15.5.24

O Amadeu não era de queixumes

Lisabö, “Gure Hitzak”, in https://www.youtube.com/watch?v=MNH72NIoJx8

Podiam soar os trovões da dor. Podia o sofrimento escavar na pele até se tornar cal em cima da carne. Podiam gritar, inomináveis, as injustiças que assombravam o sono. Podiam açambarcar a fala contra o direito ao queixume. O Amadeu transigia, calado, sofrendo como sempre aceitara o sofrimento, em silêncio. 

Abria uma exceção contra o silêncio como idioma da resignação, quando era testemunha involuntário dos males injustificadamente debitados nos outros. E os outros podiam ser outros para o Amadeu, autênticos forasteiros no seu raio de ação, que logo arbitrava a pendência. Insurgia-se, irascível, metendo pose ameaçadora que dissuadia os feitores das crueldades em curso. Ficou por anotar em livro próprio o inventário das dores que poupou aos outros. O Amadeu era mais amigo dos outros, mesmo quando não eram do seu conhecimento, do que dele mesmo.

Depois entrava em abstenção quando os próceres da iniquidade se abatiam sobre ele. Não queria saber dos infortúnios; não se lamentava, nem no forte apelo da consciência, deixando que o infortúnio fizesse o seu trabalho sujo até ficar um farrapo, estilhaçado pela angústia. Se alguém chamava a titularidade de um vexame, Amadeu condescendia. Era porque aquela pessoa achava que o distrate era preciso; Amadeu, se fosse o caso, ganhava (e de longe) o campeonato da ingenuidade.

Quando Amadeu interpretava os desacontecimentos que o afligiam como um curso do acaso, sabia que o mundo é ilegível. Metia-se dentro de um parêntesis, à espera que a tradução do acaso esgotasse a validade. Fingia. Fingia que o acaso é cruel e patrocinava a indigência como refúgio dos contratempos que vomitavam uma lava doentia sobre os dias consecutivos. Amadeu ficava à margem do tempo, como se fosse um fantasma que escapa à boca faminta dos vultos que povoam o tempo.

O Amadeu podia aproveitar o mesmo livro onde anotaria as proezas edificadas contra a crueldade que se abatia sobre os outros para debruar a ouro as vezes em que fora vítima de crueldades sem recorrer ao queixume. Ao contrário dos jogadores de futebol, que se contorcem num exibicionismo pueril a fingir uma dor que não têm, Amadeu compensava com a abstenção do queixume.

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