25.8.22

Sabes o que vale um restaurante quando vês o(a) cozinheiro(a) (short stories #406)

Max Richter, “Sarajevo”, in https://www.youtube.com/watch?v=cHzvokE7M4I

          De cada vez que amesendava num restaurante, um amigo tinha por prática plantar o olhar vigilante na cozinha. Só ficava satisfeito quando decifrava o chefe da cozinha. De acordo com a sua teoria, um restaurante devia-se aferir pela figura que está à frente da cozinha. A aferição é feita pela figura do chefe de cozinha, não pela qualidade das iguarias que prepara para a ementa do restaurante. Um dia, manifestamente inquieto, já a refeição ia em estado avançado (pronto para a sobremesa), espreitou pela janela e o olhar esbarrou numa gorda personagem envergando os paramentos típicos do chefe de cozinha. Um lugar-comum, espalhado no imaginário popular, é a obesidade militante dos chefes de cozinha (muito embora os contemporâneos, aqueles que envergam estrelas Michelin à lapela, sejam figuras esguias que contrariam o cânone – mas isso é por causa da frugalidade das doses servidas nesses restaurantes). A obesidade militante de quem comanda a cozinha de um restaurante é natural: quanto maior a qualidade dos cozinhados, maior a tentação para ir experimentando as iguarias à medida que são confecionadas, o que alimenta os corpos fartos dos autores desta gastronomia. Para o imaginário popular (assim encenado pela teoria do meu amigo), se vamos a um restaurante e damos conta da magreza do(a) chefe de cozinha, a comida ali preparada não é merecedora de confiança. Através desta teoria processa-se a inversão de um dogma estilizado pelos tempos correntes: são os magros que não pertencem à moda, aos obesos cabe o império do bom gosto. Não é preciso habitar nas prebendas do politicamente correto para o determinar. Para o meu amigo, a gastronomia está avant la lettre nas fundações que combatem o politicamente incorreto. A memória das aparências pode ser o ultimato das ilusões, abastecendo-as a preceito.

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