10.12.20

A cúspide de Neptuno

Foo Fighters, “My Hero”, in https://www.youtube.com/watch?v=EqWRaAF6_WY

A alma aplacada levanta-se do mar. Concebe os montes ao longe, antes que sejam tomados por vulcões indómitos. Traz na mão uma chave. A chave, não gasta com a corrosão do mar, carrega as feições de uma quimera, como se apenas fosse preciso encontrar a fechadura certa. Não capitula. A fechadura há de ser descoberta a meio do caminho. Não será preciso esperar tanto.

Os demais temem-no irascível. Episódica, a ira já causou catástrofes medonhas. Não querem que regresse ao mar, pois é de lá que, querendo, conspira contra os humanos e povoa-os com destruição. Houve um dia que confessou, cinicamente: 

Provocam-me porque sabem que é pouca a água em que fervo. Provocam-me porque se fatigam com a bonança e andam ansiosos pelo aneurisma que semeio nas vossas terras, só para depois terem o júbilo de trazer ao alto um algo que estava embebido nas ruínas que causei. É com deleite que vos pago o favor.

Imperador sem trono, era respeitado como tal, apesar de ninguém reconhecer a investidura. Carregava numa das mãos (frequentemente, a esquerda) uma simbólica cúspide ornamentada com flores campestres. Não quisessem ver a cúspide vertida sobre o chão, que um feixe de forças devastadoras logo desatava. Não era função formosa de se ver. O seu rosto iracundo selava o sobressalto de quem não aceitava importunações. Não é por um acaso que era deificado.

Dono das marés, nos dias de bom humor era o padroeiro das naus que atravessavam o mar. A barba cerdosa e grisalha, pacientemente desentrelaçada com os dedos, servia de caução à fortuna das embarcações. Os comandantes sabiam-no vigilante, homem sem sono que até na noite mais funda acolhia as naus nas águas lânguidas que pressagiavam bom porto. Não precisava de mnemónica para alisar as águas que visitavam a enseada. Penhor de desamores vários, processava a solidão na varanda de onde congeminava a maresia. 

No que diz respeito a amores, já fora tempo de os balizar. Arruinara-os, um atrás do outro, com uma metódica indigência que o tomava de assalto. Não recusou a volúpia, mas não quis de ela transbordar. 

Talvez a chave empunhada na mão contrária que carregava a cúspide, a discreta chave, afinal estivesse puída, sem se ver. 

1 comentário:

Anónimo disse...

Fascinante