30.10.25

XXI

Slowdive, “40 Days”, in https://www.youtube.com/watch?v=aZXmcM3r3nM

“Say what you mean, mean what you say”.

Sonhava que as pessoas só usavam palavras brandas. Ninguém elevava a voz, mesmo que houvesse condições para desatar as cordas vocais ao sabor da ira que se servia da febre do momento. Por consentimento recíproco, inventou-se um medidor de decibéis para domesticar as vozes que se ouviam nas ruas, nos escritórios, nas repartições públicas e nas casas. 

Foi um gesto importante para a civilização da civilização. A civilização estava a perder qualidades e já era difícil usar a palavra “civilização” para a imputar à civilização que estava em vias de deixar de o ser. Estava – por assim dizer – uma civilização murcha, num estado catatónico. As vozes desabridas, com uma dose elevada de agressividade no teor e na forma, eram uma das principais causas do esmorecimento da civilização. 

Apesar de alguns, com propensão para olhares radicais sobre as coisas do mundo, contestarem o estatuto de civilização (aliás, contestavam o conceito de civilização), essas eram vozes raras e que atravessavam a sua própria crise existencial. Fora dos lugares onde havia elites e intelectuais a dar amparo a esses olhares heterodoxos, o resto das pessoas sentia-se a viver num lugar que tinha conotação com a civilização. Embora o espírito crítico da maioria vivesse em hibernação, havia um punhado de gente mais esclarecida que admitia a decadência que contaminara a civilização. Ela estava em crise. Chegara o momento de convocar os espíritos críticos e sobressaltados: estava em causa a sobrevivência da civilização, ou do lugar como sinónimo da civilização, nem que fosse em doses moderadas.

Decidiram começar por banir a vozearia. Não era só o controlo dos decibéis que filtrava as vozes excessivamente audíveis; era também a forma e o conteúdo, para que não se perdessem as rédeas à moderação. Foi feito um alerta geral: ou as vozes se moderavam, ou a perda de moderação podia ser fatal para a sobrevivência da civilização. Os seus promotores, homens e mulheres corajosos que deram um passo em frente e foram os rostos empenhados nesta re-militância, dramatizaram a convocatória: as pessoas tinham entre mãos um dilema existencial. Caber-lhes acertar uma solução. Banir a vozearia seria uma proibição virtuosa.

A campanha de sensibilização ficou conhecida como “palavras brandas”. Em vez de punições, coimas, multas e averbamentos no registo cívico de cada um, a transfiguração era premiada: descontos em lojas aderentes, prémios de fidelização que davam direito a aquisições gratuitas e, no limite, descontos de impostos – não sendo organizada pelas autoridades, depressa o Estado se converteu às virtudes da campanha.

As pessoas iniciaram o desmame da agressividade latente. Só os espanhóis que estavam de visita é que continuavam a violar os decibéis permitidos – é-lhes inato. Aos poucos, a poluição sonora causada pelo vozear militante foi-se esbatendo. E os radicais foram ficando sem audiência. 

A atmosfera pública estava menos poluída. A civilização começava a desembaraçar-se do veneno que a consumia por dentro. As palavras brandas passaram a fazer parte do comportamento dominante. E as pessoas voltaram a aprender a saber estar umas com as outras.

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