21.3.23

Marrar nas ossadas não ressuscita o morto

Dead Combo, “Mr. Eastwood” (live in Madrid), in https://www.youtube.com/watch?v=w2Y0qjK8qlY

Marrão, o bode rebelde atravessava as estepes até encontrar arbustos apetitosos. Os pastores das redondezas sabiam que era inútil atrelar o bode. Ele conseguia sempre libertar-se. Ao menos, cumpria uma função do agrado dos pastores: era um reprodutor exímio, não falhando uma cabra com cio, apesar de se aproximar da terceira idade (segundo a métrica dos bovídeos). Mais a mais, as ninhadas fecundadas pelo bode rebelde davam espécimes de qualidade superior.

Ai de quem se chegasse ao bode marrão. Ele investia com a sua armadura e se os ousados não batessem em retirada com a celeridade própria de quem tem bons e rápidos instintos, ele era ferida incisiva ou contusão que levava umas semanas a sarar. 

Um dia, o bode marrão, tresmalhado como era seu apanágio, perdeu-se no cemitério de uma aldeia vizinha. Havia umas flores caducas espalhadas pelas sepulturas, já mais arbustos do que flores, tão secas estavam. O bode, que percorreu sabe-se lá quantas léguas até chegar a um lugar tão remoto, tinha de almoçar. Circulava vagarosamente entre os jazigos, codeando ali e acolá. A aldeia estava quase deserta, erma como era, e durante muito tempo o bode vagueou pelo cemitério sem ser importunado.

Entre duas dentadas em flores diferentes, o bode marrão quase caía numa sepultura a céu aberto. Era uma cova que ainda não tinha sido fechada, o coveiro ficara doente naquele dia e não pudera completar a empreitada da véspera. Ninguém ficou triste com as ossadas a céu aberto: o féretro já teria uns anos de terra sobre si e toda a carne e tendões e demais matéria não óssea já tinham sido devorados há muito pela bicheza que tem subterrâneo habitat. Ninguém, ou quase, podia reclamar contra o coveiro. Eram pouco mais de dez os habitantes da aldeola, todos anciãos, todos refugiados de um dia de Inverno a destempo. Só iam ao cemitério quando um deles emagrecia o contingente de habitantes. 

Também ninguém deu conta do bode que começou a marrar nas ossadas deitadas ao acaso sobre a cova a céu aberto. O bode não sabia o que fazia. Bêbado, acabado de chegar de uma aldeia vizinha onde uma tasca resistia à desertificação, um velho fez um desvio pelo cemitério. Não sabia por que motivo foi parar ao cemitério. Estava sentado no degrau de um jazigo a acabar a garrafa que trouxera por companhia na caminhada desde a aldeia vizinha. Sentiu um ruído atrás de si, alguém, não visível, escavava dentro de uma cova que estava por fechar. Aproximou-se, cambaleando. Viu o bode a marrar nas ossadas do seu conhecido (um qualquer, que as ossadas são muito democráticas). Inebriado, julgou, por um instante, que o bode era a personificação de deus descido à terra e que as suas marradas cuidariam de ressuscitar o homem ali depositado.

Aproximou-se um pouco mais, para apreciar o bode que seria a personificação de deus. Escorregou e caiu para a mesma cova onde conviviam o bode marrão e as ossadas do morto. Sentindo-se atacado, o bode atacou o bêbado indefeso. A cova foi o destino de dois cadáveres de diferentes safras. E ficou provado o que o velho bêbado já não foi a tempo de atestar: o bode, se personificava alguém, era o diabo. E as suas marradas não eram a prescrição para a ressuscitação, antes pelo contrário.

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