adestram o discurso de ódio.
O discurso de ódio não deve ser proibido pela democracia, para que a própria democracia não caia em estado de autonegação. Não devem ser os democratas a delimitar o discurso de ódio, impondo-lhe as fronteiras de quem, com a necessária arbitrariedade, se empossa na condição de juiz político. O discurso de ódio deve ocupar o seu lugar no palco da democracia. Prefiro agarrar-me ao otimismo antropológico para acreditar que a lucidez emergirá para restringir o discurso de ódio à tumefação que ele é. O discurso de ódio é o melhor escudo da democracia.
Podem argumentar que deixar passar em branco o discurso de ódio tem efeitos contraproducentes. Dirão que, se não forem levantadas barreiras ao discurso de ódio, ele seguirá seu caminho, desimpedido de minas que devem ser colocadas para travar a cavalgada dos radicais. Não avaliem como capitulação a medida cautelar que preconizo. Não o proponho como quem estende uma passadeira triunfal aos que deixamos a falar sozinhos. Aos soezes deixa-se o silêncio como resposta à sua desbragada retórica. Os que quiserem habitar o mesmo lugar pútrido, respondendo à letra, trocando discurso de ódio pelo criterioso amputar de Liberdade ao quererem ser juízes arbitrários das liberdades, serão tão responsáveis pela propagação do discurso de ódio quanto os autores desse discurso.
Em “Titus Andronicus”, Shakespeare ensinou que estamos destinados à vingança. Por assim ser, a lucidez obriga a não jogarmos a mesma carta dos radicais, a carta do discurso de ódio. Têm de ficar a falar sozinhos. Para exibirem o espetáculo grotesco que é o discurso de ódio. Esperando que a esperança do otimismo antropológico se cumpra, os otimistas de fora lamentando o grotesco espetáculo, percebendo por que não falam essa gramática.
Quando Titus decidiu endossar o papel de imperador a Saturnino, o menos apto para o suceder à frente do império, saberia, no seu íntimo, que Saturnino o desafiaria sordidamente por vingança contra o general que nunca o reconheceu como o candidato predileto ao trono. Titus terá previsto a sede de vingança que haveria de sufragar depois de Saturnino confirmar a certeza que Titus teve antes do tempo. Há vinganças que se arquitetam antes do tempo. Mas as vinganças devem ser banidas, independentemente do tempo em que se tecem.
Se respondermos à letra ao discurso de ódio, acabaremos submersos pelos demónios que o instruem. Ficaremos à mercê da sua vingança e da vingança de que seremos procuradores para responder à vingança precedente. Quando dermos conta, também somos instrutores do discurso de ódio. A democracia estará, então, a um passo do suicídio.
Almoço. Na mesa ao lado, dois casais de reformados. Falam de viagens. São pessoas viajadas, se a mentira não estiver a falar por eles. (Quem te manda ser desconfiado?) Episódios de aterragens difíceis voam de boca em boca. A cada episódio assustador, sucede outro ainda mais assustador. Parece um concurso de horrores passados com aterragens à força, umas, e aterragens borregadas (no jargão do meio), outras. Os homens narram-nos com o ar de quem precisa de provar a valentia – a miúda do lado desatou em prantos quando o avião, mal tocou na pista, levantou voo com toda a força, investindo contra a turbulência, “mas eu não tive medo nenhum”. As mulheres são mais contidas, fazem fé nos episódios narrados pelos consortes.
Uma das senhoras sobressalta-se: não sabe da carteira. Sonda as imediações: “tenho a certeza de que entrei no restaurante com a carteira; não pode estar longe.” A carteira repousa na cadeira à minha frente, escondida pela toalha de mesa. Pega na carteira com alívio e dirige o olhar na minha direção. Não fosse desconfiar que eu já tinha notado a presença da carteira e quisesse dar-lhe um destino ilegítimo (na perspetiva de quem deita a mão na propriedade alheia), desanuviei o ambiente:
- Vamos trocar de carteiras, para ver quem tem mais dinheiro?
- Vamos. De certeza que é o senhor, com esse ar que tem...
Não trazia ar de maltrapilho. Devia ser o ar de alguém, pelo menos, mais endinheirado do que a senhora – ou a senhora está habituada a que o marido seja o homem das finanças. Retorqui, depois de entreabrir a carteira e espreitar o pecúlio guardado (era uma nota de dez euros):
- Aposto que eu ficava a ganhar se trocássemos as carteiras.
- E os cartões, os cartões não contam?
- Não. Só contam as notas. De certeza que não quer trocar as notas que temos nas carteiras? – desafiei a senhora, como se fosse um profissional do jogo e o bluff não amedrontasse. Não sabia quantas notas a carteira da senhora agasalhava e se, caso avançássemos na troca de pertences, ficaria a ganhar ou a perder. O marido, sentado à sua frente, contestou:
- Ah, não vale! O dinheiro de plástico é mais importante do que o dinheiro contado.
A conversa foi interrompida pelo serviço que chegou à mesa dos quatro reformados. Mais tarde, já tinham sanado a fome, a senhora levantou-se para ir à casa de banho. Cruzámos olhares. E ela sentenciou, atrevidamente, falando na minha direção:
- É o senhor que paga a nossa conta.
Não reprimi uma gargalhada (coisa rara). Nada disse. O silêncio costuma corresponder a consentimento – pus-me a pensar. Como estamos a entrar no mês do Natal, e às vezes dá-me para ser exageradamente generoso em épocas que sejam à altura da generosidade, terminei a refeição antes de a senhora regressar da casa de banho e dirigi-me à caixa. Pedi a conta. Da minha mesa e da mesa ao lado, para espanto do empregado. E saí de mansinho, com um discreto “boa tarde” dirigido aos três reformados que ainda esperavam pelo café.
Depois percebi: esta generosidade foi um ato de ostentação. Tão gratuito quanto o ato normal de restringir o pagamento à mesa própria.