28.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 3)

Soundgarden, “Limo Wreck” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vrnxtk-zP0k

O senhor Jameson estava habituado a passar férias fora da Samolândia. Coisas de um cosmopolita irremediável, para maldição dos mandantes que convidavam os autóctones a feriar no seu país sem que estes atendessem ao pedido. 

Por causa das “tarifas” demenciais, a moeda da Samolândia entrou numa desvalorização vertiginosa. O presidente da Samolândia, que nestes tempos só se interessava pelas coisas do comércio, exultava: com uma moeda a perder valor para as moedas concorrentes, os produtos da Samolândia exportados ficam mais baratos. Ele ligava a causa ao efeito, prescindindo de outras facetas que tornariam a análise menos parcial. A desvalorização da moeda ajudava as exportações a serem mais competitivas. E o contrário: os produtos de outros países perdiam mercado ao chegarem à Samolândia, o que reforçava o propósito (pelo menos o que fora anunciado) da guerra comercial: reabilitar a economia nacional, torná-la menos dependente do estrangeiro, recuperar empregos que estavam a ser perdidos pela falta de capacidade da economia. Ainda que a economia do país fosse sacrificada com mais inflação.

Ninguém ensinou o líder da Samolândia que há assuntos complexos que contêm uma miríade de efeitos e que lidam com muitas variáveis. São assuntos que vão muito além da sua capacidade cognitiva. Um dos afetados era o senhor Jameson – e todos os senhores Jameson que gostavam de alargar horizontes e viajar para longe nos tempos livres ou na reforma. À perda de valor da moeda da Samolândia correspondia um ganho de valor das principais moedas concorrentes. Quando o senhor Jameson começou a planear as férias, escolheu uma vez mais a Europólia – ele é um aficionado pelas diversas culturas que coexistiam na Europólia. 

O problema foi quando orçamentou as férias. De um ano para o outro, ir de férias para a Europólia ficara 35% mais caro. O senhor Jameson procurou perceber as razões para os preços terem disparado. Na agência de viagens disseram-lhe que os preços praticados na Europólia tinham sofrido uma pequena variação, em linha com a inflação do ano. O resto era por conta da variação no valor das moedas que competem no mercado. A moeda da Samolândia enfraqueceu em relação à moeda da Europólia. Para um residente na Samolândia, trocar um certo montante de moeda pela moeda da Europólia ditava numa perda de quase 30% na quantidade desta moeda obtida à troca. Por isso é que a Europólia tinha ficado mais cara.

As férias que o senhor Jameson queria fazer foram goradas. Não tinha orçamento. Ficar-se-ia pela Samolândia, satisfazendo outro sonho do presidente do país, ao incentivar os súbditos a não fazerem turismo no estrangeiro pois a Samolândia é enorme e tem muito segredos por revelar. O líder com gosto pela autarcia não cabia em si de contente. Em vez da sangria de turistas para outros países, quase todos ficariam limitados a passar férias no país. Menos moeda nacional era vazada para o estrangeiro, ajudando ao reequilíbrio entre a moeda nacional saída e a moeda estrangeira entrada. 

O turismo da Samolândia não escondeu um rasgado sorriso. Previa-se que o turismo de autóctones atingisse números nunca vistos. E que muitos turistas, sobretudo da Europólia, fariam turismo na Samolândia. O líder da Samolândia considerava-se um génio da economia. Passou-lhe ao lado que os efeitos da economia não são tão previsíveis como o pressentido por uma análise pueril. Os outros países não conseguiam suportar um desequilíbrio prolongado na variação de valor das moedas em relação à moeda da Samolândia. Ato contínuo, começaram a provocar sucessivas perdas de valor nas sua moedas, para evitar o afundamento da moeda da Samolândia. Jogaram com as mesmas armas.

Afinal, o senhor Jameson podia voltar a fazer planos para a viagem à Europólia. O sector de turismo da Samolândia arrefeceu a exultação anterior ao perceber que nem teria a avalanche de turistas autóctones, nem a correria desatada de turistas dos outros países. E o presidente do país, o causador da corrida desenfreada à desvalorização das moedas porque anteriormente tinha ateado a guerra comercial, enfiou a viola no saco.

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