24.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 1)

Nine Inch Nails, “Starsucker, Inc.”, in https://www.youtube.com/watch?v=omWQzYycyJk

Num ápice, o espantalho das “tarifas” regressou do túmulo para sobressaltar meio mundo. Inspirado pelo líder da Samolândia, encorajado por um público pouco informado que padece de vistas curtas e não consegue alcançar os efeitos sísmicos além da espuma dos dias, o arsenal de “tarifas” foi usado indiscriminadamente. Não havia país a salvo. O líder da Samolândia prometia recuperar empregos para a economia nacional assim que os consumidores desviassem o consumo para o “made in” caseiro. 

Pobres consumidores, que mais pobres iam ficar. O líder da Samolândia não compreendia que não é por simples prestidigitação que o desvio de consumo acontece. Sendo impossível substituir, com a urgência do curto prazo, importações por produção local, aos consumidores sobravam duas hipóteses: ou continuavam a comprar “made in” estrangeiro mas pagando mais caro (e com a inflação a morder nas canelas); ou abdicavam desse consumo, fazendo a vontade às visões românticas que imputam uma culpa gregária ao vício de tanto consumir. A confirmar-se a derradeira hipótese, descobrir-se-ia, para memória futura, uma inesperada aliança entre o líder entretanto pária, os gurus do anticapitalismo e o sumo sacerdote da igreja católica falecido há dias.

Como acontece aos desbocados, a certa altura têm de recuar nas intenções desbragadamente anunciadas, engolindo as palavras que eram uma falsa demonstração de destemor. Os cidadãos da Samolândia adoravam telefones móveis de uma marca que tinha ao selo do “made in” no país, a oMobile. A ironia do destino estava por conta da globalização – nunca desdenhada pelos cidadãos da Samolândia e pela entourage política do respetivo líder. Os oMobile eram fabricados no país que agora era o maior rival comercial, a Sinolândia. Ficavam mais baratos, à boleia da mão-de-obra paga com salários irrisórios e de miseráveis condições de trabalho. Ou seja: os consumidores de uma economia capitalista aproveitavam-se das condições de trabalho degradantes praticadas por um país onde o comunismo sobrevivia. 

O líder da Samolândia mantinha a sua teimosia: era para avançar com as “tarifas” e a Sinolândia seria o país mais duramente punido. Ao grande líder não ocorreu que na Sinolândia eram fabricados os telemóveis oMobile que faziam as delícias dos seus súbditos. E todos – o líder, os conselheiros e o povo quase inteiro – descobriram que telemóveis eram “made in” Samolândia só de fachada, pois eram “made in” Sinolândia. A notícia caiu como uma bomba: quando fossem para as montras das lojas na Samolândia, os oMobile iam duplicar de preço. O clamor popular não demorou. Era o que mais faltava, os cidadãos da Samolândia serem sujeitos a pagar duas vezes mais por um telemóvel que era um dos ícones da economia nacional porque o seu líder ateou a fogueira de uma guerra comercial. O brado chegou aos ouvidos do grande líder. Não podia ser insensível. O mal-estar começava a ser notado e algumas vozes importantes, até de notáveis apoiantes do líder, protestavam, por ora ainda discretamente, contra a obstinação das “tarifas”.

O grande líder da Samolândia ainda insistiu que as “tarifas” eram para o bem da economia do país, que iam criar empregos e reabilitar a indústria do país. Todavia, quando o cenário do dobro do preço a pagar pelos telemóveis se começou a materializar, as vozes fizeram-se ouvir num bramido incómodo. O líder não teve outra hipótese: recuou nas “tarifas” indiscriminadas sobre as importações procedentes da Sinolândia. Mudou de estratégia: as “tarifas” seriam seletivas, para atingirem cirurgicamente a economia da Sinolândia sem magoarem os consumidores samolandeses. Os telemóveis “made in” Sinolândia passavam a estar isentos de “tarifas”, por especial deferência do grande líder.

Para quem tinha tido entradas de leão, este recuo só podia ser entendido como uma saída de sendeiro. E o grande líder, ao meter a viola no saco, exibiu, afinal, uns testículos de tamanho inversamente proporcional à vozearia tonitruante com que espalhafatosamente inundou a política internacional.

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